segunda-feira, setembro 24, 2007

De profundis



É um campo de restolho, sob uma chuva negra.
É uma árvore castanha, que se eleva solitária.
É um vento sibilante, que ronda cabanas vazias –
Que triste tarde esta.

Passando pela aldeia
A terna órfã recolhe ainda a escassa espiga.
Os grandes olhos de oiro procuram no entardecer
E o seu seio aspira ao noivo celestial.

No regresso
Os pastores encontraram o doce corpo
Apodrecido entre espinheiros.

Sou uma sombra longe de ameaçadoras aldeias.
Bebi da fonte do bosque
O silêncio de Deus.

Sobre a minha fronte cai frio metal.
Aranhas procuram o meu coração.
Há uma luz que se apaga na minha boca.

À noite encontrei-me numa charneca,
Cheio de dejectos e poeira sideral.
Nas aveleiras
Voltavam a soar anjos de cristal.

(1913)

Georg Trakl
(Tradução de João Barrento)

terça-feira, setembro 18, 2007

Perguntas de um Operário Letrado



Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilónia, tantas vezes destruida,
Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
Da Lima Dourada moravam seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde
Foram os seus pedreiros? A grande Roma
Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio
Sò tinha palácios
Para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida
Na noite em que o mar a engoliu
Viu afogados gritar por seus escravos.

O jovem Alexandre conquistou as Indias
Sózinho?
César venceu os gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?
Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha
Chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a guerra dos sete anos
Quem mais a ganhou?

Em cada página uma vitòria.
Quem cozinhava os festins?
Em cada década um grande homem.
Quem pagava as despesas?

Tantas histórias
Quantas perguntas
Bertold Brecht (1898-1956)

sexta-feira, setembro 14, 2007

Discurso no Aniversário de "The People's Paper"



Proferido em Londres, a 14 de Abril de 1856

Primeira Edição: Publicado no The People's Paper de n." 207, de 19 de Abril de 1856.
Fonte: . Obras Escolhidas em três tomos, Editorial "Avante!"
Tradução: José BARATA-MOURA (Traduzido do inglês e publicado segundo o texto do jornal).
Transcrição e HTML: Fernando Antônio de Souza Araújo, março 2007.
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Editorial "Avante!" - Edições Progresso Lisboa - Moscovo, 1982.


As chamadas revoluções de 1848 não foram mais do que pobres incidentes — pequenas fracturas e fissuras na dura crosta da sociedade europeia. No entanto, elas denunciavam o abismo. Por detrás da superfície aparentemente sólida, elas revelavam oceanos de matéria líquida que apenas precisavam de expansão para fazer em bocados continentes de rocha firme. Barulhenta e confusamente, proclamaram a emancipação do proletário, isto é, o segredo do século XIX e da revolução deste século.

Esta revolução social — é certo — não foi uma novidade inventada em 1848. O vapor, a electricidade e a máquina de fiação foram revolucionários de um tipo muito mais perigoso do que mesmo os cidadãos Barbès, Raspail e Blanqui. Mas, embora a atmosfera em que vivemos pese sobre cada um de nós com uma força de 20 000 libras, senti-la vós? Não a [sentis] mais do que a sociedade europeia antes de 1848 sentia a atmosfera revolucionária que a envolvia e pressionava de todos os lados.

Há um grande facto, característico deste nosso século XIX, um facto que nenhum partido ousa negar. Por um lado, despontaram para a vida forças industriais e científicas, de que nenhuma época da história humana anterior alguma vez tinha suspeitado. Por outro lado, existem sintomas de decadência que ultrapassam de longe os horrores registados nos últimos tempos do Império Romano.

Nos nossos dias, tudo parece prenhe do seu contrário. Observamos que maquinaria dotada do maravilhoso poder de encurtar e de fazer frutificar o trabalho humano o leva à fome e a um excesso de trabalho. As novas fontes de riqueza transformam-se, por estranho e misterioso encantamento, em fontes de carência. Os triunfos da arte parecem ser comprados à custa da perda do carácter. Ao mesmo ritmo que a humanidade domina a natureza, o homem parece tornar-se escravo de outros homens ou da sua própria infâmia. Mesmo a luz pura da ciência parece incapaz de brilhar a não ser sobre o fundo escuro da ignorância. Todo o nosso engenho e progresso parecem resultar na dotação das forças materiais com vida intelectual e na redução embrutecedora da vida humana a uma força material. Este antagonismo entre a indústria e a ciência modernas, por um lado, e a miséria e a dissolução modernas, por outro; este antagonismo entre os poderes produtivos [productive powers] e as relações sociais da nossa época é um facto palpável, esmagador, e que não é para ser controvertido. Alguns partidos podem lamentar-se disso; outros podem desejar ver-se livres das artes modernas, a fim de se verem livres dos conflitos modernos. Ou podem imaginar que tão assinalável progresso na indústria requer que seja completado por uma igualmente assinalável regressão na política. Pela nossa parte, não nos engana a forma do espírito astucioso que continua a marcar todas estas contradições. Sabemos que, para trabalharem bem, as novas forças da sociedade apenas precisam de ser dominadas por novos homens — e os operários são esses [novos homens]. Eles são tanto uma invenção dos tempos modernos como a própria maquinaria. Nos sinais que desorientam a classe média, a aristocracia e os pobres profetas da regressão, reconhecemos o nosso bom amigo, Robin Goodfellow(1*), a velha toupeira que sabe trabalhar a terra tão rapidamente, esse digno sapador — a Revolução. Os operários ingleses são os primeiros filhos da indústria moderna. Certamente que não serão, então, os últimos a ajudar a revolução social produzida por essa indústria, uma revolução que significa a emancipação da sua própria classe em todo o mundo, [uma revolução] que é tão universal como a dominação do capital e a escravidão assalariada. Eu conheço as lutas heróicas por que a classe operária inglesa passou desde os meados do século passado — lutas menos celebradas, porque são amortalhadas em obscuridade e abafadas pelo historiador da classe média. Para vingar as malfeitorias da classe dominante havia na Idade Média, na Alemanha, um tribunal secreto, chamado "Vehmgericht". Se se visse uma cruz encarnada a marcar uma casa, as pessoas sabiam que o seu proprietário estava condenado pelo "Vehm". Todas as casas da Europa estão hoje marcadas com a misteriosa cruz encarnada. A História é o juiz — o seu executor, o proletário.

Karl Marx (1818-1883)


Notas de Rodapé:

(1*) Robin Goodfellow: ser lendário que, segundo a crença popular inglesa, protegia e ajudava os homens. Vêmo-lo, por exemplo, em acção como Puck na peça de Shakespeare Sonho de Uma Noite de Verão. (Notada edição portuguesa.) (retornar ao texto)

Notas de Fim de Tomo:

Em 14 de Abril de 1856, num banquete em honra do quarto aniversário do jornal cartista The People's Paper, Marx, usando do direito que lhe foi concedido de falar em primeiro lugar, pronunciou um discurso sobre o papel histórico mundial do proletariado. A participação de Marx no aniversário de The People's Paper foi um dos exemplos mais brilhantes da ligação dos fundadores do comunismo científico com os cartistas ingleses, da aspiração de Marx e Engels de exercer uma influência ideológica no proletariado inglês e de apoiar os dirigentes cartistas com o objectivo de fazer ressurgir o movimento operário na Inglaterra numa base nova, socialista.
The People's Paper (O Jornal do Povo): semanário cartista publicado de Maio de 1852 até Junho de 1858 em Londres; entre Outubro de 1852 e Dezembro de 1856 Marx e Engels colaboraram no jornal, ajudando também a redigi-lo. Em Junho de 1858 o jornal passou para as mãos de homens de negócios ingleses.

quarta-feira, setembro 12, 2007

Eu, Etiqueta



Em minha calça está grudado um nome, que não é meu de batismo ou de cartório,
Um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida que jamais pus na boca, nessa vida,
Em minha camiseta, a marca de cigarro que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto que nunca experimentei,
Mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido de alguma coisa não provada,
Por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu lençol, meu chaveiro, minha gravata e cinto e escova e pente,
Meu copo, minha xícara, minha toalha de banho e sabonete,
Meu isso, meu aquilo, desde a cabeça ao bico dos sapatos,
São mensagens, letras falantes, gritos visuais,
Ordens de uso, abuso, reincidências, costume, hábito, premência,
Indispensabilidade,
E fazem de mim homem-anúncio itinerante, escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É duro andar na moda, ainda que a moda seja negar minha identidade,
Trocá-la por mil, açambarcando todas as marcas registradas,
Todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser Eu que antes era e me sabia
Tão diverso de outros, tão mim mesmo, ser pensante sentinte e solitário
Com outros seres diversos e conscientes de sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio, ora vulgar ora bizarro
Em língua nacional ou em qualquer língua (Qualquer principalmente.)
E nisto me comprazo, tiro glória de minha anulação.
Não sou – vê-lá – anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago para anunciar, para vender em bares, festas, praias, piscinas,
E bem à vista exibo esta etiqueta global no corpo que desiste
De ser veste e sandália de uma essência tão viva, independente,
Que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora meu gosto e capacidade de escolher,
Minhas idiossincrasias tão pessoais, tão minhas que no rosto se espelhavam
E cada gesto, cada olhar, cada vinco da roupa. sou gravado de forma universal,
Seio da estamparia, não de casa, da vitrine me tiram, recolocam, objeto pulsante mas objeto
Que se oferece como signo de outros objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso de ser não eu, mas artigo industrial,
Peço que meu nome retifiquem. Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é Coisa. Eu sou a coisa, coisamente.
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

quinta-feira, setembro 06, 2007

Tecelões da Silésia


Sem lágrimas em teares que tremem
tecemos e batemos os dentes.
Alemanha, tecemos nesta ocasião
aqui a tua mortalha e a tríplice maldição
Tecemos. Tecemos.

Maldição ao Deus falso, ao qual rezamos
enquanto o frio e a fome agüentamos.
Em vão confiamos e esperamos;
tem fraudado, mentido e enganado.
Tecemos. Tecemos.

Maldição ao rei o rei dos ricos,
o monstro que traga os peixes pequenos;
que nos oprime, explora e tortura
e, como os cães, nos fuzila.
Tecemos. Tecemos.

Maldição à Pátria falsa e funesta,
que só à vergonha se presta,
que a toda flor precocemente esmaga,
e ao verme alimenta em podridão nefasta.
Tecemos. Tecemos.

Voa a lançadeira e treme o tear.
Tecemos com dedicação sem cessar.
Alemanha de ontem, nesta ocasião,
eis a tua mortalha e a tríplice maldição.
Tecemos. Tecemos.
Heinrich Heine (1797-1856)

quarta-feira, setembro 05, 2007

Cansei! – o engodo burlesco de tacanhos filisteus modernos



Nos encontramos hoje numa situação de plena calamidade social. Em nenhum outro momento da história convivemos com tamanha brutalidade absurdamente gerenciada pelos poderosos:
“Problemas ambientais; aumento significativo da violência nos grandes centros urbanos; crescimento desordenado das cidades e o inchaço das favelas e moradias precárias; constante investimento em tecnologia e armamentos pesados, visando ‘segurança’; acentuação da desigualdade a níveis alarmantes; e concentração de renda cada vez mais brutal na mão de poucos e a generalização da miséria a vastos territórios do globo terrestre” (O desenvolvimento paradoxal do progresso e a hipertrofia da razão instrumental, 2006, p.76, de minha autoria: Leonardo Domingues).
Como se não bastasse essa gélida realidade, alguns pseudodemocratas se intitulam defensores do bastião da moral e da vergonha na cara. Essa cidadela da ética e do respeito mútuo traz à tona toda a bandalheira reinante no país. São pessoas de bem; são indivíduos que se importam com a vida dos outros e, de forma merecida, ganham o reconhecimento sobre seus atos. Esses cidadãos de boa índole serram fileiras na vanguarda da decência e do decoro cívico.
Em outros momentos de nossa história humana, fenômenos parecidos se manifestaram em situações de profunda tensão política, em que a sapiência dos homens tornou-se impotente e cega, perante o assalto da insensatez e da barbárie. Abaixo do solo dos tempos, adormecidos estão esses germes da soberba inquisição a toda e qualquer forma de prudência racional. Só ficam esperando o momento certo para saírem da toca. Cito dois exemplos de acirramento ideológico em torno da “defesa” da moral e da ética: Quem não se lembra da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que preconizava quase as mesmas coisas? Pouco mais de trinta anos antes desse fato, na Alemanha estava ocorrendo um movimento de renovação nacional, apoiado, principalmente, pela classe média e pela burguesia, que culminou com a ascendência de Hitler ao cargo de Chanceler da nação. Trago esse dois exemplos para analisarmos, no que diz respeito ao movimento Cansei, quais são as reais intenções que motivam essas pessoas a agirem dessa forma. Quem está cansado? Por que motivo? Cansado de que? Como está cansado?
Assim sendo, proporciono uma pequena anátema crítica, estabelecendo um diálogo com o outro lado da moeda, com aqueles que já estão cansados há muito tempo. O manifesto seria proferido não em aeroportos ou shopping centers, mas sim, nos bolsões de miséria desse vasto e rico Brasil.

Cansei de ser invisível à sociedade, que só se lembra de mim quando a minha violência diária chega a casa dela.
Cansei de ver meus filhos sem perspectiva alguma, vítimas da dor e do flagelo, lutando a cada instante pela existência desumana e miserável que nos cabe.
Cansei de ser a força produtiva de uma produção que não me pertence, e sim ao outro, que me explora diuturnamente a troco de uma ração inumana.
Cansei de esperar e esperar pela esperança de um dia ser tratado de forma mais digna e humana.
Cansei de ser cercado pelos frios mundos da desigualdade e de viver num cárcere econômico antagônico, vil, covarde e cruel.
Cansei de perceber que é dessa contradição insensata que brota a “igualdade de condições” entre os homens. De sentir, de forma intensa, o quanto que de meu padecimento é que se eleva o prazer luxuoso do outro, do dono.
Cansei de ser escorraçado, vilipendiado e atrozmente ceifado em favor da ordem pública e do bom andamento dos processos.
Cansei de viver como animal, em pocilgas fétidas de sórdidos entulhos e ver que estou em pior condição que isso, porque o animal de estimação do outro vive em melhores condições do que a maioria de nós.
Cansei de ver que somos nós que cremos em Deus, mas são eles que são abençoados.
Cansei de repetir que “rico pede paz para continuar rico, e que pobre pede paz para continuar vivo”.
Cansei! Estou cansada!


“O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão” (...) “Com a valorização do mundo das coisas, aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz apenas mercadorias; produz-se também a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria”(...)”O trabalhador põe a sua vida no objeto; porém agora ela já não lhe pertence, mas sim ao objeto. Quanto maior a sua atividade, mais o trabalhador se encontra objeto. O que se incorporou no objeto do seu trabalho já não é seu. Assim, quanto maior é o produto, mas ele fica diminuído.”(...) “O trabalhador torna-se escravo do objeto”(..) “Não constitui a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio de satisfazer outras necessidades”(..)”ele não é o seu trabalho, mas o de outro”(...)”Chega-se à conclusão de que o homem (o trabalhador) só se sente livremente ativo nas suas funções animais – comer, beber e procriar, quando muito, na habitação, no adorno etc. – enquanto nas funções humanas se vê reduzido a animal”(..)”Esta é a auto-alienação”(...)”A vida revela-se simplesmente como meio de vida”(...)”Se a sua atividade constitui para ele um martírio, tem de ser fonte de deleite e de prazer para outro”.


Este é um texto escrito por um jovem de 26 anos, herdeiro do mais profundo pensamento humanístico. Em suas palavras ecoam as idéias de toda a tradição que o precedeu. O herético, o novo, a vontade de realizar de forma plena a existência humana: esse era o lema de toda a Filosofia Clássica Alemã, assim como, também o era do Renascimento, do Humanismo e da Grécia Antiga. Seu nome? Karl Heinrich Marx. Manuscritos econômico-filosóficos.

Que castigo tenho a temer, se mal algum eu faço? Possuís muitos escravos, que como asnos, cães e mulos tratais, e que em serviços empregais vis e abjetos, sob a escusa de os haverdes comprado. Já vos disse que os pusésseis, acaso, em liberdade? que com vossas herdeiras os casásseis? por que suam sob fardos? que lhes désseis leitos iguais aos vossos? e iguarias que como ao vosso paladar soubessem? Em resposta, decerto, me diríeis: “Os escravos são nossos”.


Essa é uma das falas de Shylock, pronunciada durante o famoso julgamento em “O mercador de Veneza”, de William Shakespeare.

Cansei de um progresso que só eterniza a desigualdade do presente. Onde está o progresso humano?

Cito mais um trecho de meu breve texto supracitado:


O triunfo dos meios sobre os fins deriva de um largo processo de promoção de um desenvolvimento desigual e desumano. Os fins essencialmente humanos, autônomos e emancipatórios foram transubstanciados em formas eminentemente modernas de produção e reprodução de miséria e de sofrimento. A tão conclamada globalização, panacéia dos novos tempos, escamoteia em seu comércio ilimitado de mercadorias quais são as verdadeiras faces desse progresso antagônico. Pelo uso instrumental de formas racionalizadas de produção e escoamento de produtos não existem mais barreiras de qualquer tipo para findar a expansão pela busca de novos mercados. Ao mesmo tempo em que as mercadorias têm trânsito livre por todos os cantos, o mesmo não acontece com a riqueza, nem com a ciência, nem com o conhecimento. Estes ficam monopolizados nos grandes centros industriais, nas universidades tecnológicas e nas grandes empresas. A liberdade que a mercadoria desfruta se converte em confinamento para o indivíduo. Se aos produtos comercializáveis tudo é permitido, para os seres humanos somam-se as segregações étnicas, religiosas, econômicas, culturais, políticas, para a sua conciliação com os outros.
Num capitalismo cada vez mais tecnológico, racionalizado, administrado e expansivo, a racionalidade instrumental é imanente aos processos de valorização de capital. Contra barreiras de dominação sofisticada, o homem padece diante de uma, cada vez mais intransponível e inexorável, “gaiola de ferro”. Se nos pressupostos weberianos tais constatações já estavam muito avançadas, na teorização frankfurtiana esse fenômeno é repensado de acordo com os novos desenvolvimentos do capitalismo tardio. Num mundo instrumentalizado, onde somente são válidas as ações que sirvam para atingir algum fim prático e útil, todas as atuações dos indivíduos tendem a se submeter a uma só lógica: seus desejos, suas vontades, seus sentimentos, sua consciência, tudo se torna um mero instrumento.

O pensamento crítico luta por conceituar o caráter irracional da racionalidade estabelecida e por definir as tendências que fazem com que essa racionalidade gere sua própria transformação. Apesar da constatação desesperançada e concreta sobre a atual complexidade da realidade, a Teoria Crítica não perdeu a esperança em torno da razão humana. “Não alimentamos dúvida nenhuma de que a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento esclarecedor” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.13). Horkheimer, em sua última frase de Eclipse da Razão, nos lembra que, “se por evolução científica e progresso intelectual queremos significar a libertação do homem [...] então a denúncia daquilo que atualmente se chama razão é o maior serviço que a razão pode prestar” (HORKHEIMER, 2003, p.187). Portanto, enquanto possibilidades efetivas de transformação objetiva e subjetiva não estão no horizonte, o espírito crítico e contestatório será o norte para a produção de um mundo mais justo e sensato.

O desenvolvimento paradoxal do progresso e a hipertrofia da razão instrumental - 2006, p.80

segunda-feira, setembro 03, 2007

Não bater à porta



A tecnificação torna, entrementes, precisos e rudes os gestos, e com isso os homens. Ela expulsa das maneiras toda hesitação, toda ponderação, toda civilidade, subordinando-as às exigências intransigentes e como que a-históricas das coisas. Desse modo, desaprende-se a fechar uma porta de maneira silenciosa, cuidadosa e, no entanto firme. As portas dos carros e das geladeiras são para serem batidas, outras têm a tendência a fechar-se por si mesmas, incentivando naqueles que entram o mau costume de não olhar para trás, de ignorar o interior da casa que o acolhe. Não se faz justiça ao novo tipo de homem, se não se tem consciência daquilo a que está incessantemente exposto pelas coisas do mundo a seu redor, até mesmo em suas mais secretas inervações. O que significa para o sujeito que não existam mais janelas que se abram como asas, mas somente vidraças de correr para serem bruscamente impelidas? Que não existam mais trincos de portas, e sim maçanetas giratórias, que não existam mais vestíbulos, nem soleiras dando para a rua, nem muros ao redor do jardim? E qual o motorista que já não foi tentado pela potência do motor de seu veículo a atropelar a piolhada da rua, pedestres, crianças e ciclistas? Nos movimentos que as máquinas exigem daqueles que delas se servem localizam-se já a violência, os espancamentos, a incessante progressão aos solavancos das brutalidades fascistas. No desaparecimento da experiência, um fato possui uma considerável responsabilidade: que as coisas, sob a lei de sua pura funcionalidade, adquirem uma forma que restringe o trato delas a um mero manejo, sem tolerar um só excedente – seja em termos de liberdade de comportamento, seja de independência da coisa - que subsista como núcleo da experiência porque não é consumido pelo instante da ação.


ADORNO, Theodor W. 19. In:______. Minima Moralia. Trad. de Luiz Eduardo Bicca, com revisão de Guido de Almeida. São Paulo: Ática, 1993.