sexta-feira, julho 03, 2009

Sísifos do dia-a-dia



Como podem as pessoas que tenham sido objeto de dominação eficaz e produtiva criar elas próprias as condições de liberdade? (Herbert Marcuse)
A moderna barbárie, para Löwy (2000), define-se e manifesta-se pela utilização do que há de mais avançado em termos de técnica para produzir a industrialização do homicídio e o extermínio em massa graças às tecnologias de ponta. A destruição, nesse novo tipo de barbárie, é impessoal, ou seja, os massacres não têm contato entre quem toma as decisões e as vítimas; a mediação entre os combates é feita por máquinas militares que matam à distância. Por mais brutal e monstruoso que possa ser esse confronto, por trás dele há uma gestão burocrática e administrativa, a qual se preocupa unicamente com a eficiência da ação. Ademais, para legitimar as investidas militares, o Estado se municia com um poderoso artefato ideológico por meio de discursos “biológicos”, “higiênicos” e “científicos”, que corroboram a perpetuação da dominação e da exploração.
Um dos momentos mais explícitos dessa catástrofe humana se deu nos campos de concentração que se proliferaram nos territórios da Europa. Auschwitz é o exemplo do mais monstruoso uso da razão, uma utilização racional para a produção de irracionalidades impensáveis em tal grau de esclarecimento. “Milhões de homens inocentes [...] foram sistematicamente assassinados” (ADORNO, 1970c, p.81) em um fenômeno que não deve ser tratado como uma aberração na história, mas como algo que era possível de ser feito naquela época segundo a forma unilateral pela qual foi conduzido o desenvolvimento humano. Tal fato não representa uma “regressão” em direção ao passado, em direção aos primórdios da raça humana, mas se trata de um dos possíveis rostos da civilização industrial ocidental. “Que aquilo tenha acontecido é por si só indício de tendência extremamente poderosa da sociedade" (ADORNO, 1970c, p.81). Esse tipo de processo civilizador constitui ao mesmo tempo uma ruptura com a herança humanista e emancipatória dos Iluministas e um exemplo terrível das potencialidades negativas e destrutivas de nossos tempos.

Se a racionalidade instrumental não basta para explicar Auschwitz, ela é sua condição necessária e indispensável. Encontra-se nos meios de exterminação nazistas uma combinação de diferentes instituições típicas da modernidade: ao mesmo tempo, a prisão descrita por Foucault, a fábrica capitalista da qual falava Marx, ‘a organização científica do trabalho’ de Taylor, a administração racional/burocrática segundo Max Weber (LÖWY, 2000, p.51).

Depois de Auschwitz, a razão está sob suspeita. A razão não precisa estar dormindo para produzir monstros[1]. Pior: quando acordada, produz as piores e inimagináveis monstruosidades que ela própria desconhecia ser capaz de cometer. Não podemos mais confiar em qualquer discurso racional, ético ou moral, porque, em nossa época, até a razão e a linguagem são usadas para fins irracionais.
Cada vez mais a razão é usada para forjar uma moral do ato criminoso, especialmente quando este foi cometido em escala até então inimaginável, como foi o genocídio cometido pelos nazistas, soviéticos, e na carnificina americana que levou à dizimação de duas cidades japonesas por uma demonstração de força e poder.
Benjamin, voraz crítico do progresso capitalista, vê esse suposto movimento do progresso em direção ao futuro da nossa civilização, como algo prenhe de catástrofes, gestadas no próprio coração da modernidade. Se por meio dele atingimos, como nunca na história da humanidade, um patamar excepcional de bem-estar material, podemos também creditar ao progresso uma exploração mais destrutiva, sistemática e mortífera da natureza e o inegável aperfeiçoamento das técnicas de guerra e de extermínio de seres humanos. Igualmente, podemos creditar a ele, como uma perfeita combinação entre progresso técnico e regressão social, a emergência do fascismo, que não deve ser descartada como historicamente acidental, nem como um estado de exceção político/social que não se repetirá. Num de seus mais famosos e últimos escritos, as “Teses sobre o conceito de história”, o autor adverte o que para ele é central no processo da Aufklärung (esclarecimento): “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento de barbárie” (BENJAMIN, 1996c, p.225).
Havia também uma outra catástrofe que preocupava Benjamin: a que se apresentava ainda como a “eterna repetição do mesmo”, a que transforma grandes massas em Sísifos e Tântalos (Benjamin Apud LÖWY, 1990, p.211; LÖWY, 1992, p.121), condenados à mesmice a ver os objetos de seu desejo diante de seus olhos e infinitamente distantes de sua posse. Movimentos mecânicos, gestos automáticos, tarefas fragmentadas, pensamentos fragmentados, mundo em eterna incompletude, tudo sempre disfarçado em moda e novidade. Substituição frenética do novo pelo cada vez mais novo que já nasce obsoleto.
Essa é uma barbárie menos explícita, está difusa no meio social entre um trânsito dinâmico de ideologias pulverizadas pelos grandes aparelhos estatais. É por esse tipo de ordem que a razão instrumental irá se hipertrofiar, dominando todas as esferas da vida social. O discurso técnico-calculista irá permear as mediações humanas e irá se tornar o imperativo da ordem do mundo capitalista, em que, antes de tudo, está presente o lucro, a produção, a eficiência e a economia. A ética e os preceitos morais são inócuos diante do desenvolvimento desenfreado da técnica. Ao homem só cabe se adaptar a sua lógica perversa.
O que se percebe, desde os primórdios da utilização da racionalidade como ordenação do mundo e organização do cosmos, até a caótica produção racional do capitalismo tardio, é que a razão humana tem se frustrado em sua intenção de descobrir a verdade sobre o seu uso, de se auto-iluminar (autocriticar). A ela cabe recuperar sua concepção objetiva de transformação dos homens e do mundo, por meio dos homens.
Ao se hipertrofiar, a razão instrumental penetra no meio administrativo das grandes empresas, no meio jurídico, nos grandes laboratórios, nos mass media, nos exércitos, nas universidades, enfim, em tudo o que se refira às relações de produção dessa sociedade e a sua forma de controle e manutenção. Essa nova conjuntura social é o cenário de investigação da Teoria Crítica com relação àquilo que seus membros diziam ser o “mundo administrado”. Esse último seria a realidade do pós-guerra, ao qual o Estado não só tem o domínio legítimo da coerção física, como também da coerção ideologicamente aparelhada pelos meios de comunicação de massa. A dominação se estende da fábrica às mentes e ao inconsciente das pessoas em torno de um controle absoluto e ilimitado pela burguesia. O mundo administrado é aquele em que se desapareceram os esconderijos (ADORNO, 1966, p.91). Ao cidadão comum, resta nada mais do que agir mecanicamente segundo o direcionamento das leis do mercado e atuar no mundo mediante duas ações: consumir e descartar tudo o que estiver ao alcance financeiro de um mundo em que a troca é generalizada e impessoal. Os teóricos frankfurtianos se lançam na crítica à razão instrumental, para descobrir o porquê de a complexidade do todo ser reduzida à particularidade de coisa; qual o motivo de esse tipo de razão instrumentalizar tudo, até a vida humana, como um meio por si só.
Desde a secularização do conhecimento iniciado com o fim da tutela eclesiástica e passando pela emancipação política, econômica, cultural e social da classe burguesa, até o fim trágico e catastrófico do século XX, a razão teve um profundo impacto na coordenação desses eventos. Seja para libertar e conciliar, ou para oprimir e destruir, o uso da razão durante esse processo foi resultado de uma condução unilateral em torno do desenvolvimento humano. Se a história de formação do sistema capitalista por um lado libertou e emancipou os homens de domínios arbitrários da tradição e da natureza, por outro, empreendeu formas cruéis e destrutivas de dominação e exploração. Assim sendo, é por um entendimento mais claro do uso meramente instrumental do conhecimento racional que se torna necessário investigar como esse tipo de racionalidade calculista-instrumental se hipertrofiou e abrangeu todos os campos da vida social.

[1] “Auschwitz não é para se considerar por uma analogia com a destruição das cidades-Estado da Grécia antiga, como um simples aumento gradual do horror, diante do qual é possível manter sua alma tranqüila. Mas certamente o martírio e a humilhação sem precedente daqueles que foram deportados como gado irradia uma luz mortalmente crua sobre o passado mais longínquo, em cuja violência obtusa e sem planejamento já estava posta de maneira teleológica a violência tramada cientificamente” (ADORNO, 1993, p.205).
Leonardo de Lucas S. Domingues - novembro de 2006.

quarta-feira, julho 01, 2009

"Meine Damen und Herren: das ist sehr dialektisch!" (Adorno)

A construção da vida está, atualmente, muito mais em poder dos fatos que em poder de convicções, e de fatos que quase nunca serviram como base de convicções (BENJAMIN, Rua de Mão Única).
Pense sobre isso o que quiser, mas pense. Weiterdenken!