sábado, dezembro 11, 2004

O poder simbólico em Salém

Esta é uma resenha que eu e oFernando fizemos. Eu estou colocando ela no blog a pedido dele. Apesar do meu estar nesta resenha, toda a idéia e desenvolvimento do pensamento antropológico foi por conta do Fernando. Da minha parte ficou apenas algum contexto histórico e alguma análise sociológia e política. Do resto, tudo é idéia dele, e eu acho que todo o mérito é dele também. Espero que alguém goste. Ano que vem eu vou me esforçar mais para fazer da Antropologia minha matéria preferida.
A resenha é sobre o filme Bruxas de Salém, se alguem não viu assistam porque é muito bom.


Fernando B. S. Martins
Leonardo Domingues [1]

O filme “As bruxas de Salém” é inspirado na peça de teatro: The Crucible e é dirigido por Nicholas Hytner. É estrelado por Daniel Day-Lewis e Winona Ryder. Nesta obra juntam-se às excelentes interpretações deste elenco e a poderosa história de paixão, pensamento mágico, ciúmes, manipulação e maldade.
A obra cinematográfica tem um discurso bastante crítico quanto à influência da igreja no destino das pessoas. Cenas como estas que são representadas no filme foram reproduzidas a exaustão dentro daquele contexto histórico. A caçada as bruxas e a Inquisição eram usadas sempre que um possível “mal” incompreensível e desconhecido pairavam no imaginário coletivo.
A história se passa nos fins do século XVII. O palco é Salém, pequeno vilarejo de Massachusetts. Os personagens são na maioria religiosos e a vida cotidiana deles gira em torno de uma moralidade cristã. A paz que reinava naquele local foi fatalmente abalada por uma crença na presença de espíritos malignos. Crianças inocentes foram corrompidas em rituais pagãos e ao confessarem sua sujeição nestes pactos as mesmas começam a acusar quais seriam os agentes responsáveis pela prática de feitiços, ou seja, as práticas ritualísticas não eram concebidas com de responsabilidade daqueles que aparentemente eram os atores, mas sim de feiticeiros que detinham o poder mágico.
Em 1696 o Reverendo Parris testemunha um ritual mágico nos confins de uma floresta nos arredores do vilarejo. Este ritual tinha como sacerdotisa Tituba. O antropólogo Stanley Tambiah define ritual como: “O ritual é um sistema cultural de comunicação simbólica. Ele é constituído de seqüências ordenadas e padronizadas de palavras e atos, em geral expressos por múltiplos meios. Estas seqüências têm conteúdo e arranjo caracterizados por graus variados de formalidade (convencionalidade), estereotipia (rigidez), condensação (fusão) e redundância (repetição).” [2]
O ritual aparentemente tinha por fim apenas ressaltar os desejos quanto a possíveis matrimônios por parte das participantes. Porém, devido a uma prática profana de Abigail, tendo o princípio motor de tal ação só esclarecido ao andamento do filme, o ritual resulta em uma perturbação aparentemente fisiológica em duas participantes do grupo. Estas destacam-se por apresentarem a menor faixa etária em relação aos participantes.
Devido à forma a qual a perturbação foi manifestada ao social (sendo uma patologia fisiológica), a ação do grupo quanto esta disfunção foi caracterizada por uma abordagem pautada na ciência dos males fisiológicos. O médico responsável por diagnosticar os efeitos anômalos não conseguiu formular um diagnóstico, desta forma, não encontrando a causa foi atribuído à categoria de bruxaria para o fenômeno. Evans-Pritchard em seu relato sobre A Noção de Bruxaria como Explicação dos Infortúnios explicita que: “A crença Zande em bruxaria não contradiz absolutamente o conhecimento empírico da causa e efeito. O mundo dos sentidos é tão real para eles como o é para nós. Não nos devemos deixar enganar por seu modo de exprimir a causalidade(...). Eles estão condensando a cadeia de eventos e, numa situação social particular, selecionam a causa que é socialmente relevante e deixam o restante de lado”. [3]
A razão pelo qual é possível confundir no filme males de origem fisiológica com disfunções criadas coletivamente se dá pelo fato de que os símbolos, quando compartilhados passam a desempenhar uma função no indivíduo maior até mesmo que seu funcionamento quanto ser biológico. Mauss evidencia este fenômeno em seu relato quanto a questão dos efeitos físicos nos indivíduos sugeridos pela coletividade. O trecho a seguir explicita tal concepção: “A consciência é então invadida por idéias e sentimentos que são totalmente de origem coletiva, que não revelam nem distúrbio físico. A análise não chega a perceber nenhum elemento de vontade, de escolha ou de ideação voluntária da parte do paciente, ou mesmo de distúrbio mental individual, exceto a própria sugestão coletiva. O indivíduo acredita-se enfeitiçado ou julga-se em pecado, e morre por essa razão”. [4]
As pessoas participantes do ritual ficaram temerosas quanto a reação desencadeada nas duas meninas pelo motivo que tal fenômeno iria despertar em toda a vila um certo ímpeto investigativo quanto a quem deveria estar se envolvendo com práticas de bruxaria. Não conseguindo conter a exaltação coletiva quanto a percepção do problema, as mesmas começaram a acusar os possíveis autores de práticas mágicas.
A princípio as pessoas acusadas por praticarem artes ocultas eram aquelas que não se adequavam ao ordenamento social vigente. Na sua maioria eram os tipos exóticos, mendigos, dentre outras irregularidades agressoras ao sistema coletivo. Num segundo momento, o sistema acusatório passou a utilizar-se do parâmetro de benfeitorias individuais a fim de afirmar sua prática. Tal método é facilmente visível na relação em que com a morte de certas pessoas acusadas outras teriam vantagens econômicas e, portanto iriam adquirir maior status em relação aos outros.
A grande temática do filme se apóia nesta relação entre vantagens produzidas pelo ato de acusar certas pessoas para beneficio individual. Abigail acusa a senhora Proctor para com isso conseguir ter laços afetivos com o marido da mesma. Cabe a ressalva que, Abigail outrora já havia tido um caso com o John Proctor. É possível acreditar que a personagem confiava que o relacionamento almejado por ela não era possível devido à existência da senhora Proctor como parceria legítima, reconhecida pelo social. Abigail precisava não apenas destruir o ser biológico senhora Proctor, mas sim, sua figura social. Para tanto, a mesma utilizou-se do poder acusatório, fruto do envolvimento com a atmosfera ritualística, a fim de difamar a condição moral estabelecida no meio coletivo de Elizabeth Proctor.
John no desenrolar do filme busca um modo de convencer Salém da inocência de sua esposa. O mesmo chega a confessar seu pecado de luxúria para a comissão inquisitória. Esta ação confrontada com o universo mágico que paira no imaginário de Salém parece sem importância, ou seja, o concreto passa a ser inválido frente a inesgotabilidade do pensamento metafísico. Nesta busca John acaba sendo acusado de bruxaria. Mesmo sabendo que todo o processo de inquisição é forjado, o mesmo encontra-se impotente na tentativa de questionar tal fenômeno social. Portanto Proctor aconselhado por sua esposa aceita o personagem de colaborador de práticas ocultas. Para Leví-Strauss, tal razão é comentada na passagem de seu livro Antropologia Estrutural, onde após relatar estudos feitos por M. C. Stevenson sobre os Zuni do Novo México conclui debruçando-se sobre o fato ate então relatado: “Vemo-lo pois construir progressivamente o personagem que lhe impuseram, com uma mescla de astúcia e de boa fé: bebendo amplamente em seus conhecimentos e em suas lembranças, improvisando também, mas, sobretudo, vivendo sua função e procurando, nas manipulações que delineia e no ritual que ele constrói de pedaços e de fragmentos, a experiência de uma missão cuja eventualidade, pelo menos, é oferecida a todos”. [5]
No processo de confissão, Proctor é informado que suas declarações iriam ser documentadas e apresentadas para toda a comunidade. Ao saber disso o mesmo se nega a continuar compactuando com a farsa coletiva. Ao fazer isso o personagem deixa claro que, sua morte biológica é desprezível frente a ruína de seu ser social.
Desta forma, por tudo o que já foi exposto é possível conceituar o filme como um grande conglomerado de informações dispersas a serem ordenadas, sistematizadas e investigadas por pesquisadores. Cabe ressaltar que o texto até então apresentado não se ateve à totalidade dos fatos sugeridos pelo filme, pois o mesmo teve como cerne a temática do pensamento mágico no universo de Salém.

[1] Alunos do segundo ano de Ciências Sociais
[2] Trecho obtido: PEIRANO, M. Rituais Ontem e Hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
[3] EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
[4] MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
[5] LEVÍ-STRAUSS, C. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.

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