domingo, dezembro 05, 2004

Cine Revolução


Cabra Marcado para Morrer

Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho, longe de ser apenas um filme dentro de um filme, é o melhor documentário nacional e um dos trabalhos que mais influenciaram a cinematografia documental brasileira moderna. Seu realizador é considerado unanimidade e sinônimo de documentário.
Junto com o Ilha das Flores de Jorge Furtado, Cabra Marcado para Morrer encabeça a lista dos melhores documentários já feitos neste país. Vítima do golpe de 64 e da paranóia instalada no país, Coutinho e seu Cabra Marcado para Morrer, originalmente um filme de ficção, voltam ao cenário inicial, 17 anos depois, para resgatar a história do projeto. Coutinho quer fazer o recorte que tentara antes, agora na forma de documentário. Munido de coragem - o Brasil em 1981, data da retomada das filmagens, iniciava um lento e perigoso momento de abertura - e dos rolos de filme que conseguiu salvar do original em 1964, Coutinho retorna a cidade de Galiléia, a procura de seus atores e da verdade. Busca a verdade.
Esteticamente, o filme de Coutinho é hoje objeto de estudo em todas as salas de aulas das faculdades de cinema do país. Sua facilidade de estabelecer contato entre o espectador e o entrevistado é assustadora. Todos tentam entender o fenômeno Coutinho. Sua figura, carismática, encantadora e enigmática conduz a narrativa com destreza e transforma a entrevista, e conseqüentemente, o entrevistado, em narradores aptos a conquistar a confiança. Sua habilidade em se impor conduzem e nivelam o depoimento. Mesmo contrariados, os entrevistados declamam suas poesias, sussurrando e se lamentando. Coutinho consegue arrancar, até mesmo da negação, discursos contundentes.

Filme: CABRA MARCADO PARA MORRER (esta parte foi tirada do Janela Indiscreta)
Com: Elisabeth Teixeira e família, João Virgínio da Silva e os habitantes de Galiléia (Pernambuco).
Narração de Ferreira Gullar, Tite Lemos e Eduardo Coutinho
Direção: Eduardo Coutinho
Duração/Ano: 120'- 1984
O filme 'Cabra Marcado Para Morrer' é um documento singular, um filme dentro do filme, em que personagens, equipe técnica e elenco se integram retratando a realidade da ditadura militar no Brasil nos anos 60 e 70.
RESUMO
Em fevereiro de 1964 inicia-se a produção de Cabra Marcado Para Morrer, que contaria a história política do líder da liga camponesa de Sapé (Paraíba), João Pedro Teixeira, assassinado em 1962. No entanto, com o golpe de 31 de março, as forças militares cercam a locação no engenho da Galiléia e interrompem as filmagens. Dezessete anos depois, o diretor Eduardo Coutinho volta à região e reencontra a viúva de João Pedro, Elisabeth Teixeira - que até então vivia na clandestinidade - e muitos dos outros camponeses que haviam atuado no filme antes brutalmente interrompido.
CONTEXTO HISTÓRICO
As Ligas Camponesas vinham sendo criadas desde meados dos anos 50 com o objetivo de conscientizar e mobilizar o trabalhador rural na defesa da reforma agrária. Durante o governo de João Goulart (1961-64), o número dessas associações cresceu muito e, junto com elas, também se multiplicavam os sindicatos rurais. Os camponeses, organizados nessas ligas ou em sindicatos ganharam mais força política para exigir melhores condições de vida e de trabalho. A renúncia de Jânio Quadros em 25 de agosto de 1961, após apenas sete meses de governo, abriu uma grave crise política, já que seu vice, João Goulart, não era aceito pela UDN e pelos militares, que o acusavam de promover agitação social e de ser simpático ao comunismo. Assim como esses setores eram contrários à posse de Jango, existiam outros que defendiam o cumprimento da Constituição, como o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. O impasse foi resolvido com a adoção do regime parlamentarista de governo, aprovado pelo Congresso. Com esse regime, Jango era apenas chefe de Estado, sendo que o poder efetivo de decisão estava nas mãos de um primeiro-ministro escolhido pelos deputados e senadores.Diante da crise econômica, o regime parlamentarista imposto pelos conservadores, se mostrava ineficiente, com a sucessão de vários primeiros-ministros, sem que a crise fosse atenuada. Esse cenário fortalecerá o restabelecimento do presidencialismo, conquistado através de um plebiscito em 6 de janeiro de 1963. Reassumindo a plenitude de seus poderes, Jango lançou as reformas de base apoiadas por grupos nacionalistas e de esquerda.. Elas incluíam a reforma agrária, a reforma do sistema bancário, a reforma tributária e a reforma eleitoral. Muitos comícios foram organizados em apoio às reformas, destacando-se um comício-gigante realizado na Central do Brasil do Rio de Janeiro em 13 de março. A mobilização popular nos comícios assustava as elites que, articuladas com as forças armadas e apoiadas pelos setores mais conservadores da Igreja, desferiram um golpe de Estado em 31 de março de 1964. No dia seguinte, o controle dos militares sobre o país era total e, no dia 4, Goulart se auto-exilou no Uruguai, sem impor qualquer resistência aos golpistas, temendo talvez o início de uma guerra civil no país. Iniciava-se assim um dos períodos mais obscuros da história do Brasil, com 21 anos de ditadura militar que promoveu uma violenta onda de repressão sobre os movimentos de oposição, além de ter gerado uma maior concentração de renda, agravando a questão social, produzindo mais fome e miséria. Os "anos de chumbo" da ditadura ocorreram após o AI5 (Ato Institucional número 5), no final do governo Costa e Silva (1968), estendendo-se por todo governo Médici (1969-1974).

Partindo desta reflexão eu coloco um texto que escrevi esse ano junto com o Fernando para discutir a questão das ligas camponesas do nordeste brasileiro. É desta realidade que Coutinho fala no seu filme.

O NORDESTE EM MOVIMENTO
O período analisado vai desde a criação das Ligas Camponesas até o golpe militar de 1964. Para fazer a análise deste período no Nordeste se baseia em duas reportagens feitas por dois jornalistas que realizaram contatos e entrevistas com camponeses e políticos. Uma realizada por Antonio Callado para o Diário da Manhã e outra de Tad Szulc para o The New York Times. Reportagens estas feitas em 1959 e 1960 respectivamente. Callado em suas viagens pelo Nordeste denuncia a “indústria da seca”, mecanismo feito por latifundiários e políticos para transformarem este problema em um grande negócio. Suas reportagens resultam num movimento dentro do governo Juscelino Kubitschek que buscava apoio dentro do jornal de Callado para seus projetos frente à crise da seca. Com apoio da opinião pública se origina o projeto Operação Nordeste, implementado por Celso Furtado e que resultou na fundação da Sudene. O jornalista conviveu com os camponeses de Galiléia e presenciou a mobilização de Julião, que organizou varias manifestações dos trabalhadores rurais e teve atuação relevante nas lutas das Ligas. As publicações de Callado adquiriram repercussão nacional que receberam muitos elogios e ataques desfavoráveis. Ele vivenciou a repressão contra os camponeses pela desapropriação de terras. E, foi acusado de incitar os foreiros do engenho a não cumprirem o mandato de despejo. Fato que indignou parte da Câmara Federal e assinaram moção de apoio a Callado.A partir da posse do governador eleito pela Frente do Recife, as Ligas Camponesas ampliaram sua mobilização e conseguiram uma autorização para o mandato de desocupação das terras do engenho pelos moradores em atraso com o pagamento do foro. Editoriais e artigos na imprensa criticam a possível desapropriação como uma ameaça sem precedentes à ordem social e a propriedade privada. O governo cede à pressão dos trabalhadores e a desapropriação é assinada.As reportagens de Callado foram transformando a opinião das pessoas. A idéia de que o Nordeste precisa modernizar-se ficou bem difundida entre os vários setores da sociedade. No entanto a resistência ainda era muito grande. Para muitos, a iniciativa de mudanças significativas era coisa de comunista. É neste clima de euforia e confrontos políticos e sociais, de grande mobilização das Ligas, que o autor nos remete ao jornalista do The New York Times, Tad Szulc. Embora não existam informações sobre o envolvimento do Departamento de Estado dos EUA com essa viagem, é de certa maneira possível que a reportagem tivesse outros motivos que iam além de informar a população daquele país. Desde 1947 o mundo ficou bi polarizado, dividindo entre o bloco comunista e o bloco capitalista. Sendo assim, o jornalista americano procurava propagar o anticomunismo majoritário dos EUA, qualquer projeto ou iniciativa que visasse distribuição de renda, igualdade social era facilmente associada a políticas comunistas. O Brasil era epicentro da América Latina, e o que acontecesse aqui poderia influenciar fortemente outros países a adesão comunista. O governo brasileiro desta época era “neutro” frente aos dois blocos. Frente a esse contexto Szulc lança uma matéria intitulada “Pobreza no Nordeste do Brasil gera ameaça de revolta”. A conseqüência desta matéria não deixou dúvidas ao leitor americano de que uma revolução comunista iminente estava para ser desencadeada no Brasil[1]. O jornalista também publicou partes do discurso de um líder camponês, em que ele fazia apologia a Revolução Cubana e dizia que os grandes proprietários tinham o apoio dos Estados Unidos. Szulc reforça os laços entre os setores dominantes da sociedade brasileira aos dos Estados Unidos, revelando que muitos políticos e intelectuais, entre outros, encontram-se preocupados com a possibilidade de uma revolução iminente.
A IGREJA CATÓLICA OCUPA A CENA
A Igreja Católica tem papel de muita relevância quando o tema é comunismo, tanto os setores do Vaticano como os nacionais contribuíram muito para a propagação do anticomunismo. O setor da Igreja que mostrou interesse em amenizar os problemas nacionais em favor dos menos favorecidos foi a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Em 1956 é publicado um documento que manifesta sua posição frente a situação calamitosa do Nordeste. Nele é criticado o problema da má distribuição de renda e a necessidade de uma reforma agrária. Os setores ligados aos camponeses, como os comunistas, reproduziam o discurso de que a religião era o ópio do povo, no qual não havia maneira de transformação social pela propagação da exploração e da submissão. No entanto, as Ligas ao produzirem um discurso de crítica a atuação dos padres, afirmavam-se como defensoras de um outro cristianismo. As Ligas se projetam como alternativa messiânica e, líderes como Julião fizeram a construção ideológica deste movimento. Foi produzida até uma cartilha mostrando para os camponeses como votar nas eleições presidenciais de 1960. Nela há uma identificação de Deus com os latifundiários e de Jesus com os camponeses. A crítica a religião é muito forte e causou forte impacto nos trabalhadores rurais. Após a vitória da desapropriação de Galiléia, as Ligas se expandem para o Norte e o Sul do Brasil. A repercussão do movimento originou o filme Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho. Em 1961 há o rompimento com o PCB, durante o primeiro Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, em Belo Horizonte, convocado pela União de Fazendeiros e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB) e associações e entidades controladas pelos comunistas. Essa ruptura faz com que três forças (a Igreja, o PCB e as Ligas) disputem o controle do movimento dos trabalhadores rurais. As Ligas tornaram-se um caminho alternativo de organização e mobilização das massas trabalhadoras rurais, em face da ausência de sindicatos rurais. Embora previstos pela Consolidação das Leis Trabalhistas de 1946, os sindicatos rurais não se materializaram no efetivo cumprimento da determinação legal. Os bispos, por intermédio do Ministério do Trabalho, conseguem a aprovação de diversos pedidos de reconhecimento de sindicatos rurais apoiados pela Igreja. Foi uma forma de barrar o avanço das Ligas Camponesas. Outro fator de enfraquecimento das ligas apontados pelo autor é o fato destas incorporarem a concepção de revolução armada, que originou na criação de campos de treinamento que foram extintos pelas Forças Armadas. Com a preocupação do governo frente a tudo isso, adota a bandeira da Reforma Agrária e propõe uma série de reformas de base. O golpe de 64 veio a interromper esta experiência histórica. Os proprietários ganham o apoio dos militares e reprimem fortemente os movimentos rurais de toda magnitude.
Conclusões e considerações finais
O que fica de exemplo desta luta travada no Nordeste é que, infelizmente o processo de desapropriação das terras é muito longo. As fortes lutas empenhadas pelos trabalhadores rurais foram radicalmente destituídas pelos militares. A luta teve que voltar a estaca zero. Todo o processo é muito importante para entender a geopolítica daquele momento, a Guerra Fria, o comunismo, a influência da Igreja, e tudo mais que entravou a consolidação das lutas dos camponeses. A questão da Reforma Agrária, apesar de ter sido levantada no governo Goulart esta engavetada até hoje. O “elefante branco” da distribuição de terra esta bem longe de ser pauta nacional de discussões. Apenas é citada de maneira oportunista nas eleições, assim como outros clássicos chavões do discurso político nacional.
A discussão dos problemas estruturais, incluindo o da estrutura agrária, deveria ser conduzida pelos partidos políticos em primeiro lugar, mas também com a participação de outras instituições (universidades, igrejas, sindicatos). O ponto de partida teria de ser à procura de soluções alternativas que obtivessem o máximo possível de consenso. Poderia ser realizada uma grande negociação coletiva, mais representativa ainda do que o próprio Congresso Constituinte, como pré-condição para se elaborar uma carta magna e os vários códigos (civil, penal, do trabalho, etc.), estabelecendo os princípios, conceitos, diretrizes e bases de todos os aspectos da vida nacional, incluindo os conceitos de propriedade e uso da terra e tendo como centro de interesse o homem, que deve ser o artífice e o maior beneficiário de tudo. Qualquer coisa nesse sentido poderia ter sido ao menos tentada pelo Presidente José Sarney. As propostas foram sumariamente rejeitadas sem nem ao menos se mobilizar e ouvir-se o povo trabalhador. Aconteceu que nessa altura os partidos, os grupos e as personalidades que haviam participado com o povo na campanha de redemocratização do país já estavam todos assentados comodamente no governo, já haviam deixado de ser oposição e constituíam a nova situação de fato e de direito. O que no atual reflexo sócio-político não foge muito a regra. O novo governo abortou os sonhos da classe trabalhadora. A esperança não encontra mais sentido, virou sinônimo de desilusão. A tão sonhada e lutada Reforma Agrária se mostra hoje muito mais distante do que nos anos anteriores. Os trabalhadores rurais estão à mercê da arbitrariedade desses programas sociais nada inclusivos e nada transformadores. A classe trabalhadora finalmente chegou ao poder, mas por meio de alianças tão complexas que nem o trabalhador mais ingênuo enxerga mudança. As massas trabalhadoras ficaram completamente órfãs de repente, sem organizações políticas e sem lideranças autenticamente representativas e ainda sem programas e sem objetivos próprios. Por isso elas não avançaram na conquista de posições mais fortes na correlação de forças políticas. Ao invés disso, refluíram para as posições defensivas de suas reivindicações sindical-trabalhistas.Com base numa percepção errônea da estrutura social, das causas fundamentais dos problemas, das forças atuantes na sociedade e das transformações que já estão se processando, os defensores da reforma agrária estão preconizando uma solução irreal e impraticável.
BIBLIOGRAFIA:
FERREIRA, Jorge. O Brasil Republicano 3, O Tempo da Experiência Democrática. MONTENEGRO, Antonio Torres. “Ligas Camponesas e Sindicatos Rurais em Tempo de Revolução”. Civilização Brasileira.
MOTTA, Rodrigo Patto de Sá. Em guarda contra o “Perigo Vermelho”. São Paulo. Perspectiva. 2002.
[1] “O fato era visível não só na reestruturação do PCB, que começava a se recuperar das crises e cisões decorrentes da “desestalinização”, mas no surgimento de novas organizações esquerdistas como a Ação Popular (AP), Ligas Camponesas e Política Operária (POLOP) (...) as bandeiras esquerdistas começaram a empolgar novos contingentes sociais, para além de intelectuais e ativistas sindicais (...) Militantes católicos leigos e grandes quantidades de lideres estudantis fortalecem o campo esquerdista” (p.233).


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