sexta-feira, outubro 19, 2012

Die Emanzipation

Ich der ich meistens unselbständig war, habe ein unendliches Verlangen nach Selbständigkeit, Unabhängigkeit, Freiheit nach allen Seiten, lieber Scheklappen anziehn und meinen Weg bis zum Äussersten gehn, als dass sich das heimatliche Rudel um mich dreht und mir den Blick zerstreut.
Franz Kafka (1883-1924). Tagebücher: 1914-1923.

quinta-feira, agosto 30, 2012

Simple Math - Manchester Orchestra




Simple Math

Hunter eyes
I'm lost and hardly noticed, slight goodbye
I want to rip your lips off in my mouth
And even in my greatest moment doubt
The line between deceit and right now

Simple math
It's how our bodies even got here
Sinful math
The ebb and flow to multiply

What if I was wrong and no one cared to mention?
What if it was true, and all we thought was right was wrong?
Simple math
The truth cannot be fractioned
Either way

I imply
To mitigate the guilt, we could align
A perfectly constructed alibi
To hush the violent guilt that eats and never dies
In actual blame, they called me once the dark divide

Simple math
It's why our bodies even lay here
Sinful math
The truth cannot be fashion

What if you were crazy, would we have to listen then?
What if we've been trying to get to where we've always been?
What if I was wrong, and started trying to fix it?
What if you believed me? Everything is brilliant

What if I've been trying to get to where I've always been?
What if we've been trying to get to where we've always been?
Simple math
Believe me, all is brilliant
What if we've been trying to kill the noise and silence?
What if I was wrong and you had never questioned it?
What if it was true, that all we thought was right was wrong?
Simple math
The truth cannot be fractioned
I imply, I've got to get it back then

terça-feira, julho 17, 2012

A novidade

A novidade veio dar a praia
Na qualidade rara de sereia
Metade o busto de uma deusa maia
Metade um grande rabo de baleia
A novidade era o máximo
Um paradoxo estendido na areia
Alguns a desejar seus beijos de deusa
Outros a desejar seu rabo pra ceia
O mundo tão desigual
Tudo é tão desigual
O, o, o, o...
De um lado esse carnaval
De outro a fome total
O, o, o, o...
E a novidade que seria um sonho
O milagre risonho da sereia
Virava um pesadelo tão medonho
Ali naquela praia, ali na areia
A novidade era a guerra
Entre o feliz poeta e o esfomeado
Estraçalhando uma sereia bonita
Despedaçando o sonho pra cada lado
Ô Mundo tão desigual...
A Novidade era o máximo...
Ô Mundo tão desigual...


Torquato Neto, Gilberto Gil. Paralamas do Sucesso.

segunda-feira, junho 25, 2012

Coronelismo intelectual: não há muita diferença entre a mesa de bar e a mesa-redonda dos acadêmicos


Escrito por Marcia Tiburi. Retirado da Revista Cult: http://revistacult.uol.com.br/home/2012/05/coronelismo-intelectual/
Podemos chamar de “coronelismo intelectual” a prática autoritária no campo do conhecimento. Este campo é extenso, começa na pesquisa científica universitária e se estende pela sociedade como um todo, dos meios de comunicação ao básico botequim onde ideias entram em jogo.
Coronelismo intelectual é a postura da repetição à exaustão de ideias alheias. A reflexão só atrapalharia, por isso é evitada.
Encarnação de prepotente eloquência, o paradoxo do coronelismo é alimentar uma ordem coletiva de silêncio em que o debate inexiste, o culto da verdade pronta ou da ignorância é a regra, bem como a apologia ao gesto de falar sem ter nada a dizer, que culmina no discurso tão vazio quando maldoso da fofoca, versão popular do eruditismo.
Não há muita diferença entre a mesa de bar e a mesa-redonda dos acadêmicos parafraseando qualquer filósofo clássico apenas pelo amor ao fundamentalismo exegético.
Enquanto todos falam sem nada dizer, ajudados pelo jornalista que repete o que se entende pela sacrossantificada “informação”, mercadoria da contra-reflexão atual, os coronéis podem comentar que os outros é que não sabem nada e praticar o “discurso verdadeiro” em seus artigos estilo “mais do mesmo”, moedinha cadavérica com que se enche o cofrinho das plataformas de medição de produtividade acadêmica em nossos dias.
O coronelismo intelectual infelizmente segue forte na filosofia e nas ciências humanas, na verdade dos especialistas, tanto quanto na dos ignorantes que se separam apenas por titulação ou falta dela. Professores e estudantes, sábios e leigos, todos se servem metodologicamente dos frutos dessa árvore apodrecida. A prática do pensamento livre que se autocritica e busca, consciente de sua inconsciência, seu próprio processo de autocriação talvez seja a contraverdade capaz de cortá-la pela raiz.
Intelectual serviçal
Eis a cultura do lacaio intelectual, do bom serviçal sempre pronto à reprodução do mesmo. Nela, a boa ovelha especialista em assinar embaixo as verdades do senhor feudal que um dia as emitiu num ritual de sacralização já não é fácil de distinguir do lobo. A semelhança entre o puxa-saco, o crente e o líder paranóico que o conduz revela a verdade do mimetismo. Os seguidores dos líderes, de rabinho entre as pernas, latem para mostrar que aprenderam bem o refrão.  Abanam as asas ao redor da lâmpada esperando que ela também fique onde está, do contrário não saberiam o que fazer.

As consequências do coronelismo em um país de antipolítica e anti-educação generalizadas como este é algo ainda mais grave do que o medo de pensar. É o fato de que já não se pensa mais. A ausência de debate não é medo de expor ideias, mas a falta delas. Inação é o corolário da impossibilidade de mudar, porque o campo das ideias onde surge a vida já foi minado. O coronel ri sozinho da impossibilidade de mudanças, pois ele ama a monocultura enquanto odeia o cultivo de ideias diferentes ou de ideias alheias. O autoritarismo intelectual não é feito apenas de ódio ao outro, mas da inveja de que haja exuberância criativa em outro território, em outra experiência de linguagem. Conservadorismo é seu nome do meio.
Coronelismo não é simplesmente a zona cinzenta onde não podemos mais distinguir o ignorante do culto, mas a política generalizada introjetada por todos – salvo exceções – pela letal dessubjetivação acadêmica da qual somos vítimas enquanto algozes e que, no campo do senso comum, surge como robotização e plastificação das pessoas entregues como zumbis aos mecanismos do nonsense geral, que, é preciso cuidar, deve ser aparentemente desejável pela liberdade de cada um.
Contra a escravidão intelectual somente um contradesejo pode gerar emancipação. A prática da invenção teórica, a liberdade da interpretação e de expressão nos obrigam a ir contra os ordenamentos da ditadura micrológica do cotidiano, em que a lei magna reza o “proibido pensar”. A direção, como se pode ver, parece que só se encontra, atualmente, no desvio dos caminhos dados.

quarta-feira, junho 20, 2012

Entre a Jamaica e a Inglaterra


Tendo sido preparado pela educação colonial, eu conhecia a Inglaterra de dentro. Mas não sou nem nunca serei inglês. Conheço intimamente os dois lugares, mas não pertenço completamente a nenhum deles. E esta é exatamente a experiência diaspórica, longe o suficiente para experimentar o sentimento de exílio e perda, perto o suficiente para entender o enigma de uma "chegada" sempre adiada. [...] É impossível "voltar para casa" de novo.
Stuart Hall (1932- ).A formação de um intelectual diaspórico.

terça-feira, junho 19, 2012

Verdade: Cucolândia das Nuvens

O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma das relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu o que são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas.
Friedrich Nietzsche (1844-1900). Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral.

segunda-feira, junho 18, 2012

Recado de Durkheim

Se a vida não vale a pena ser vivida, qualquer coisa se torna pretexto para nos desvencilharmos dela.
Émile Durkheim (1854-1917). O suicídio.

quarta-feira, junho 13, 2012

Sobre a Rio+20

Se, como fez uma vez Hillel com a doutrina judaica, se tivesse de enunciar a doutrina dos antigos em toda concisão, em pé sobre uma perna, a sentença teria de dizer: "A Terra pertencerá unicamente àqueles que vivem das forças do cosmos". Nada distingue tanto o homem antigo do moderno quanto sua entrega a uma experiência cósmica que este último mal conhece. O naufrágio dela anuncia-se já no florescimento da astronomia, no começo da Idade Moderna. Kepler, Copérnico, Tycho Brahe certamente não eram movidos unicamente por motivos científicos. Mas, no entanto, há no acentuar exclusivo de uma vinculação ótica com o universo, ao qual a astronomia muito em breve conduziu, um signo precursor daquilo que tinha de vir. O trato antigo com o cosmos cumpria-se de outro modo: na embriaguez. É embriaguez, decerto, a experiência na qual nos asseguramos unicamente do mais próximo e do mais distante, e nunca de um sem o outro. Isso quer dizer, porém, que somente na comunidade o homem pode comunicar em embriaguez com o cosmos. É o ameaçador descaminho dos modernos considerar essa experiência como irrelevante, como descartável, e deixá-la por conta do indivíduo como devaneio místico em belas noites estreladas. Não, ela chega sempre e sempre de novo a seu termo de vencimento, e então povos e gerações lhe escapam tão pouco como se patenteou da maneira mais terrível na última guerra, que foi um ensaio de novos, inauditos esponsais com as potências cósmicas. Massas humanas, gases, forças elétricas foram lançadas ao campo aberto, correntes de alta freqüência atravessaram a paisagem, novos astros ergueram-se no céu, espaço aéreo e profundezas marítimas ferveram de propulsores, e por toda parte cavaram-se poços sacrificiais na Mãe Terra. Essa grande corte feita ao cosmos cumpriu-se pela primeira vez em escala planetária, ou seja, no espírito da técnica. Mas, porque a avidez do lucro da classe dominante pensava resgatar nela sua vontade, a técnica traiu a humanidade e transformou o leito de núpcias em um mar de sangue. Dominação da Natureza, assim ensinam os imperialistas, é o sentido de toda técnica. Quem, porém, confiaria em um mestre-escola que declarasse a dominação das crianças pelos adultos como o sentido da educação? Não é a educação, antes de tudo, a indispensável ordenação da relação entre as gerações e, portanto, se se quer falar de dominação, a dominação das relações entre as gerações, e não das crianças? E assim também a técnica não é dominação da Natureza: é dominação da relação entre Natureza e humanidade. Os homens como espécie estão, decerto, há milênios, no fim de sua evolução; mas a humanidade como espécie está no começo. Para ela organiza-se na técnica como physis na qual seu contato com o cosmos se forma de modo novo e diferente do que em povos e famílias. Basta lembrar a experiência de velocidades, por força das quais a humanidade prepara-se agora para viagens a perder de vista no interior do tempo, para ali deparar com ritmos pelos quais os doentes, como anteriormente em altas montanhas ou em mares do Sul, se fortalecerão. Os Luna Parks são uma pré-forma de sanatórios. O calafrio da genuína experiência cósmica não está ligado àquele minúsculo fragmento de natureza que estamos habituados a denominar "Natureza". Nas noites de aniquilamento da última guerra, sacudiu a estrutura dos membros da humanidade um sentimento que era semelhante à felicidade do epilético. E as revoltas que se seguiram eram o primeiro ensaio de colocar o novo corpo em seu poder. A potência do proletariado é o escalão de medida de seu processo de cura. Se a disciplina deste não o penetra até a medula, nenhum raciocínio pacifista o salvará. O vivente só sobrepuja a vertigem do aniquilamento na embriaguez da procriação.
Walter Benjamin (1892-194). A caminho do planetário.  

quinta-feira, março 29, 2012

Ainda Marcuse (Prefácio político de 1966: Eros e Civilização)

Eros e Civilização: o título expressou um pensamento otimista, eufemístico, mesmo positivo, isto é, que as realizações da sociedade industrial avançada habilitariam o homem a inverter o rumo do progresso, a romper a união fatal de produtividade e destruição, de liberdade e repressão — por outras palavras, a aprender a gaya sciencia de como usar a riqueza social para moldar o mundo do homem de acordo com os seus Instintos Vitais, na luta combinada contra os provisores da Morte. Esse otimismo baseava-se no pressuposto de que deixara de prevalecer o fundamento lógico, para a contínua aceitação da dominação, que a carência e a necessidade de labuta só “artificialmente” eram perpetuadas — no interesse de preservar o sistema de dominação. Negligenciei ou minimizei o fato desse fundamento lógico “obsoleto” ter sido amplamente reforçado (se não substituído) por formas ainda mais eficientes de controle social. As próprias forças que tornaram a sociedade capaz de amenizar a luta pela existência serviram para reprimir nos indivíduos a necessidade de tal libertação. Sempre que o elevado nível de vida não basta para reconciliar as pessoas com suas vidas e seus governantes, a “engenharia social” da alma e “ciência de relações humanas” fornecem a necessária catexe libidinal. Na sociedade afluente, as autoridades raramente se vêem forçadas a justificar seu domínio. Fornecem os bens; satisfazem a energia sexual e agressiva de seus súditos. Tal como o inconsciente, cujo poder destrutivo representam com tanto êxito, estão aquém do bem e do mal, e o princípio de contradição não tem lugar na sua lógica.
Como a sociedade afluente depende cada vez mais da ininterrupta produção e consumo do supérfluo, dos novos inventos, do obsoletismo planejado e dos meios de destruição, os indivíduos têm de adaptar-se a esses requisitos de um modo que excede os caminhos tradicionais. O “látego econômico”, mesmo em suas formas mais refinadas, já deixou de ser adequado, ao que parece, para garantir a continuidade da luta pela existência na organização antiquada de hoje, assim como as leis e o patriotismo também já não parecem apropriados para assegurar um apoio popular ativo à cada vez mais perigosa expansão do sistema. A administração científica das necessidades instintivas converteu-se, desde há muito, em fator vital na reprodução do sistema: a mercadoria que tem de ser comprada e usada traduz-se em objetos da libido; e o Inimigo nacional, que tem de ser combatido e odiado, é destorcido e inflado a tal ponto que pode ativar e satisfazer a agressividade na dimensão profunda do inconsciente. A democracia de massa fornece os apetrechos políticos para efetuar-se essa introjeção do Princípio de Realidade; não só permite às pessoas (até um certo ponto) escolherem seus próprios senhores e amos, e participarem (até um certo ponto) no Governo que as governa, como também permite aos senhores e amos desaparecerem por trás do véu tecnológico do aparelho produtivo e destrutivo que eles controlam, e esconderem o preço humano (e material) dos benefícios e conforto concedidos àqueles que colaboram. O povo, eficientemente manipulado e organizado, é livre; a ignorância e a impotência, a heteronomia introjetada, é o preço de sua liberdade.
Não faz sentido falar sobre libertação a homens livres — e somos livres se não pertencemos à minoria oprimida. E não faz sentido falar sobre “repressão excessiva” quando os homens e as mulheres desfrutam mais liberdade sexual que nunca. Mas a verdade é que essa liberdade e satisfação estão transformando a Terra em inferno. Por enquanto, o inferno ainda está concentrado em certos lugares distantes: Vietname, Congo, África do Sul, assim como nos guetos da “sociedade afluente”: no Mississippi e no Alabama, no Harlem. Esses lugares infernais iluminam o todo. É fácil e razoável ver neles, apenas, bolsões de pobreza e miséria numa sociedade em crescimento que é capaz de as eliminar gradualmente e sem uma catástrofe. Essa interpretação pode até ser realista e correta. A questão é: eliminadas a que preço — não em dólares e centavos, mas em vidas humanas e em liberdade humana?
Hesito em empregar a palavra — liberdade — porque é precisamente em nome da liberdade que os crimes contra a humanidade são perpetrados. Essa situação não é certamente nova na História: pobreza e exploração foram produtos da liberdade econômica; repetidamente, povos foram libertados em todo o mundo por seus amos e senhores, e a nova liberdade dessas gentes redundou em submissão não ao império da lei, mas ao império da lei dos outros. O que principiou como submissão pela força cedo se converteu em “servidão voluntária”, colaboração em reproduzir uma sociedade que tornou a servidão cada vez mais compensadora e agradável ao paladar. A reprodução, maior e melhor, dos mesmos sistemas de vida passou a significar, ainda mais nítida e conscientemente, o fechamento daqueles outros sistemas possíveis de vida que poderiam extinguir servos e senhores, assim como a produtividade de repressão.
Hoje em dia, essa união de liberdade e servidão tornou-se “natural” e um veículo do progresso A prosperidade apresenta-se, cada vez mais, como um pré-requisito e um produto marginal de uma produtividade auto-impulsionada, em constante busca de novas saídas para o consumo e a destruição, no espaço, exterior e interior, embora seja impedida de “extravasar” nas áreas de miséria — tanto as internas como as externas. Em contraste com esse amálgama de liberdade e agressão, produção e destruição, a imagem de liberdade humana está deslocada: converte-se em projeto da subversão dessa espécie de progresso. A libertação das necessidades instintivas de paz e tranqüilidade, do Eros “associai” autônomo, pressupõe a emancipação da afluência repressiva: uma inversão no rumo do progresso.
A tese de Eros e Civilização, mais completamente desenvolvida no meu livro One-Dimensional Man, era que o homem só podia evitar a fatalidade de um Estado de Bem-Estar Social através de um Estado Beligerante mediante o estabelecimento de um novo ponto de partida, pelo qual pudesse reconstruir o sistema produtivo sem aquele “ascetismo do mundo interior” que forneceu a base mental para a dominação e a exploração. Essa imagem do homem era a negação determinada do super-homem de Nietzsche: um homem suficientemente inteligente e suficientemente saudável para prescindir de todos os heróis e virtudes heróicas, um homem sem impulsos para viver perigosamente, para enfrentar o desafio; um homem com a boa consciência para fazer da vida um fim em si mesmo, para viver com alegria uma vida sem medo. “Sexualidade polimórfica” foi a expressão que usei para indicar que a nova direção de progresso dependeria completamente de oportunidade de ativar necessidades orgânicas, biológicas, que se encontram reprimidas ou suspensas, isto é, fazer do corpo humano um instrumento de prazer e não de labuta. A velha fórmula, o desenvolvimento das necessidades e faculdades predominantes, pareceu-me inadequada; a emergência de novas necessidades e faculdades, qualitativamente diferentes, pareceu-me ser o pré-requisito e o conteúdo da libertação.
A idéia de um novo Princípio de Realidade baseou-se no pressuposto de que as precondições materiais (técnicas) para o seu desenvolvimento estavam estabelecidas ou podiam ser estabelecidas nas sociedades industriais mais avançadas do nosso tempo. Entendia-se implicitamente que a tradução das capacidades técnicas em realidade significava revolução. Mas o próprio escopo e eficácia da introjeção democrática suprimiu o sujeito histórico, o agente de revolução: as pessoas livres não necessitam de libertação e as oprimidas não são suficientemente fortes para libertarem-se. Essas condições redefinem o conceito de Utopia: a libertação é a mais realista, a mais concreta de todas as possibilidades históricas e, ao mesmo tempo, a mais racionalmente, mais eficazmente reprimida — a possibilidade mais abstrata e remota. Nenhuma filosofia, nenhuma teoria pode desfazer a introjeção democrática dos senhores em seus súditos. Quando, nas sociedades mais ou menos afluentes, a produtividade atingiu um nível em que as massas participam de seus benefícios, e em que a oposição é eficaz e democraticamente “contida”, então o conflito entre senhores e escravos também é eficientemente contido. Ou, melhor, mudou a sua localização social. Existe, e explode, na revolta dos países atrasados contra a intolerável herança do colonialismo e seu prolongamento pelo neocolonialismo. O conceito marxista estipulou que somente aqueles que estavam livres dos benefícios do capitalismo seriam possivelmente capazes de transformá-lo numa sociedade livre; aqueles cuja existência era a própria negação da propriedade capitalista poderiam tornar-se os agentes históricos da libertação. Na arena internacional, o conceito marxista retoma sua plena validade. Na medida em que as sociedades exploradoras tornaram-se potências globais, na medida em que as novas nações independentes converteram-se em campo de batalha para seus interesses, as forças “externas” de rebelião deixaram de ser forças estranhas: são o inimigo no interior do sistema. Isso não faz desses rebeldes os mensageiros da humanidade. Por si mesmos, não são (como o proletariado marxista pouco era) os representantes da liberdade. Também neste caso o conceito marxista se aplica de acordo com o qual o proletariado internacional obteria sua armadura intelectual de fora: o “relâmpago do pensamento” atingiria os “naiven Volksboden”. As idéias grandiosas sobre a união da teoria e da prática não fazem jus aos fracos começos de tal união. Entretanto, a revolta nos países atrasados encontrou uma resposta nos países adiantados, onde a juventude está protestando contra a repressão na afluência e a guerra no estrangeiro.
É revolta contra os falsos pais, falsos professores e falsos heróis — solidariedade com todos os infelizes da Terra: existirá alguma ligação “orgânica” entre as duas facetas do protesto? Parece tratar-se de uma solidariedade quase instintiva. A revolta interna contra a própria pátria parece sobretudo impulsiva, suas metas difíceis de definir: náusea causada pelo “sistema de vida”, revolta como uma questão de higiene física e mental. O corpo contra “a máquina” — não contra o mecanismo construído para tornar a vida mais segura e benigna, para atenuar a crueldade da natureza, mas contra a máquina que sobrepujou o mecanismo: a máquina política, a máquina dos grandes negócios, a máquina cultural e educacional que fundiu benesses e maldições num todo racional. O todo agigantou-se demais, sua coesão tornou-se forte demais, seu funcionamento eficiente demais — o poder do negativo concentrar-se-á nas forças ainda em parte por conquistar, primitivas e elementares? O homem contra a máquina: homens, mulheres e crianças lutando, com os mais primitivos instrumentos, contra a máquina mais brutal e destruidora de todos os tempos e mantendo-a em xeque — a guerra de guerrilhas definirá a revolução do nosso tempo?
O atraso histórico poderá redundar de novo na oportunidade histórica de fazer girar a roda do progresso noutra direção. O superdesenvolvimento técnico e científico fica desmentido quando os bombardeiros equipados de radar, os produtos químicos e as “forças especiais” da sociedade afluente desencadeiam-se sobre os mais pobres da Terra, seus barracos, hospitais e campos de arroz. Os “acidentes” revelam a substância: rasgam o véu tecnológico, sob o qual se ocultavam os verdadeiros podêres. A capacidade de matar e queimar em grandes proporções, e o comportamento mental que lhe é concomitante, são subprodutos do desenvolvimento das forças produtivas, dentro de um sistema de exploração e repressão; parecem essas forças tornar-se tanto mais produtivas quanto mais confortável o sistema vai ficando para os seus privilegiados sujeitos. A sociedade afluente demonstrou agora que é uma sociedade em guerra; se os seus cidadãos não o notaram, as suas vítimas já o perceberam, por certo.
A vantagem histórica das nações mais novas, do seu atraso técnico, talvez seja a de poderem saltar o estágio de sociedade afluente. Os povos atrasados, por sua pobreza e fraqueza, poderão ser forçados a renunciar ao uso agressivo e supérfluo da ciência e da tecnologia, para manterem a engrenagem produtiva à la mesure de l’homme, sob o seu controle, para satisfação e desenvolvimento das necessidades vitais, tanto individuais como coletivas.
Para os países superdesenvolvidos, essa oportunidade seria equivalente à abolição das condições em que a labuta do homem perpetua, como um poder autopropulsor, a sua subordinação à engrenagem produtiva e, com ela, às formas obsoletas de luta pela existência. A abolição dessas formas é, como sempre foi, a tarefa da ação política; mas há uma diferença decisiva na situação presente. Ao passo que as revoluções anteriores acarretaram um desenvolvimento mais amplo e mais racional das forças produtivas, nas sociedades superdesenvolvidas de hoje, porém, revolução significaria a inversão dessa tendência: eliminação do superdesenvolvimento e de sua racionalidade repressiva. A rejeição da produtividade afluente, longe de constituir um compromisso com a pureza, a simplicidade e a “natureza”, poderia ser um indício (e uma arma) de um estágio superior de desenvolvimento humano, baseado nas realizações da sociedade tecnológica. Sendo interrompida a produção de bens supérfluos e destrutivos (um estágio que significaria o fim do capitalismo, em todas as suas formas) — as mutilações somáticas e mentais infligidas ao homem por essa produção seriam eliminadas. Por outras palavras, a configuração do meio, a transformação da natureza, podem ser impulsionadas mais pelos Instintos Vitais liberados do que reprimidos, e a agressão estaria sujeita às suas exigências.
A oportunidade histórica dos países atrasados está na ausência de condições que propiciam a tecnologia e a industrialização exploradoras e repressivas, para fins de produtividade agressiva. O próprio fato de que o Estado beligerante afluente desencadeia o seu poderio aniquilador sobre os países atrasados elucida a grandeza da ameaça. Na revolta dos povos atrasados, as sociedades ricas defrontam-se numa forma elementar e brutal, não só com uma revolta social, na acepção tradicional, mas também com uma revolta instintiva: a aversão biológica. A propagação da guerra de guerrilhas no apogeu do século tecnológico é um acontecimento simbólico: a energia do corpo humano revolta-se contra a repressão intolerável e lança-se contra as máquinas da repressão. Talvez os rebeldes nada saibam a respeito dos métodos de organização de uma sociedade, de edificação de uma sociedade socialista; talvez estejam aterrorizados por seus próprios líderes, que sabem alguma coisa a tal respeito, mas a chocante existência dos rebeldes está em total necessidade de libertação e a sua liberdade é a contradição das sociedades superdesenvolvidas.
A civilização ocidental sempre glorificou o herói, o sacrifício da vida pela cidade, o Estado, a nação; raramente indagou se a cidade estabelecida, o Estado ou a nação eram dignos do sacrifício. O tabu sobre a indiscutível prerrogativa do todo sempre foi mantido e imposto, e tem sido mantido e imposto tanto mais brutalmente quanto mais se supõe que o todo é composto de indivíduos livres. A questão está sendo agora formulada — formulada de fora — e entendida por aqueles que se recusam a fazer o jogo dos afluentes; é a questão de saber se a abolição desse todo não será uma precondição para a emergência de uma cidade, Estado, nação, verdadeiramente humanos.
As probabilidades estão esmagadoramente do lado dos poderes vigentes. O que é romântico não é a avaliação positiva dos movimentos de libertação nos países atrasados, mas a avaliação positiva de suas perspectivas. Não há razão justificativa para que a ciência, a tecnologia e o dinheiro não repitam a tarefa de destruição e, depois, executem a tarefa de reconstrução à sua própria imagem e semelhança. O preço do progresso é terrivelmente alto, mas nós o pagaremos. Não só as vítimas ludibriadas, mas também os seus chefes de Estado assim o afirmam. Entretanto, há fotografias que mostram filas de cadáveres seminus, assim dispostos em honra dos vencedores no Vietname: assemelham-se, em todos os seus detalhes, às cenas de cadáveres mutilados e esquálidos que nos chegaram de Auschwitz e Buchenwald. Nada e ninguém pode jamais pagar por esses feitos, nem superar o sentimento de culpa e remorso que reage praticando novas agressões. Mas a agressão pode voltar-se contra o agressor. O estranho mito de que a ferida aberta só pode ser sarada pela arma que praticou a ferida ainda não foi validado na História: a violência que deflagra a cadeia de violência pode dar início a uma nova cadeia. Entretanto, nessa e contra essa sucessão contínua, a luta prosseguirá. Não é o combate de Eros contra Thanatos, porque também a sociedade estabelecida tem seu Eros: protege, perpetua e amplia a vida. E não é uma vida má para os que se submetem e reprimem. Mas, num balanço geral, o pressuposto é que a agressividade em defesa da vida é menos nociva aos Instintos de Vida do que a agressividade na agressão.
Em defesa da vida: a frase tem um significado explosivo na sociedade afluente. Envolve não só o protesto contra a guerra e a carnificina neocoloniais, a queima de cartão de recrutamento, a luta pelos direitos civis, mas também a recusa em falar a língua morta da afluência, em usar roupas limpas, desfrutar os inventos da afluência, submeter-se à educação para a afluência. A nova boêmia, os beatniks e hipsters, os andarilhos da paz — todos esses “decadentes” passaram agora a ser aquilo que a decadência, provavelmente, sempre foi pobre refúgio da humanidade difamada.
Poderemos falar de uma junção das dimensões erótica e política?
Na e contra a organização terrivelmente eficiente da sociedade afluente, não só o protesto radical, mas até a tentativa de formulação, de articulação, de dar palavras ao protesto, assume uma imaturidade pueril, ridícula. Assim, é ridículo e talvez “lógico” que o Movimento pela Liberdade de Expressão, em Berkeley, terminasse em balbúrdia e brigas entre os participantes, por causa do aparecimento de um cartaz com um palavrão. Talvez seja igualmente ridículo e legítimo ver uma significação mais profunda nos distintivos usados por alguns manifestantes (entre eles, crianças) contra os morticínios do Vietname: Make Love, Not War (Faça Amor, Não Guerra). Por outro lado, contra a nova mocidade que se recusa e rebela, estão os representantes da antiga ordem, que já não são capazes de proteger a existência dela sem a sacrificarem numa obra de destruição, desperdício e poluição. Neles se incluem agora os representantes da mão-de-obra sindicalizada — e corretamente, na medida em que o emprego, no quadro da prosperidade capitalista, depende da contínua defesa do sistema social estabelecido.
Poderá o resultado, num futuro próximo, oferecer dúvidas? O povo, a maioria das pessoas na sociedade afluente, está do lado daquilo que é — não com o que podia e devia ser. E a ordem estabelecida é suficientemente forte e eficiente para justificar essa adesão e garantir a sua continuidade. Contudo, o próprio vigor e eficiência dessa ordem podem-se tornar fatores de desintegração. A perpetuação da cada vez mais obsoleta necessidade de trabalho em tempo integral (mesmo numa forma muito reduzida) exigirá o crescente desperdício de recursos, a criação de empregos e serviços cada vez mais desnecessários e o crescimento do setor militar ou destrutivo. Guerras mantidas em sucessivas escaladas, permanente preparação para uma conflagração bélica e administração total podem muito bem bastar para manter o povo sob controle, mas à custa de alterar a moralidade de que a sociedade ainda depende. O progresso técnico, em si mesmo uma necessidade para a manutenção da sociedade estabelecida, fomenta necessidades e faculdades que são antagônicas da organização social do trabalho, sobre a qual o sistema está edificado. No processo de automação, o valor do produto social é determinado em grau cada vez mais diminuto pelo tempo de trabalho necessário para a sua produção. Conseqüentemente, a verdadeira necessidade social de mão-de-obra produtiva declina, e o vácuo tem de ser preenchido por atividades improdutivas. Um montante cada vez maior do trabalho efetivamente realizado torna-se supérfluo, dispensável, sem significado. Embora essas atividades possam ser sustentadas e até multiplicadas sob uma administração total, parece existir um teto para o seu aumento. Esse teto, ou limite superior, seria atingido quando a mais-valia criada pelo trabalho produtivo deixa de ser suficiente para compensar o trabalho não-produtivo. Uma progressiva redução de mão-de-obra parece ser inevitável, e o sistema, para fazer face a essa eventualidade, tem de prover à criação de ocupações sem trabalho; tem de desenvolver necessidades que transcendem a economia de mercado e que podem até ser incompatíveis com êle.
A sociedade afluente está-se preparando, à sua maneira, para essa eventualidade, organizando “o desejo de beleza e os anseios da comunidade”, a renovação do “contato com a natureza”, o enriquecimento do espírito e as honras à “criação pela criação”. O falso timbre de tais proclamações é indicativo do fato de que, dentro do sistema estabelecido, essas aspirações são transladadas para as atividades culturais administradas, patrocinadas pelo Governo e as grandes companhias — um prolongamento de seu braço executivo, penetrando na alma das massas. É quase impossível reconhecer nas aspirações assim definidas as de Eros e sua transformação autônoma de um meio e de uma existência repressivos. Se essas finalidades tiverem de ser satisfeitas sem um conflito irreconciliável com os requisitos da economia de mercado, deverão ser satisfeitas dentro do quadro estrutural do comércio e do lucro. Mas este gênero de satisfação equivaleria a uma negação, pois a energia erótica dos Instintos de Vida não pode ser libertada sob as condições desumanizantes da afluência lucrativa. Certo, o conflito entre o necessário desenvolvimento das necessidades não-econômicas, que validaria a idéia da abolição do trabalho (a vida como um fim em si), por um lado, e a conveniência em manter a necessidade de ganhar a vida, por outro lado, é muito maneável, especialmente enquanto o Inimigo interno e externo puder servir como força propulsora, escorando a defesa do status quo. Contudo, o conflito pode tornar-se explosivo se fôr acompanhado e agravado por perspectivas de mudança na própria base da sociedade industrial avançada, nomeadamente o gradual desmoronamento da empresa capitalista em processo de automação.
Entrementes, há coisas a fazer. O sistema tem seu ponto mais frágil justamente onde apresenta sua força mais brutal: a escalada do seu potencial militar (que parece impor a atualização periódica, com interrupções cada vez mais curtas de paz e de prontidão). Essa tendência só parece reversível sob as mais fortes pressões, e tal reversão ativaria as zonas de perigo na estrutura social: a sua conversão num sistema capitalista “normal” é dificilmente imaginável sem uma séria crise e transformações econômicas e políticas arrasadoras. Hoje, a oposição à guerra e à intervenção militar ataca nas raízes: revolta-se contra aqueles cujo domínio econômico e político depende da contínua (e ampliada) reprodução do estabelecimento militar, seus “multiplicadores” e a política que precisa dessa reprodução. Esses interesses não são difíceis de identificar, e a guerra contra eles não requer mísseis, bombas e napalm. Mas exige, efetivamente, algo que é muito mais difícil de produzir: a divulgação de conhecimentos livres de censura e manipulação, consciência e, sobretudo, a recusa organizada em continuar trabalhando com os instrumentos materiais e intelectuais que estão sendo agora usados contra o homem — para a defesa da liberdade e prosperidade daqueles que dominam o resto.
Na medida em que o trabalhismo, a mão-de-obra sindicalizada, atua em defesa do status quo, e na medida em que a quota-parte de trabalho humano no processo material de produção declina, as aptidões e capacidades intelectuais tornam-se fatores sociais e econômicos. Hoje, a recusa organizada dos cientistas, matemáticos, técnicos, psicólogos industriais e pesquisadores de opinião pública poderá muito bem consumar o que uma greve, mesmo uma greve em grande escala, já não pode conseguir, mas conseguia noutros tempos, isto é, o começo da reversão, a preparação do terreno para a ação política. Que a idéia pareça profundamente irrealista não reduz a responsabilidade política subentendida na posição e na função do intelectual na sociedade industrial contemporânea. A recusa do intelectual pode encontrar apoio noutro catalisador, a recusa instintiva entre os jovens em protesto. É a vida deles que está em jogo e, se não a deles, pelo menos a saúde mental e capacidade de funcionamento deles como seres humanos livres de mutilações. O protesto dos jovens continuará porque é uma necessidade biológica. “Por natureza”, a juventude está na primeira linha dos que vivem e lutam por Eros contra a Morte e contra uma civilização que se esforça por encurtar o “atalho para a morte”, embora controlando os meios capazes de alongar esse percurso. Mas, na sociedade administrativa, a necessidade biológica não redunda imediatamente em ação; a organização exige contra-organização. Hoje, a luta pela vida, a luta por Eros, é a luta política.
Herbert Marcuse (1898-1979). Prefácio político. Eros e Civilização.

terça-feira, março 27, 2012

A produção e o elemento 'animalidade' do homem

A história do industrialismo sempre foi (e hoje o é de forma mais acentuada e rigorosa) uma luta contínua contra o elemento 'animalidade' do homem, um processo ininterrupto, muitas vezes doloroso e sangrento, de sujeição dos instintos (naturais, isto é, animalescos e primitivos) a sempre novos, complexos e rígidos hábitos e normas de ordem, exatidão, precisão, que tornem possível as formas sempre mais complexas de vida coletiva, que são a consequência necessária do desenvolvimento do industrialismo. Esta luta é imposta do exterior e até agora os resultados obtidos, embora de grande valor prático imediato, são em grande parte puramente mecânicos, não se transformaram numa 'segunda natureza'. Mas, todo novo modo de vida, no período em que se impõe a luta contra o velho, não foi sempre durante certo tempo o resultado de uma compressão mecânica? Inclusive os instintos que hoje devem ser superados como ainda bastante 'animalescos' constituíram, na realidade, um progresso notável em relação aos anteriores, ainda mais primitivos: quem poderia enumerar o 'custo', em vidas humanas e em dolorosas sujeições dos instintos, da passagem do nomadismo à vida sedentária e agrícola? (...)
Até agora, todas as mudanças do modo de ser e viver se verificaram através da coerção brutal, através do domínio de um grupo social sobre todas as forças produtivas da sociedade: a seleção ou 'educação' do homem apto para os novos tipos de civilização, para as novas formas de produção e de trabalho, foi realizada com o emprego de brutalidades inauditas, lançando no inferno das subclasses os débeis e os refratários, ou eliminando-os simplesmente.
Antonio Gramsci (1891-1937). Americanismo e fordismo.

segunda-feira, março 19, 2012

A equação da pós-modernidade

De Ricardo Musse:

Os trabalhos de Fredric Jameson sobre o pós-modernismo outorgaram legitimidade intelectual e despertaram interesse por uma série de sintomas que pareciam apenas características de uma moda efêmera. Ao contrário de seus predecessores, entre os quais se destacam Lyotard e Habermas, Jameson procurou entender o pós-modernismo não só como teoria epistemológica ou estética, mas também como fenômeno social. Abordando a pós-modernidade como signo cultural de um novo estágio na história do capitalismo, consumou uma inflexão de esquerda num conceito e numa discussão cujas origens remetiam à manutenção da ordem existente, como mostrou com propriedade Perry Anderson, em "As Origens da Pós-Modernidade" (Ed. Jorge Zahar). Em sua obra mais sistemática e ambiciosa sobre o assunto, "Pós-Modernismo - A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio" (ed. Ática), de 1991, Jameson procura, num afã totalizante de inspiração hegeliana, estabelecer a topografia dessa nova sensibilidade, moldada, segundo ele, pelo esmaecimento do sentido histórico, pela espacialização do que outrora era temporal e pela transmutação, no processo de reificação, das coisas em imagens. Análise formal e histórica Mas, apesar da intensidade da análise, havia algo de insatisfatório nesse livro. Primeiro, certa dificuldade em seguir o preceito marxista, reiterado por ele próprio, de apontar a investigação para as contradições da nova ordem social. Depois, uma insuficiente utilização, na determinação específica do funcionamento em ato dessa nova lógica cultural, de seu principal achado teórico, a tese de que a estrutura do capitalismo tardio promove uma dissolução da autonomia da esfera cultural, gerando uma prodigiosa expansão até o ponto em que tudo na vida social -do valor econômico e do poder do Estado às práticas individuais e à estrutura da psique- passa a ser considerado cultural. Tudo isso assoma ao primeiro plano do livro, num visível descompasso entre análise formal e histórica.
Para superar esses impasses, Jameson seguiu a pista -aberta, mas não desenvolvida naquela obra- segundo a qual a descrição e a decodificação de uma época pós-moderna nada mais foram do que uma precoce e insuficiente tentativa de compreender a nova fase do capitalismo. A virada de Jameson pode ser documentada em um artigo seu publicado no número especial da revista "Monthly Review", dedicado ao pós-modernismo (editado em livro como "Em Defesa da História", ed. Jorge Zahar).
Enquanto todos os participantes seguiam a vereda aberta por ele, procurando identificar a lógica cultural da sociedade atual, Jameson, por sua vez, procurava entender -na mesma chave de antes, tomando-a como um fenômeno cultural sintomático da nova fase do capitalismo- a moda intelectual subsequente: a globalização. "A Cultura do Dinheiro", recém-lançado pela ed. Vozes, congrega seis ensaios, três deles pinçados do livro "Cultural Turn" (ed. Verso, EUA), dois publicados posteriormente na "New Left Review".
Nesse movimento em que desloca a ênfase do pós-modernismo para a globalização, da cultura para a economia, Jameson encontrou o que faltava em seu livro de 1991, uma adequada descrição daquilo que nomeia como terceiro estágio do capitalismo. As análises de Ernest Mandel, em "O Capitalismo Tardio" (ed. Abril) -um livro de 1972, redigido no momento da inflexão que conduziu o capitalismo a uma nova fase-, cedem lugar à recente teoria de Giovanni Arrighi, exposta principalmente em "O Longo Século 20" (ed. Contraponto, 1996).
Na versão de Arrighi, os movimentos do capitalismo, descontínuos e em perpétua expansão, se cristalizam em um esquema cíclico que se desloca ao longo de nações e espaços geográficos distintos: a hegemonia migrou das cidades italianas para a Holanda, daí para a Inglaterra e, no século 20, para os EUA.
Mas o que interessou a Jameson, particularmente, foi a descrição do movimento interno de cada ciclo, uma tríade em que primeiro ocorre "a implantação de capital que busca investimentos numa região nova; em seguida, o desenvolvimento produtivo da região em termos de indústrias e manufaturas; e, finalmente, uma desterritorialização do capital na indústria pesada para possibilitar sua reprodução e multiplicação na especulação financeira". Assim, o que geralmente se denomina globalização seria apenas um aspecto de um processo mais profundo, o ingresso do capitalismo no terceiro estágio, de expansão financeira.
Com esse diagnóstico do presente histórico, Jameson recompõe alguns fios que pareciam soltos em suas análises. A abstração inerente ao capitalismo financeiro possibilita uma equalização entre análise histórica e formal. A lógica cultural do presente não se apresenta mais como um fechado universo foucaultiano, mas como expressão, na esteira da tradição marxista, da dialética da modernidade. Por fim, a tese da colonização do real pela cultura, simultânea à subordinação da produção cultural à lógica da mercadoria, pode ser desdobrada em todas as suas implicações.
Não se trata apenas de restabelecer, em outro patamar, a conexão entre economia e cultura, desplugada desde o declínio do marxismo ocidental em meados dos anos 70, mas também de precisar, à luz de um novo contexto, a função da crítica. O predomínio do capital financeiro intensificou a dissolução da autonomia do estético, já prevista por Adorno e Horkheimer no conceito de indústria cultural, a tal ponto que inviabilizou o projeto comum de artistas modernistas e marxistas ocidentais de expressarem as contradições inerentes à modernidade.
No momento atual, a associação, a reciprocidade entre crítica cultural e crítica social, a possibilidade de "pensar dialeticamente a evolução do capitalismo como um progresso e uma catástrofe ao mesmo tempo" parece ter se tornado uma tarefa solitária da crítica.
A Cultura do Dinheiro 208 págs. de Fredric Jameson. Trad. Marcos César Soares e Maria Elisa Cevasco. Ed. Vozes (r. Frei Luís, 100, CEP 25689-900, Petrópolis, RJ, tel. 0/xx/ 24/4237-5112).
Folha de São Paulo, 15 de abril de 2001.

sexta-feira, março 16, 2012

Utopia e engajamento

Entrevista de Susan Buck-Morss a Willi Bolle, Elvis Cesar Bonassa e Fernanda Pitta
No encerramento do último “International Walter Benjamin Congress”, em Amsterdã (de 24 a 26 de julho de 1997), Susan Buck-Morss provocou polêmica entre os participantes ao concluir sua conferência “Revolutionary time: the Vanguard and the Avantgarde” com um ataque à falta de compromissos políticos dos intelectuais na universidade. Professora da Cornell University (EUA), é autora de, entre outros, Origin of negative dialectics (1977) e Dialectics of seeing (1989). Ao lado de Martin Jay, Buck- Morss é considerada uma das principais especialistas norte-americanas na obra dos autores da assim chamada Escola de Frankfurt. Na entrevista a seguir, ela retoma temas apresentados em sua conferência, fala sobre seu projeto de releitura de Hegel e comenta a obra de Adorno e Benjamin.

Sua recente pesquisa sobre Hegel pretende investigar o significado político de alguns de seus conceitos filosóficos para a época em que foram concebidos, com ênfase na dialética senhor-escravo. Você poderia explicar melhor essa abordagem?
Estou tentando pensar seriamente o fato de virmos estudando o passado com antolhos eurocêntricos e disciplinares, e também o fato de que os atores históricos desse passado não eram, eles mesmos, tão cegos quanto somos. Hegel era um ávido leitor de jornais, atualizado com a imprensa inglesa tanto quanto com a alemã, além de vivamente interessado pela Revolução Francesa e pelos acontecimentos políticos que eclodiam nas outras nações. É pouco provável que ele, ao conceber a dialética senhor-escravo, não tivesse em mente a existência de escravos reais em países reais (como, por exemplo, nas colônias caribenhas) ou que esses escravos, como o seu escravo filosófico, não fossem capazes de se rebelar. 1803 é a data da revolução haitiana e é também quando a temática do senhor-escravo aparece pela primeira vez nos escritos de Hegel. Minha abordagem lança mão do princípio da montagem, justapondo retalhos da história – normalmente mantidos separados no modo em que o passado nos aparece – a fim de ter uma imagem diferente das origens do presente. É um modo de libertar os fatos do passado para que possam ser usados em outras constelações no presente.
De que maneira a nova aproximação de Hegel proposta por você muda a interpretação tradicional da filosofia hegeliana?
“Hegel” é entendido como uma filosofia, não como um filósofo (um ser vivo, uma personagem histórica). Com isso, é dada à sua palavra uma autoridade que hoje em dia traz consigo toda hegemonia eurocêntrica por detrás. Ao percebermos que Hegel está descrevendo condições históricas reais (não somente a escravidão na América Latina ou a decretação do fim da escravidão durante a Revolução Francesa – com o seu reestabelecimento, por Napoleão, nas colônias –, mas também a libertação dos servos na Europa Oriental e mesmo a servidão contratada, típica das colônias britânicas), sua filosofia torna- se legível como um comentário da época. E, entretanto, a simultaneidade desses acontecimentos históricos não se adequa à narrativa hegeliana da História Universal – que era seu próximo projeto filosófico depois da Fenomenologia do espírito e que é um documento fundador do pensamento eurocêntrico. A atual importância política dessa leitura é que ela contribui para minar o discurso do “desenvolvimento”, do “progresso” ou “atraso” histórico. Todas as partes do planeta estão no tempo presente – do mesmo modo que, em 1800, a escravidão no Caribe era um fato da história européia, não algum resíduo “pré-histórico” africano, como Hegel tentou argumentar na Filosofia da História, para tornar convincente sua teoria do Weltgeist.
Você afirma que Hegel não falava tão abstratamente quanto os intérpretes contemporâneos tentam mostrar. Isso quer dizer que esses conceitos filosóficos são também escolhas políticas? Ao dirigir seus estudos atuais para o pensamento político na América Latina, que relação você estabelece com sua leitura de Hegel? A dialética senhor-escravo pode ser usada como metáfora para a política latino-americana?
É curioso notar que a “libertação” da servidão como metáfora básica para o pensamento político moderno europeu torna-se hegemônica precisamente no momento em que a escravidão real transforma-se no fundamento da produção de um novo modo de capitalismo (exploração do trabalho em função de lucros teoricamente infinitos). Não é que Hegel “escolheu” uma metáfora da escravidão, mas que nós esquecemos a realidade que estava por detrás dela. Se alguém hoje falasse em revolução nos termos de uma explosão nuclear, imediatamente saberíamos que a metáfora se refere a uma certa realidade, e que essa realidade deveria ser discutida ao consideramos o significado do termo.

O interesse de sua pesquisa parece ter se deslocado da ex-União Soviética para a América Latina. Qual o significado dessa mudança?
Com a dissolução do bloco soviético – e isso não pode ser encarado como uma metáfora, mas sim como um fato –, um certo discurso também se desfez. A distância entre ricos e pobres, por exemplo, nunca foi tão grande; mas a única linguagem de que dispúnhamos para falar a respeito está em ruínas. Daí a necessidade de pegar os fragmentos, alguns fragmentos, e tentar reuni-los em novas constelações. Esse é o propósito de passar da União Soviética para Hegel e o Haiti. Realmente não importa para onde olhamos ou com quais fragmentos trabalhamos – há sempre algo a ser salvaguardado, e um novo modo de reorientarmos a linguagem e a política. Não me parece de grande ajuda dizer: está bem, tivemos a “modernidade” e ela está acabada, agora estamos “na” pós-modernidade – como se a história se movesse numa progressão ao longo dessas épocas... Isso não passa de um resíduo da fantasia hegeliana da História Universal, do qual devemos abrir mão. Em outras palavras: temos ainda o passado cheio de “fatos” e acontecimentos e tudo o mais, e somos obrigados a lidar com ele sem a ajuda de uma narrativa filosófica da história que o explique como um processo total.
Recolher os fragmentos, fazer novas constelações. Essa é uma tarefa política para os intelectuais?
Sim, já que quase todo trabalho intelectual é, de alguma maneira, relacionado com o passado, e já que é inegável que a maneira pela qual os fragmentos do passado têm sido organizados a fim de produzir a ilusão de um progresso contínuo foi criticada devastadoramente pelos próprios fatos da história. Estamos sentados, como a Melancolia de Dürer, rodeados por todos esses fragmentos de conhecimento, e precisamos juntá-los de alguma maneira, de um modo que tornem possível a prática política. Redimir o passado não deve ser entendido como uma tarefa demasiadamente mística ou nostálgica (não estou tentando mimetizar o lado nostálgico de Benjamin aqui), mas simplesmente aceitar que o passado está em ruínas e que, entretanto, não temos nada além do passado para “ler”, se quisermos nos orientar no presente – pois não existe nenhum “futuro” no sentido cosmológico-temporal em que Hegel (e também Marx e Lenin) acreditava. Tais critérios benjaminianos de reordenação do passado se distinguem também dos da Ecole des Annales, por exemplo. Esta se via fazendo história, ao passo que Benjamin estava fazendo política/filosofia (ele não as separava) por meio da história, ao ler os fragmentos históricos de uma nova maneira. Há ainda muito da atitude do historiador profissional na Escola dos Annales – em demasia, eu diria, não no sentido de que as fontes sejam importantes (elas realmente o são), mas na filosofia da verdade que opera nos escritos da Escola. Descobrir como o passado “realmente foi” é uma busca historicista. Benjamin, pelo contrário, estava interessado em como o passado pode fornecer uma experiência no presente, ou melhor, como o passado pode se tornar uma fonte de iluminação para o presente, abrindo espaço para a transformação política.
Diante da atual cena intelectual presente na Universidade, sua proposta não corre o risco de ecoar no vazio? Não é crescente o número de intelectuais sem quaisquer interesses políticos?
Dizer que os intelectuais de hoje não têm preocupações políticas não quer dizer que eles não se importam. É como dizer que alguém não está amando no momento e que, por conseguinte, ele não se importa com amor, ou que não haveria uma mudança radical naquilo com que ele se importa caso se apaixonasse amanhã. Peguem como exemplo o fenômeno da morte da princesa Diana (independentemente do que se possa dizer cinicamente sobre ela ou a monarquia, ou mesmo sobre a mídia) e compare com a morte da Irmã Teresa. Chegou-se a comentar que essa pobre freira era na verdade uma oportunista querendo ser beatificada. Não deixa de ser interessante que uma aura de santidade possa ser construída ao redor de uma celebridade e uma motivação egoísta de realização pessoal possa ser atribuída a uma freira. Mas a mistura de santidade e de oportunismo cínico indica que ambos, pensamento crítico e pensamento utópico, estão vivos e passam bem. Não importa o quanto sua expressão seja distorcida pela mídia cultural: há uma enorme quantidade de fantasia utópica à espera de um meio de expressão político e progressista – o que me faz otimista. O “passado”, como vocês sabem, está cheio de todos os tipos de munições que podem ser usadas contra estruturas de exploração no presente – estruturas que também podem ser intelectuais. Devemos ter em mente o seguinte raciocínio (e Max Weber é um exemplo disso): tentar evitar a exploração intelectual por meio da transformação da política em tabu pode ser um tiro pela culatra...
 
A fantasia utópica, como esta ao redor da morte da princesa Diana, não pode ser apenas um fenômeno de mídia, sem nenhum conteúdo emancipatório para o presente? A Dialética do esclarecimento de Adorno e Horkheimer fez críticas severas à fantasia utópica promovida pela indústria cultural, já que seu contéudo é incapaz até mesmo de manter as recusas que se encontram nas ambigüidades das “promessas de felicidade” feitas pela arte.
As críticas de Adorno e Horkheimer são muito válidas. Entretanto, o problema não reside na fantasia utópica propriamente, mas nos abusos feitos quando ela é manipulada segundo certos fins. Como o próprio Adorno disse, precisamos de mais razão esclarecida, e não menos. Benjamin observou que nem todos os textos são legíveis em todos os tempos, mas é possível que um texto que tenha se tornado impenetrável subitamente se abra para uma nova leitura – por meio da justaposição de Hegel e Haiti, por exemplo.
Utilizar conceitos benjaminianos, extrapolar a partir deles – e com eles – para constelações do mundo atual – por que isso foi considerado um tabu durante as discussões sobre sua conferência no Congresso Internacional Walter Benjamin, em Amsterdã?
É um problema de adequação a fronteiras – o tabu contra a transformação do trabalho acadêmico em algo realmente relevante, em termos políticos, para o que se passa do lado de fora da Academia nos dias de hoje... Mas fronteiras são muito preocupantes porque elas nos fazem pensar nas coisas como contidas em si mesmas, quando elas de fato não o são. Não acho que o trabalho filológico não seja valioso, mas gostaria de voltar ao ponto: é uma insensatez proibir a discussão acerca do mundo atual, para além das conferências e salas de aula, quando discutimos Benjamin ou quem quer que seja. Mas deixem-me perguntar: o que vocês acham que está em jogo em uma Associação Internacional Walter Benjamin?

Um dos propósitos de reunir intelectuais para o estudo da obra de Walter Benjamin deveria ser o de fornecer leituras acuradas de seus textos, leituras que atentem para o que ele efetivamente escreveu e também para a diferença histórica existente entre seus textos e a realidade histórica que nos cerca e que tentamos decifrar.
Sim, decifrar. A tarefa é decifrar tanto o passado quanto o presente; ao traduzir o passado no presente, revivemos seu conteúdo. A justaposição entre passado e presente muda seus contornos. Ambas são tarefas de decifração.

É possível que Benjamin pensasse a fantasia utópica de maneira diferente da de Adorno e Horkheimer? Se pensarmos em seus escritos sobre Fourier, por exemplo, ou mesmo sobre o cinema, a aparência é de que realmente são concepções diferentes.
Eu considero que os três pensadores afirmavam a fantasia utópica, e também os três estavam tremendamente conscientes dos modos pelos quais essa fantasia pode ser manipulada pelo poder.
 
Mas não há diferenças significativas entre eles precisamente quanto a esse ponto? As diferentes concepções sobre o papel utópico do cinema, por exemplo, e seu uso para a politização das massas – para Adorno, a fantasia utópica seria somente uma utopia negativa, que se converte em seu contrário quando se tenta usá-la para dar base a qualquer prática coletiva. Por outro lado, Benjamin, influenciado talvez por Brecht, defendia os conteúdos emancipatórios do cinema, pois eles poderiam trazer às massas uma sensibilidade diferente, revolucionária, reordenando os elementos postos em um dado momento histórico, dando a eles uma nova configuração.
Certamente diferenças existem, mas não acho útil aqui tentar tomar partido de um ou de outro. Não há nada intrínseco ao cinema que o torne politicamente impotente. Pelo contrário, o cinema é fonte de técnicas de justaposição e tradução, cuja importância acabamos de mencionar. Como você discute o papel da fantasia utópica em seu mais recente livro, Dreamworld and Catastrophe? Uma das coisas que tentei mostrar em Dreamworld and Catastrophe foi que os sonhos utópicos dos EUA e da URSS eram bastante similares. De fato, surpreendentemente similares e ao mesmo tempo distantes de nossa própria maneira de pensar deste fim de século. Vejam o caso de amor com a indústria pesada, por exemplo, que deveria trazer fartura material para as massas. Ele era baseado na real ignorância das catástrofes ecológicas daí resultantes, mas ao menos havia uma preocupação com as massas, ou pelo menos se falava em cuidar delas. Vocês sabiam que o mesmo escritório de arquitetura, o de Albert Khan, que construiu para a Ford a fábrica de motores River Rouge nos EUA, foi comissionado por Stálin para construir fábricas automotivas soviéticas como parte do primeiro plano qüinqüenal? Portanto, não é apenas uma questão de sonhos similares – eles tinham um mesmo sonho. O sonho coletivo de um futuro emancipado que se traduzia, na realidade, em uma economia fortemente baseada na indústria de guerra. O problema é essa palavra: “futuro”. O pensamento utópico deve dizer respeito à felicidade no presente – este é o lado fourierista no pensamento de Benjamin. A valorização da felicidade sensorial, da felicidade material e corpórea, é algo que os membros da Escola de Frankfurt tinham em comum.

Para encerrar, você poderia falar um pouco sobre a permanência da Dialética do esclarecimento em seu 50o aniversário?
Minha leitura da Dialética do esclarecimento difere da interpretação predominante. O livro fala claramente que o esclarecimento não é páreo para o capitalismo (o termo aparece em diversos momentos-chave do livro), e nesse sentido o livro é “marxista” de uma forma francamente não apologética. Ao mesmo tempo (e essa é a grande contribuição do ensaio de Benjamin sobre “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”), assim como a revolução capitalista dos meios de produção libera um potencial socialista que contradiz as relações capitalistas de produção, o mesmo é verdade para a produção de objetos culturais (o potencial democrático do cinema, por exemplo). Portanto, se o esclarecimento não vai nunca, por si só, acabar com o capitalismo, ele pode ao menos nos chamar a atenção para as relações no interior do capitalismo que impedem seu próprio potencial utópico. Um exemplo perfeito é a tentativa vã de manter direitos sobre a “propriedade” cultural na época das máquinas de xerox e das cópias em vídeo ou cassete. A máquina xerox é um emblema de socialismo plantado em todo escritório de corporação. O ciberespaço é outro exemplo. Ao surgir, ele não é ainda um espaço de relações capitalistas – é preciso transformá-lo em tal. Cabe a nós, enquanto produtores de cultura, tentar resistir a essas tentativas. Talvez nossa própria “conversa virtual” possa ser parte desse processo. É agradável pensar assim.
A entrevista foi concedida on line em outubro de 97 via Internet (com o apoio técnico de Fábio Tagnin, do Universo Online) e revista posteriormente pela entrevistada.
Tradução: Fernanda Pitta e Marcio Sattin.
Publicado em Cadernos de Filosofia Alemã 3, PP. 61-68, 1997 62
Retirado do site Antivalor.

quinta-feira, março 15, 2012

Veja vê vantagens na leitura de lixo

Por Janer Cristaldo:

Quem acredita em tudo que lê, melhor não tivesse aprendido a ler, diz um provérbio oriental.
Vou mais longe. Quem se nutre de best-sellers, nem devia ter aprendido a ler. Ainda há pouco, eu afirmava que fora da leitura não há salvação. Em meus dias de universidade, uma aluna me perguntava. Professor, é verdade que a leitura pode transformar a gente? Ora, é uma das poucas coisas que realmente transformam, eu diria. Pessoas, viagens, encontros, doenças, adversidades sempre mexem com nossas vidas. Mas a leitura continua sendo o método mais eficaz de mutação.
Mas há leituras e leituras. Uma coisa é ler Harry Potter e outra é ler Crime e Castigo. Conheço inclusive leitores contumazes – e os conheço de perto - que lêem talvez até mais do que eu leio, mas não fazem distinção alguma entre Rowling e Dostoievski. Crime e Castigo? Ah, sim a história daquele estudante que matou uma velhota? E estamos conversados. Como se fosse entrecho da novela das oito. As reflexões do russo sobre a vida e a morte, sobre o homem, Deus e a sociedade, escorrem como água entre os dedos. Ou seja, ler nem sempre é sinônimo de aquisição de cultura.
A revista Veja desta semana dá capa ao último best-seller tupiniquim, o padre Marcelo Rossi, com o título “O milagre da leitura”, enfocando Ágape, livro que já vendeu 7,5 milhões de exemplares. Em editorial, a revista saúda “os resultados auspiciosos do censo encomendado ao Upea pela Câmara Brasileira do Livro. Os dados mostram que, de 2009 para 2010, o número de exemplares impressos no Brasil bateu em quase 500 milhões, com um crescimento de 23%.”
Desse montante, 230 milhões pertencem ao que chamo de indústria textil – assim mesmo, sem acento, a indústria do texto. 144 milhões são comprados pelo governo e distribuídos gratuitamente às escolas, o que explica em boa parte a perenidade de autores que há muito estão mortos e bem mortos. E explica também a ojeriza dos jovens à leitura.
Muito bem. Mas que está lendo o brasileiro? Para começar, o tal de Ágape, do padre Marcelo Rossi. Ladeado por Zíbia Gasparetto, escritora espírita cujos livros são ditados por entidades de luz e já venderam 16 milhões de exemplares. Mais Jô Soares, que mistura o imperador D. Pedro II com Sarah Bernhardt e Sherlock Holmes, mais um violino Stradivarius. Mais outros ilustres nomes das letras pátrias, dos quais jamais ouvi falar: Thalita Rodrigues, crônica do cotidiano dos jovens; Ana Beatriz da Silva, série sobre as angústias da mente; Roberto Shinyashiki, o guru corporativo que fala sobre felicidade. Jô à parte, tudo auto-ajuda, esse gênero abominável da literatura, que vende falsas esperanças para os pobres de espírito.
Isso que Paulo Coelho não foi arrolado na reportagem, por não ter publicado título novo desde 2010. E sem falar em Gabriel Chalita, autor polímata que em seus 43 anos escreveu mais de 60 livros. Dos quais ninguém lembra título algum.
O Brasil está cheio de escritores que vendem milhões de livros e dos quais jamais ouvimos falar. Alguém conhece algum título – ou pelo menos ouviu falar – do padre Lauro Trevisan, de Santa Maria? Pois o homem – leio na Wikipédia – é autor de mais de 40 livros, todos eles best-sellers a nível internacional, com mais de dois milhões de exemplares vendidos. Em Portugal, as suas obras Apresse o Passo Que o Mundo Está a Mudar (2001), Como Usar o Seu Poder para Qualquer Coisa (2002), Conhece-te e Conhecerás o Teu Poder (2002), Regressão de Idade para a Libertação Total (2001) e Relax com Programação Positiva (2001) estão publicadas pela Editora Pergaminho. Os gaúchos têm uma celebridade em seus pagos e a desconhecem. Estes livros, você não os vê nem em livrarias. Exceto, é claro, na livraria que o padre administra em Santa Maria. São vendidos a partir de conferências e cursos de auto-ajuda.
Quem me acompanha, sabe de minha ojeriza aos best-sellers. Se um livro vendeu de repente um milhão de exemplares, este é um de meus critérios para não comprá-lo. Não existe tanta gente inteligente no mundo. Não existe um único best-seller em minha biblioteca. Aliás, quando saio atrás de um título, tenho de trotar entre uma livraria e outra, pois trata-se de livro geralmente pouco divulgado.
Os brasileiros estão lendo mais, diz Veja. Ora, de que adianta ler mais, quando o que se lê é isso? “O intelecto só precisa de uma faísca, mesmo que fraca, para acender o fogo da curiosidade e abrir uma clareira acolhedora que dará início ao interminável processo de enriquecimento do mundo interior. Qualquer livro pode ser essa faísca”. A frase soa a texto de auto-ajuda. Pelo jeito, o redator se deixou contaminar ao lidar com tanto lixo.
Paulo Coelho ou padre Marcelo, Zíbia ou Trevisan, Thalita ou Chalita não produzem faísca alguma, não acendem fogo algum nem abrem clareira alguma. Quem lê essa gente jamais vai chegar a Poe ou Pessoa, a Dostoievski ou Orwell, a Cervantes ou Nietzsche.
Não vejo vantagem alguma neste maior número de brasileiros que lêem, quando o que se lê é lixo.