domingo, agosto 26, 2007

Dividir é um compartilhar humano ou uma equação matemática?

A ampliação dos avanços da técnica e da racionalidade de cálculo para toda a esfera do ser, que já vem de muitas décadas, nos obrigam a investigarmos como se dá a sociabilidade nos micro-ambientes e nas pequenas relações. A vida em conjunto, em sociedade, nos impõe uma necessidade básica: para suportarmos as intempéries e as forças da natureza precisamos uns dos outros. Desta forma, construímos e produzimos socialmente tudo o que está as nossas vistas para o nosso próprio benefício, para sustentar e prolongar nossa existência. Na relação com a natureza, modificando-a e transformando-a, a base material é constituída e fundada para a elevação do edifício social ao qual residimos.
Sem me alongar sobre a gênese da divisão do trabalho e de sua incorporação perversa na lógica produtiva capitalista, quero pegar como ponto de partida algo comum nas grandes cidades: os prédios. Para exprimir esses devaneios especulativos, tomo minhas experiências pessoais como um substrato relevante para algumas conexões entre a realidade objetiva e a teoria social. No entanto, já de antemão, deixo claro que são só algumas notas marginais, esparsas, de minhas inquietações subjetivas.
Dividir, segundo alguns dicionários, quer dizer: “1. Partir, separar em duas ou mais partes. 2. Distribuir; repartir. 3. (Mat.) Efetuar a divisão em. P. 4. Separar-se; desunir-se. 5. Discordar; divergir; dissentir”. Penso que o ato de dividir, o distribuir dos recursos materiais, precede a própria noção matemática de dividir, tal qual está estabelecida no dicionário. O dividir humano estabelece-se muito antes da noção aritmética. A ciência dos números denota uma certa objetividade para o cálculo; pressupõe-se uma razão imparcial, impessoal e, profundamente, lógica. Com o desenvolvimento das forças produtivas, da ciência e da tecnologia, houve um triunfo da abstração numérica penetrando até nos campos mais recônditos da vida social.
Dentre todos esses sentidos (expressados nas definições do dicionário), como podemos pensar o que é dividido dentro de um edifício residencial? Não há um significado que chegue próximo ao compartilhar, somente verbos frios e eficientes. Dividimos tudo o que existe e cada um cuida de sua parte, ou compartilhamos o que existe para que todos possam ter o melhor usufruto coletivo? Não estamos muito distantes de pensar outras dimensões da vida social. Poderíamos repensar a noção de liberdade, por exemplo. Em todos os cantos ouvimos que “a minha liberdade vai até onde está a liberdade do próximo”. Parece que “liberdade” se tornou uma figura geométrica, um pequeno quadrado de mobilidade do indivíduo. Aos que têm muitas posses e que comandam os meios produtivos, a liberdade é plena e quase irrestrita. Torna-se um gigante quadrado que ultrapassa a área dos adjacentes não reconhecendo qualquer lei ou norma que o coíba. Para contrapor a essa concepção, evoco a noção de liberdade para Hegel, em que a minha liberdade tem que se complementar com a liberdade do outro. Livres, só somos quando temos um compartilhar coletivo e efetivo.
Em um prédio comum existem portas, escadas, janelas, elevadores entre outros. Os espaços coletivos também representam uma parte constituinte dos edifícios. A construção de habitações conjugadas foi uma necessidade devido ao inchaço das cidades e a multiplicação crescente da população urbana. Foi previamente concebida como uma imposição das leis do cálculo pela lógica produtiva em que os indivíduos não deveriam mais residir em casas espaçosas, com ampla área no entorno. Agora, eles se amontoariam em pequenas caixas de sapato, dispostas umas sobre as outras, as quais hoje chamamos de apartamentos. Eles possuem apenas aquilo que é necessário para reproduzir a força produtiva que engrena a máquina (força de trabalho). São em pequenos espaços “três por quatro” que constituímos nossas famílias e que damos o nome de lar. Parca mobília e alguns adornos amorfos decoram o ambiente. Nos sentimos indiferentes em meio ao não-pertencimento representado no local. Tudo proveio da fábrica e foi produzido em série, como toda experiência do ser.
O ápice da sociabilidade moderna é dizer “oi” e “tchau” no elevador. É um ato súbito de benevolência, ao se lembrar que, por aqueles frios corredores e escadas, residem outras pessoas. É a efêmera noção de não estar sozinho em meio a tanta solidão. Ser refém cativo de portas, grades e trancas, enquanto lá fora, brilha um sol escaldante, porém programado. Ouvir barulhos pelas paredes e pelos cantos e saber que é isso que o lembra que acima e abaixo existem barreiras. Esses sons estranhos nos recordam que temos de trancar bem as portas e fechar as janelas. E o que não dizer das cercas elétricas, das câmeras de circuito interno e de toda a “segurança” que a tecnologia pode nos dar? Por que não colocar logo minas-terrestres nos jardins da entrada? Ou mesmo, um lança-chamas no portão principal?
O fato é que dividimos tudo o que se encontra no prédio, mas é somente uma divisão aritmética. É uma coação resultante de uma determinação do sistema produtivo: temos de dividir. Já que somos obrigados, então que seja pela fria e precisa lógica do cálculo, nada mais.
Moramos anos e anos nesses edifícios e não conhecemos ninguém. Não há uma relação com o vizinho. Não há nada, apenas a clareza real de ter de cumprir com suas obrigações materiais e só. É o sair pela manhã e voltar só no fim da tarde. Morar apenas para ter um lugar para dormir e descansar bem, para produzir muito no dia seguinte.
No sistema há o imperativo categórico da divisão, dominação e produção. É como dizia Napoleão: “dividir para conquistar”.

sexta-feira, agosto 24, 2007

O Insensato


Não ouvistes falar desse louco que, em pleno dia, acendia uma lanterna e se punha a correr pela praça pública gritando incessantemente: "Procuro Deus! Procuro Deus!". Como estavam ali muitos que não acreditavam em Deus, o seu grito provocou uma grande gargalhada. Dizia um: "Então, Deus se perdeu?”. “O quê? Deus perdeu-se como uma criança?”, perguntava outro. “Ou escondeu-se? Tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou?” – assim gritavam e riam todos ao mesmo tempo. O louco precipitou-se para o meio deles e trespassou-os com o olhar: “Para onde foi Deus?” - gritou-lhe. “Eu vou dizer-vos isso. Nós o matamos, vós e eu! Todos nós somos os seus assassinos. Como pudemos fazer isso? Como fomos capazes de esvaziar todo o mar? Quem nos deu a esponja para apagar todo o horizonte? Que fizemos quando separamos esta terra de seu sol? Para onde ela se movimenta agora? Para onde nos levam seus movimentos? Para longe de todos os sóis? Não estamos caindo sem cessar? Para trás, para o lado, para a frente, para todos os lados? Existe ainda um acima e um abaixo? Não erramos como através de um nada infinito? O espaço vazio não sopra sobre nós? Não faz mais frio? Não vem a noite e cada vez mais noite? Não é preciso acender lanternas em pleno dia? Não ouvimos ainda o ruído dos coveiros que enterraram Deus? Não sentimos putrefação divina? Também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus permanece morto! E fomos nós que o matamos! Como nos consolaremos, nós, os assassinos de todos os assassinos? O que o mundo possuía de mais sagrado e mais poderoso perdeu seu sangue sob nossas lâminas – quem lavará esse sangue de nossas mãos? Com que água poderemos purificar-nos? Que expirações, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não temos de converter-nos em deuses, para parecermos dignos desse ato? Nunca houve ato mais grandioso – e quem nascer depois de nós fará parte, por causa desse ato mesmo, de uma história superior a tudo o que foi história até agora”. Aqui se calou o louco e encarou outra vez os ouvintes; também eles se calavam e o olhavam com estranheza. Por fim, atirou ao chão a lanterna, que se partiu em pedaços e se apagou. “Vim cedo demais”, disse então: “Ainda não é chegado o meu tempo. Esse enorme acontecimento ainda está a caminho e viaja – ainda não atingiu os ouvidos dos homens. O relâmpago e o trovão precisam de tempo, depois de terem sido realizados, para serem vistos e ouvidos. Esse ato está ainda mais distante dos homens que o astro mais distante – e no entanto foram eles que o reaizaram!” (Grifos meus)


NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. São Paulo: Hemus, 1981.

quinta-feira, agosto 16, 2007

A experiência em Londrina

Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a idéia de que o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é ascender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos de nosso posto
Érico Verissimo


“Trabalhadores! Trabalhadores! Vocês têm que parar! Não podemos mais agüentar essa situação! Vamos parar! Precisamos parar e apreciar a nova Mortadela Ouro Perdigão!”.
Possivelmente, se não fosse pelos anos em Londrina, essa pequena propaganda que ouvi enquanto estava dirigindo, seria meramente fagocitada e, automaticamente, expelida pelo meu cérebro em fração de segundos.
O fato retratado pelo anúncio de rádio é a simulação de uma greve de operários. Há uma encenação feita em estúdio, em que são adicionadas muitas vozes em coro para representar, de forma fidedigna, a situação interna de uma fábrica como se fosse na vida real. Num dado momento da propaganda há uma “explicação” para toda a idéia, em que “justificam” a concepção de uma greve pelo fato da mortadela ser, ou ter, alguma relação com a Itália (confesso que não entendi bem essa parte). Ou seja, para as pessoas que escutassem aquilo tudo, era como se o ato de fazer greve fosse de origem italiana ou que – o que é mais estranho, porém mais “justificado” –, a forma como concebemos essas manifestações passam, indireta ou diretamente, por um estereótipo do italiano “baderneiro”. Entendo que há uma longa associação, desde os primórdios da imigração para cá, entre italianos/europeus de uma forma geral e suas “imorais” manifestações políticas. Entretanto, tal “razão” não se auto-justifica. Resisto em continuar a falar sobre esse “fato banal”, porque seria a partir dele que pensei em traçar o que Londrina (na minha concepção particular) significou e representou em minha formação humana. Ademais, voltando a propaganda, o que de errado há em colocar numa mesma balança mortadela e uma greve de trabalhadores? Certamente alguns estudantes de marketing diriam que é uma forma original de apresentar um produto aos consumidores, outros, como a maioria, nem teriam tempo de pensar em nada, pois têm de correr atrás do ganha-pão de todo dia e não podem se dar ao luxo de reflexões, em qualquer grau que seja. Todavia, o que há de errado em fazer esse tipo de comercial? Não temos censura, a imprensa é livre e vivemos numa democracia consolidada. Entretanto, é exatamente aí que mora o problema, não temos necessidade de pensar em nada, já está tudo dado e revelado (tudo devidamente pronto. É como se um garoto chegasse à sua festa de aniversário – nesses espaços modernos feitos somente para isso – e encontrasse todos os brinquedos eletrônicos devidamente prontos e ligados, somente esperando para que ele os possua em pleno gozo primitivo). As coisas já trazem em si mesmas suas respostas e verdades. Somente cabe a nós engolirmos tudo isso, tal qual fazemos com nossas refeições fast-food. “Por que pensar, você quer é chegar rápido ao trabalho!”, esse poderia ser o lema de um anúncio de automóvel.

“Mas quantas são as mentes humanas capazes de resistir à lenta, feroz, incessante, imperceptível força de penetração dos lugares-comuns?” (Primo Levi)
COISIFICAÇÃO

Por que estou dizendo tudo isso? Porque a vida virou uma mercadoria e viver é uma grande propaganda. São só negócios. Participamos do engodo nefasto apenas como engrenagens subordinadas. Insurreições, revoltas, revoluções; hoje tudo não passa de um meio de valorizar capital. Vivemos vidas mesquinhas e pequenas que servem somente para produzir e reproduzir o monstro desigual que nos mantêm no alto de grandes construções tecnológicas, enquanto famintos e miseráveis clamam por dignidade abaixo de nossas janelas. “Não pense demais, os bandidos estão à solta e vão assaltar seu lindo lar: ponha uma cerca elétrica, dinamite os portões, esconda algumas minas terrestres pelo jardim, blinde seu honrado automóvel”. Não há mais vontade, não há mais querer, não há grito de desespero que toque no coração de nossa coerência mecânica. Instintivamente coagidos, somos mantidos em cativeiros hedonistas, para o deleite do cálculo frio e desumano. Prisioneiros de nós mesmos e da efêmera vivência programada, fazemos reverência ao açoite diuturno que nos alimenta no mais irresistível gozo primário. O mundo oferece-nos tudo o que desejamos, não há do que reclamar. É desagradavelmente brilhante como as pessoas não percebem isso, como não percebo isso, todo dia, ao caminhar pelo mundo. Vivemos para sobreviver e sobrevivemos para existir matematicamente no meio do todo. É indelével a máxima de Adorno, dizendo que não há mais vida, ou sua citação dizendo que, nesse sistema produtivo, “a vida não vive”.

“O grave é que a própria existência liberada não adquire sentido” (Adorno)

“A liberdade contraiu-se em pura negatividade (...) o fim objetivo do humanismo é apenas mais uma expressão da mesma coisa. Significa que o indivíduo como indivíduo, representando a espécie humana, perdeu a autonomia por meio da qual podia realizar a espécie” (Adorno)

“A repressão assume a forma da liberdade. A violência contra o pensamento não se manifesta mais como proibição de pensar, mas como liberdade de pensar o que, nas condições atuais de condicionamento invisível, significa a liberdade de pensar o que todos pensam” (Rouanet)

“Estamos na prisão, livres podemos apenas nos sonhar, não nos tornar” (Nietzsche)

“A vida melhor é contrabalançada pelo controle total sobre a vida” (Marcuse)
ALIENAÇÃO

“Todos somos livres para dançar e para se divertir, do mesmo modo que, desde a neutralização histórica na religião, são livres para entrar em qualquer uma das inúmeras seitas. Mas a liberdade de escolha da ideologia, que reflete sempre a coerção econômica, revela-se em todos os setores como a liberdade de escolher o que é sempre a mesma coisa” (Adorno & Horkheimer)

“A situação factual do capitalismo não é uma questão de crise econômica ou política, mas de uma catástrofe da essência humana” (Marcuse)

De que modo tudo se relaciona com a minha referida passagem? Subverti minha existência, redirecionei minha vida a partir do ponto em que me vi isolado no meio de centenas de autômatos. A pequenez que ronda nossa geração marcou-me com ferro quente um código de barra na testa. Vivi boa parte de minha vida sem viver, sem sonhar, sem pensar além da lógica infernal da produção e do consumo. Ainda vivo. Não podemos deixar de fazer parte da totalidade diabolicamente mágica e escravizante. Este é nossa sociedade, as mães carinhosas procuram nomes para os filhos observando as marcas que aparecem na Tv. Jovens querem modificar seus carros para serem respeitados e serem notados – quando é possível tê-los. Outros fazem cirurgia plástica para se parecerem com seus ídolos*. Algumas propagandas criam simulacros tão reais que confundem até os alto-escalões da burocracia parlamentar. O mais novo filão do mercado são as chamadas Cross-medias. Especificamente, elas unem vários tipos de media para pôr na cabeça do indivíduo que ele não pode viver sem a respectiva marca. É impressionante. Assisti a uma reportagem altamente apologética que destacava o potencial envolvido nesse tipo de investimento. A única empresa que até agora participou ativamente como um modelo foi o Guaraná Antártica. O que eles fizeram? Criaram um jogo misturando eventos reais com fictícios para que o consumidor fique diuturnamente entretido, tentando adivinhar os mistérios montados pela empresa. Não vou me prolongar, mas fez-se uma historinha sobre o guaraná da Amazônia e os interesses globais do capitalismo tardio. Para vocês terem uma noção, a empresa inventou tantas coisas e fatos – pessoas, organizações – que até se aproveitaram da visita do Bush para se infiltrarem e “protestarem” contra uma “empresa de brincadeirinha” que queria “roubar” a fruta exótica dos trópicos. Ou seja, é tudo mercadoria. Aproveitar-se de uma manifestação pública e política para fazer publicidade barata faz parte do jogo. Ser um manifestante é apenas mais uma das múltiplas pseudo-personalidades que são ofertadas no mercado, cabe a nós seguimos a onda. Num belo dia somos punks, no outro dia grunges, no outro dia intelectuais, outro dia engajados politicamente; fazemos isso desde que por trás tenha uma mega-estrutura que engendre e fabrique essas necessidades. A contra-cultura vira sabão em pó, como a greve de trabalhadores vira mortadela. Adorno retrata de forma esplêndida a essência desse mundo: “personalidade”, diz ele, “significa para elas [indivíduos] pouco mais do que possuir dentes deslumbrantemente brancos e estar livres de suor nas axilas”.

“Os homens podem se sentir felizes mesmo sem sê-lo de modo algum” (Marcuse)
REIFICAÇÃO

Ser reconhecido, em todos os aspectos, só se torna possível pela condição de mercadoria. Não temos mais nada que diga respeito a nós mesmo, somente aos modos de vida proporcionados pelo prazer de consumir, de adquirir novidades e de ser admirado por tal atitude. Essa última palavra também é representativa. Quantas vezes ouvimos “atitude” nos vários campos da vida mercadológica. Ter atitude é usar calça rasgada, não é? Pois então, hoje as indústrias fabricam calças já rasgadas. Em grandes lojas de departamento é quase que impossível não notar essas coisas. Os ornamentos antes usados pelos punks, hoje fazem parte da C & A por meio de figurinos prontos. Compram-se roupas com conceitos pré-formados – frases prontas – em que o único intuito é usar e descartar, tal qual fazemos com qualquer coisa no mundo. Só existimos e somos notados por meio das marcas e dos conceitos que elas representam. As mercadorias determinam nossa concepção de mundo. Um dos meios de lembrarmos as outras pessoas que existimos é colocar grandes adesivos no vidro-traseiro do carro com os dizeres: “Cuidado! Pedro a bordo!”. Quando não encontramos vários nomes diferentes, e isso tudo para lembrar o outro motorista que, ali, é transportada tal pessoa – crianças e bebês. Ou seja, para dizer que alguém existe é preciso recorrer a adesivos e carros novos. “Seu carro é uma extensão de seu corpo”, essa poderia ser outra propaganda adorável.
Um lamentável acidente aéreo nos lembra o quão perigosa é a nossa relação com o mundo. Muitos seres humanos morreram em frações de segundos, assim como muitos outros são ceifados pela fome diariamente. Mas o fato destacado nos mostra o perigo do dia-a-dia, o passeio de ônibus, a viagem de trem... A técnica tem um poder incrível de modificar tudo, principalmente nossas vidas. Como mostrar nossa indignação perante toda essa barbárie? É só clamar pelas mercadorias! Vítimas trágicas são lembradas com camisetas estilizadas – e como hoje ouvimos esse termo[1]. São empresas que vivem da desgraça humana. Colocar fotos descartáveis em camisetas brancas de algodão é um péssimo meio de nos lembrarmos dos mortos e, além do mais, é de um mau gosto louvável. Todavia, é simples, é rápido e pode ser produzido aos milhões. Já presenciei, num velório de uma pessoa próxima, como a morte se tornou um grande negócio. A empresa cuida de tudo para os familiares e ainda faz alguns banners e pequenas lembranças em homenagem ao falecido. Nada mais do que esses panfletos que algumas pessoas nos entregam nos semáforos dos grandes centros sobre peças de carros, sobre sanduíches em promoção ou sobre desconto na faculdade. Olhamos para o papel por dois segundos e, em seguida, encontramos algum lugar adequado para deixá-lo longe de nosso alcance. A empresa que é responsável pelo túmulo também deixa sua marca e logo para que a família saiba que sempre pode contar com eles. Nas grandes cidades existem lugares específicos para velórios e lá eles são feitos como que numa linha de produção. A prefeitura, para mostrar seu respeito pelo dinheiro público, ainda encontra meios para que se intensifique a produção aritmética de sepultamentos e últimas despedidas, afinal, o que “você quer é que o trabalho seja rápido, produtivo, impessoal e que ainda encontre um tempinho para o futebol na Tv”, esse poderia ser outro comercial bem criativo.

“O problema é o de modificar a própria vontade, de modo a evitar que as pessoas continuem a querer o que querem agora” (Marcuse)
MERCADORIA

Somos controlados pelo poder demiurgo que a ciência confere aos produtos. Quando estamos com fome, empanturramo-nos de comida cheia de gordura, açúcar e sal, em quantidades assombrosas. Essa obsessiva compulsão sacia nossa vontade de mundo, põe fim na carência de vida. O sexo gratuito libera Eros para um prazer frio e mecânico. Quando estamos felizes, prolongamos nossa felicidade imediata com bebidas alcoólicas e controles de televisão. Se, por outro lado, estamos tristes, como que num passe de mágica, a tristeza vai embora após uns bons e eficientes anti-depressivos. E é assim que vivemos atualmente. Quando estamos fracos, tomamos anabolizantes; se quisermos ficar magros consultamos as espantosas dietas. Bulimia, anorexia e outras podem ser requisitadas, se necessárias. Tal qual um feto na barriga da mãe vivemos em contínuo estado de letargia, mas muito bem alimentados e seguros. Você ainda quer se rebelar contra isso? Não seria melhor passar pela locadora e ver um filme? É melhor permanecermos adormecidos e emudecidos pelo feitiço das mercadorias. Como diria nossa ministra do turismo: “Relaxa e goza”; poderíamos acrescentar: por toda a vida árida e enfadonha que a felicidade programada nos proporciona.
O mundo-mercadoria tornou-se próximo aos meus empreendimentos intelectuais após sucessivas leituras de fantásticos autores alemães. É a partir de um determinado ponto de minha vida, como foi supracitado, que inquietações diversas e não-usuais passaram a ser diárias. Num determinado momento da minha vida conheci um batalhão de robustos guerreiros heréticos. Aos poucos fui me situando em meio a eles e reconhecendo e admirando a riqueza profunda habitada no corpo humano que nos une. Partilhar do desejo dos homens de criar uma existência realmente humana é dar prova da grandeza da vida. O saber que toca em nossos corações é aquele que penetra, com mais intensidade e amor, no que é mais vivo. Os guerreiros – de que falei há pouco – foram se multiplicando; ao descobrir um, parecia que este um era escoltado por outros muitos e estes por outros tantos. Marx, Hegel, Adorno, Horkheimer, Lukács, Bloch, Weber, Fromm, Benjamin, Nietzsche, Marcuse, Freud, entre outros tantos... Nunca imaginei que esses nomes ficariam tão presentes em minha existência.

“A crítica arrancou as flores imaginárias que enfeitavam as cadeias, não para que o homem use as cadeias sem qualquer fantasia ou consolação, mas para que se liberte das cadeias e apanhe a flor viva” (Marx)

O norte-paranaense trouxe-me amigos que transcendem, em idéias e sentimentos, a busca pela reprodução diária da existência. Conheci muitas mentes lucidamente autênticas por esses anos. Muita falta farão, e já fazem, em meus pensamentos. Como era bom discutir naquele campus e sob a copa das árvores. A vida passava bem devagar e isso propiciava com que pudéssemos tentar desvendá-la muito sucintamente. Em poucos metros quadrados encontrávamos tantos diálogos distintos. A crise era imanente e instigante: possibilidades múltiplas de compreender o espírito humano. A realidade crua e brutal, que a teoria nos proporcionava, era contrastante com os límpidos verdes campos que nos circundavam.
Foram tempos memoráveis que marcaram e modificaram profundamente o meu ser. Despertaram-se para mim, os mais terríveis e brilhantes tesouros da humanidade. Compreendi a força e a fecundidade que existe por detrás das gélidas e estéreis estantes das bibliotecas e dos empoeirados sebos da vida. A força de dizer ao mundo, tal qual disse Fromm, em momentos de miséria e degradação: “que o humano prevaleça!”.

“A reforma da consciência consiste exclusivamente no fato de deixar que o mundo tome conhecimento de sua consciência, de despertar o mundo do sonho que está sonhando a seu próprio respeito, de interpretar para o mundo as suas próprias ações (...) Nossa divisa deve ser: reforma da consciência, não através de dogmas, mas pela análise da consciência mística autoconfundida, seja pelo conteúdo político ou religioso. Veremos, então, que o mundo já possuía, há muito tempo, o sonho de alguma coisa, da qual só deve ter consciência para possuí-la na realidade. Veremos que não estamos tratando com um enorme hiato entre o passado e o presente, mas com a realização dos pensamentos do passado. Finalmente, veremos que a humanidade não começa nenhuma tarefa nova, mas realiza a velha tarefa conscientemente (...) isso é uma confissão, nada mais. Para ter seus pecados perdoados, a humanidade tem apenas de explicá-los tal como são” (Marx)
* Programas da Mtv. Existe um outro programa em que garotos e garotas, sem se conhecerem, tentam descobrir a personalidade alheia apenas conferindo marcas de roupas, gostos musicais e tudo mais que se precisa saber para ter a certeza se a referida pessoa está ou não está na onda, se é ou não é legal.


[1] Tudo é estilizado, mas em larga escala, é uma verdadeira reprodução em série de roupas personalizadas, feitas com sua cara, seu estilo; pensando exatamente no seu gosto; “você tem o seu estilo, a Renner tem todos!”

sexta-feira, agosto 03, 2007

Aliterações frias e cadentes

É muito estranha a sensação de escrever atualmente. Muitos não vão concordar comigo, mas existe algo de sombrio quando temos de enfrentar esse pálido complexo de plástico e micro-chips.
Há menos de vinte anos esse “estranho no nino” causa perplexidade. Como pode, um objeto tão insípido causar tanta transformação? De um dia para o outro tomou conta das casas, dos hospitais, das indústrias, das escolas, dos mercados e ainda vai invadir muitos outros ambientes. O que existe de tão especial nesse ente que ainda está adquirindo forma? Os profetas adoram esse mistério, as fábricas de dinheiro não ficam para trás. Não é somente um atavio indigesto, mas também uma miraculosa e mística “caixa mágica”, pela qual confidenciamos as mais pedantes e sórdidas intimidades. Seria a mais pura banalização da vida ou, o meio mais sensato de construir cultura? O que nossos vinte e cinco séculos de cultura diriam? Como se comportariam os grandes escritores de séculos atrás ao acordarem diante de tal objeto? Certamente nunca acreditariam que é a partir dele que nos comunicamos e trocamos informações. É plástico. Será que isso ajuda? Mais parece um instrumento de hospital, como aqueles que ajudam pacientes muito debilitados a viver. Lembra-se do “desliguem os aparelhos e deixem-no morrer em paz”? Pois é, a impressão que me toca é essa. E esse barulho estranho que sai da caixa? Muito mistério. É por aí que seres místicos conduzem nossas vidas. Silenciosamente, sem dar um só tiro ou uma ordem, sempre estamos aqui a apertar os botões. Diante de tudo o que nos é ofertado fica muito difícil resistir. É o pleno deleite. Quanta novidade, quantas horas a fio sem fazer outra coisa, a não ser, apertar os botões. Tem alguma dúvida enquanto escreve? Dê uma olhada no Wikipédia, está tudo lá. Para que procurar mais? Quer um dicionário?
Uma professora uma vez me contou o insólito episódio que sua filha protagonizou em frente ao computador. A escola pediu para que ela fizesse uma pesquisa sobre deuses gregos. E onde fazemos pesquisa atualmente? Pois então, a menina pôs-se a digitar. E onde iria procurar? No Google, é lógico! E qual foi o resultado? Ao invés de Afrodite, Atena e Eros, saíram os galãs de novelas em fotos sensuais.
O que mais pesa nessa história é que ela se passou com uma criança que ainda não dispõe de meios adequados para absorver esse tipo de coisa. Em outros tempos, nem tão distantes assim, quando a professora pedia uma pesquisa sobre qualquer assunto fazia-se necessária a presença em uma biblioteca para se interar do assunto. Quando percorremos essa trajetória temos um contato mais mediado entre as teorias e o mundo. É muito raro alguém entrar numa biblioteca procurando algo em específico e se contentar com aquilo. Lá, cada assunto remete a outro e, desta forma, as pessoas vão construindo redes de aprendizado. Não é fácil encontrar em meio a tantos livros alguma coisa específica sobre racismo, por exemplo. Para encontra-la terá de resgatar muitos outros assuntos pelo caminho, de modo que isso não se processa na busca pela internet. Neste meio tudo segue o instrumentalismo calculista; faz-se pesquisa pelo número e pelo formato dos caracteres das palavras. É seco e direto, sem metáforas, sem ambigüidades, sem contradições; ou é 0 ou é 1. O meio segue a produtividade, a economia de recursos e o maior retorno no menor tempo. Aí, é isso que dá. É só apertar botões.
As gerações mais novas estão perdendo o contato com a escrita feita à mão. É muito mais fácil decorar os caracteres prontos. Não há porque ter de contar historinhas para dizer como o “a” surgiu e que ele é uma casinha. Qualquer criança, por mais nova que seja, sabe que é o apertar de botão que faz como que surja a letra, tão simples quanto pegar um carimbo e sair imprimindo sua marca pelo mundo. Mesmo sem ter consciência daquilo, sem sentir-se pertencente, sem ter muito sentido humano, as crianças vão apreendendo, e de forma rápida, o que é mais importante.
Há um bom tempo vi uma reportagem dizer que o programa mais visto no canal Telecine era aquele que tinha uma grafia próxima da utilizada na internet pelos jovens: Naum, vc, kara, e outros são as palavras mais recorrentes. É impressionante! Perdoem-me os antropólogos que poderiam dizer que isso é uma re-significação e que tudo é cultura. Sinceramente, é uma re-significação escatológica. Temos de estreitar as relações entre cultura e capitalismo, e perceber como este último prejudica tanto o primeiro. Ou então, vamos todos fazer um culto a exacerbação do produtivismo e esperar até quando isso pode se suportar. Mas, enquanto isso e até que a morte nos separe, vamos mantendo nossa vocação de autômatos anônimos. Afinal, como para a máquina?
Não sei.
Sigo uma estranha e soturna voz que insiste em me cobrar:
Aperte os botões!!!