domingo, julho 24, 2005

A criminalidade de butique

por Túlio Lima Vianna

Em 1940, Edwin H. Sutherland publicou um ensaio na American Sociological Review intitulado “White-Collar Criminality” no qual tratava de um tipo de criminalidade até então muito pouco discutida na criminologia: a criminalidade econômica, praticada por pessoas ocupantes de posições sociais de prestígio. A expressão “colarinho branco”, uma alusão às camisas usadas pelos empresários, tornou-se então a marca do diferencial de classe nas ciências penais.

A recente prisão da dona da butique Daslu e a conseqüente reação dos setores hegemônicos da sociedade aos supostos excessos da polícia federal é a prova cabal de que há algo muito especial que difere a “white-collar criminality” ou, em uma tradução livre, a criminalidade de butique, da criminalidade genérica encontrada nas ruas das grandes metrópoles.

Tomemos a nota oficial da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) sobre o caso:

"A prisão antecipada, sem sentença, seja qual for sua natureza, só pode ter lugar para os infratores perigosos que ameaçam a ordem pública, que causam prejuízos irreparáveis à sociedade e à própria segurança dos processos judiciais."

A criminalidade de butique não é perigosa? Os criminosos ricos não ameaçam a ordem pública? A sonegação de impostos não causa prejuízos irreparáveis à sociedade? Os empresários não têm maior chance de fugir do Brasil e, com isso, ameaçar a segurança dos processos judiciais?

Quem afinal a FIESP considera um criminoso perigoso? O ladrão de carteiras, de carros, de bancos? Quem é mais perigoso para a sociedade o ladrão ou o sonegador? Quem se apropria do dinheiro privado ou do dinheiro público?

Segue a nota afirmando que:
"O combate à criminalidade não pode prescindir do respeito ao Estado de Direito, sendo inadmissível que alguém possa ser preso, ou tenha sua residência, escritório ou empresa violados sem que a segurança de sua prévia culpa esteja evidenciada e que, pior ainda, seja essa prisão realizada de modo extravagante, com exibição de algemas, com publicidade afrontosa, como um espetáculo pirotécnico, expondo o cidadão à condenação pública, para todo o sempre."

Todos os dias favelas e barracos são invadidos pela polícia sem que “a segurança de prévia culpa” de quem quer que seja esteja evidenciada. Alguma vez a FIESP divulgou nota oficial sobre isso? Todos os dias ladrões e traficantes são presos, algemados e levados à delegacia onde são exibidos em cadeia nacional de televisão para alívio dos “homens de bem”. Isso nunca incomodou os empresários da FIESP?

O que incomoda à FIESP e à maioria dos que levantaram suas vozes para defender os direitos da empresária não é propriamente o desrespeito aos direitos do acusado, mas a prisão de alguém de sua classe social. O que incomoda é saber que sonegação de impostos é crime e que, pelo desencadear dos fatos, muitos colegas podem acabar em situação semelhante. O que incomoda é a perda da imunidade penal de uma classe, representada simbolicamente por esta prisão.

Enquanto a mídia se limitava a cobrir as ações policiais em favelas, reafirmando o estereótipo do pobre bandido, a FIESP nunca se indignou com a “pirotecnia” das reportagens. Bastou os colarinhos-brancos e as roupas de butique fazerem um breve desfile nas delegacias de polícia, para que novos paladinos dos direitos humanos pulassem pelo empresariado.

A criminalidade de butique não incomoda aos ricos, pois não derrama sangue, não se esconde nos morros e, principalmente, não gera medo. Mesmo quando noticiada na imprensa, seus personagens não são marginais, bandidos ou muambeiros. São empresários; quase cidadãos de bem. A criminalidade de butique quase não é crime.

Parafraseando Orwell: todos têm direitos humanos, mas alguns humanos têm mais direitos do que outros.



Túlio Lima Vianna é doutorando e professor de Direito da PUC Minas.