sexta-feira, dezembro 02, 2011

Verdade: frágil e poderosa

O homem é apensa um caniço, o mais fraco da natureza; mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmagá-lo: um vapor, uma gota de água são suficientes para matá-los. Mas, mesmo que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que aquilo que o mata, porque ele sabe que morre e conhece a vantagem do universo sobre ele.; mas disso o universo nada sabe. Toda nossa dignidade consiste, pois, no pensamento. É a partir dele que nos devemos elevar e não do espaço e do tempo, que não saberíamos ocupar.
Blaise Pascal (1623-1662). Pensamentos.

quinta-feira, novembro 24, 2011

O documentário sobre Florestan Fernandes

STEFANELLI, Roberto Reis (direção, edição e pesquisa). Filme Florestan Fernandes: o mestre. Documentário, TV Câmara, fevereiro de 2004,

Florestan Fernandes ingressou aos 18 anos, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em 1947, formando-se em ciências sociais. Doutorou-se em 1951 e foi assistente catedrático, livre docente e professor titular na cadeira de sociologia, substituindo o sociólogo e professor francês Roger Bastide em caráter interino até 1964, ano em que se efetivou na cátedra. O nome de Florestan Fernandes está obrigatoriamente associado à pesquisa sociológica brasileira. Sociólogo e professor universitário com mais de cinqüenta obras publicadas, transformou as ciências sociais no Brasil e estabeleceu um novo estilo de pensamento. Foi mestre de sociólogos renomados, como Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso. Cassado com base no AI-5, em 1969, deixou o país e lecionou nas universidades de Columbia (EUA), Toronto (Canadá) e Yale (EUA). Retornou ao Brasil em 1972 e passou a lecionar na PUC-SP. Não procurou reintegra-se à USP, da qual recebeu o título de professor emérito em dezembro de 1985. Em 1986 filiou-se ao Partido dos Trabalhadores (PT) sendo um de seus fundadores. Pelo PT exerceu dois mandatos de deputado federal (1987-1991 e 1991-1995). Faleceu em São Paulo no dia 10 de agosto de 1995.

quarta-feira, novembro 23, 2011

Depressão, business e a monotonia do tempo

Analisar o aumento significativo das depressões como sintoma do mal-estar social no século XXI significa dizer que o sofrimento dos depressivos funciona como sinal de alarme contra aquilo que faz água na grande nau da sociedade maniáca em que vivemos. Que muitas vezes as simples manifestações de tristeza sejam entendidas (e medicadas) como depressões graves só faz confirmar essa ideia. A tristeza, os desânimos, os simples manifestações da dor de viver parecem intoleráveis em uma sociedade que aposta na euforia como valor agregado a todos os pequenos bens em oferta no mercado.
Do direito à saúde e à alegria passamos à obrigação de ser felizes, escreve Danièle Silvestre. A tristeza é vista como uma deformidade, um defeito moral, "cuja redução química é confiada ao médico ou ao psi". Ao patologizar a tristeza, perde-se um importante saber sobre a dor de viver. Aos que sofreram o abalo de uma morte importante, de uma doença, de um acidente grave, a medicalização da tristeza ou do luto rouba ao sujeito o tempo necessário para superar o abalo e construir novas referências, e até mesmo outras formas de vida, mais compatíveis com a perda ou com a eventual incapacitação.
(...)
Em muitos debates de que tenho participado, colegas psiquiatras têm apontado um elemento importante que pode falsear os números sobre o aumento das depressões nos países industrializados: as novas estratégias de venda dos laboratórios farmacêuticos já não se limitam à divulgação dos remédios lançados no mercado. A ênfase dos panfletos distribuídos nos consultórios de médicos e psiquiatras recai sobre os novos critérios de diagnóstico das depressões, de modo a incluir um número crescente de manifestações de tristeza, luto, irritabilidade e outras expressões de conflito subjetivo entre os "transtornos" indicativos de depressão a serem tratados por emprego de medicamentos.
Assistimos, assim, a uma patologização generalizada da vida subjetiva, sujo efeito paradoxal é a produção de um horizonte cada vez mais depressivo. Embora o aperfeiçoamento das novas medicações ofereça um auxílio precioso ao analista no tratamento das depressões, a psicanálise não pode nem deve ser excluída dessa abordagem. Onde quer que se encontre o sujeito, encolhido pela depressão, é lá que o analista deve ir buscar a expressão significante de seu sofrimento. Não importa quanto ele demore até ter vontade ou forças para dirigir a palavra ao analista. O projeto pseudocientífico de subtrair o sujeito - sujeito de desejo, de conflito, de dor, de falta - a fim de proporcionar ao cliente uma vida sem perturbações acaba por produzir exatamente o contrário: vidas vazias de sentido, de criatividade e de valor. Vidas em que a exclusão medicamentosa das expressões da dor de viver acaba por inibir, ou tornar supérflua, a riqueza do trabalho psíquico - o único capaz de tornar suportável e conferir algum sentido à dor inevitável diante da finitude, do desamparo, da solidão humana.
"a maior parte dos lucros da indústria farmacêutica depende de uns poucos remédios para os quais sempre se buscam novos usos. Se tais novos usos não surgem por meio de experimentos, recorre-se à publicidade de certos males - ou seja, a convencer as massas de que alguns estados de ânimo são, na verdade, doenças que requerem tratamento. O objetivo é criar demanda espontânea pela cura milagrosa que a empresa pode oferecer" (Frederick Crews)
À aparente eficiência dos tratamentos medicamentosos soma-se a paixão pela segurança que caracteriza a sociedade contemporânea, para a qual a ideia de que a vida seja um percurso pontuado por riscos inevitáveis produz uma espécie de escândalo. A aliança entre os ideais de precisão científica e de eficiência econômica produz uma versão fantasiosa da vida humana como um investimento no mercado de futuros, cujo sentido depende de se conseguir garantir, de antemão, os ganhos que tal investimento deverá render.
Maria Rita Kehl. O tempo e o cão.

terça-feira, novembro 08, 2011

Impressões de um jovem 'burguês'

Um dia andei por Manchester com um destes cavalheiros da classe média. Falei-lhe das desgraçadas favelas insalubres e chamei-lhe a atenção para a repulsiva condição daquela parte da cidade em que moravam os trabalhadores fabris. Declarei nunca ter visto uma cidade tão mal construída em minha vida. Ele ouviu-me pacientemente e na esquina da rua onde nos separamos comentou: "E ainda assim, ganham-se fortunas aqui. Bom dia, senhor!"
Friedrich Engels (1820-1895). A situação da classe trabalhadora na Inglaterra.

segunda-feira, novembro 07, 2011

Os "dez bons livros" de Freud

Em 1° de novembro de 1906, Sigmund Freud respondeu a uma carta do editor e livreiro Hugo Heller. Heller (1870-1923) era proprietário de uma livraria vienense, ponto de encontro de artistas e intelectuais. Em sua carta, enviada a diversos escritores, artistas e cientistas, Heller solicitava que o destinatário indicasse “dez bons livros”.
Freud respondeu o seguinte:
“O sr. deseja que eu lhe indique “dez bons livros”, e recusa-se a acrescentar uma palavra de explicações. Com isso, o sr. me encarrega não apenas de escolher os livros, mas de interpretar seu pedido. Habituado a prestar atenção a pequenos indícios, devo ater-me à formulação literal de sua enigmática pergunta. O sr. não disse “as dez maiores obras da literatura mundial”, caso em que, como tanto outros, eu teria que responder com Homero, com as tragédias de Sófocles, com o Fausto de Goethe, com o Hamlet de Shakespeare, com MacBeth etc. Não se trata, tampouco, dos dez livros mais significativos, entre os quais teriam que figurar os trabalhos científicos de Copérnico, do velho médico Johann Weier, sobre a feitiçaria, de Darwin, sobre a origem do homem, e muitos outros. O sr. não indagou sequer sobre os meus livros favoritos, entre os quais eu não teria esquecido o Paradise Lost de Milton e o Lazarus de Heine. A meu ver, seu texto põe um acento especial na palavra bons, e com esse predicado o sr. quer caracterizar os livros com que nos relacionamos do mesmo modo que com bons amigos, aos quais devemos algo do nosso conhecimento da vida e da nossa concepção do mundo, cujo contato nos proporcionou prazer, e que elogiamos diante de outros, sem que essa relação suscite um temor reverencial, uma sensação da própria insignificância diante da grandeza alheia. Indico-lhe portanto esses “bons livros”, que me vieram à mente sem muita reflexão.

Multatuli: Cartas e obras
Kipling: O livro da jângal
Anatole France: Sobre a pedra branca
Zola: Fecundidade
Merejkovski: Leonardo da Vinci
Gottfried Keller: A gente de Seldwyla
Conrad Ferdinand Meyer: Os últimos dias de Hutten
Macauley: Ensaios
Gomperz: Pensadores gregos
Mark Twain: Esboços


Não sei o que o sr. pensa fazer com essa lista. A mim mesmo, ela me parece estranha, a tal ponto que não posso abandoná-la sem acrescentar meus comentários. Não quero examinar por que esses e não outros “bons” livros, mas apenas esclarecer a relação entre o autor e sua obra. Nem sempre essa relação é tão óbvia como a que existe entre Kipling e Jungle Books, por exemplo. Na maioria dos casos, eu teria podido selecionar outra obra do mesmo autor, como por exemplo o Docteur Pascal, de Zola. O mesmo homem que nos presenteou com um bom livro muitas vezes nos deu também de presente vários bons livros. No caso de Multatuli, sinto-me impossibilitado de dar preferência a Cartas de amor em detrimento das cartas particulares, ou vice-versa, e por isso escrevi: Cartas e obras. Excluíram-se obras essencialmente literárias, de valor puramente poético, talvez porque seu pedido – bons livros – não parecesse referir-se diretamente a tais obras. Assim, no caso de Hutten, de C.F. Meyer, o “bom” prevaleceu sobre o “belo”, a “edificação” sobre o prazer estético.
Ao solicitar-me que indicasse “dez bons livros”, o sr. tocou num ponto sobre o qual muitíssimas coisas poderiam ser ditas. Termino, pois, para não ficar ainda mais loquaz.


Sigmund Freud”

Extraído do livro Os dez amigos de Freud, de Sergio Paulo Rouanet - Companhia das Letras - São Paulo, 2003.

sexta-feira, outubro 28, 2011

Imagens dialéticas

Não é que o passado lança sua luz sobre o presente ou que o presente lança sua luz sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal e contínua, a relação do ocorrido com o agora é dialética - não é uma progressão, e sim uma imagem, que salta. - Somente as imagens dialéticas são imagens autênticas (isto é: não-arcáicas), e o lugar onde as encontramos é a linguagem. / despertar / 
Walter Benjamin (1892-1940). Teoria do conhecimento, teoria do progresso. Passagens.

quinta-feira, outubro 27, 2011

Weber e sua Weltanschauung

A premissa transcendental de qualquer ciência da cultura reside, não no fato de considerarmos valiosa uma "cultura" determinada ou qualquer, mas sim na circunstância de sermos homens de cultura, dotados da capacidade e da vontade de assumirmos uma posição consciente face ao mundo, e de lhe conferirmos um sentido.
Max Weber (1864-1920). A "objetividade" do conhecimento nas Ciências Sociais. 

quarta-feira, outubro 26, 2011

Cotidiano insosso: propagandas

O que seria do sistema atual de produção de mercadorias sem as propagandas? E o que seria das próprias mercadorias sem as propagandas? E como a produção se sustentaria sem as propagandas? E como o mundo desigual e antagônico se sustentaria com a ausência desse sofisticado caldo ideológico?
Acrescento mais: o que seria de nós sem as propagandas? Que sentido nossa vida teria? Um mundo sem sonhos cinematográficos, sem mulheres sensuais, sem computação gráfica, sem desejos programados, sem estímulo ao consumo voraz e fútil... Um mundo sem propagandas...já pensou nisso? Como seria?
Que propósito a vida teria que não fosse o consumo? Já se pensou sem os sonhos de comprar uma casa nova (um anúncio de uma mansão num condomínio fechado), sem o desejo insaciável de um novo automóvel (um carrão importado)...aparelhos digitais, eletrônicos...roupas da moda e de grifes famosas...ah, como a vida é maravilhosa...Que propósito mais profundo para a existência do ser que o consumo de fantasmagorias..!!!!
Pense nas marcas mais famosas que conhece. Agora, imagine-as sem os comerciais ou sem os anúncios. Difícil, não é? Se formos mais longe, apague da sua memória o nome das marcas. Exclua dos produtos toda a embalagem e tudo o mais que vá além daquilo que o produto realmente é. Sem cores, sem imagens, sem sensações, sem emoções, sem celebridades, sem conceitos, sem simulações de situações pretensamente reais...sem frases de efeito, nem slogans ou jingles. Puts, é necessário um esforço e tanto, não?
Já imaginou um mundo em que os objetos vendidos no supermercado fossem somente aquilo que eles são de fato? Produtos, e nada mais. Coisas materiais. Artigos produzidos pelo homem com a finalidade de atender as necessidades dele próprio. Nesse pedaço de terra imaginário, uma camisa seria apenas uma camisa, assim como um sapato também seria somente um sapato. E assim sucessivamente, com todos os outros artefatos: xampu, escova de dentes, sanduíches, automóveis, celulares...
Todos os produtos existiriam para uma finalidade que seria propriamente humana. De acordo com tal idéia, não haveria qualquer mistério sobre o porquê da necessidade de qualquer um dos objetos. Essa necessidade se daria pelas próprias condições da existência e da vida humana.
Nesse mundo, a necessidade estaria plenamente associada à utilidade e à finalidade. As pessoas procurariam produtos que lhes fossem úteis e que atendessem a determinadas finalidades.  Necessidade, utilidade e finalidade essencialmente humanas, autônomas, todas relacionadas à vida concreta e real das pessoas. Não haveria falsos desejos, nem ilusões sobre os bens produzidos pelo homem, sejam eles materiais ou frutos da imaginação.
Tudo bem, você pode até dizer que esse é um mundo utópico e tudo mais. Bom, quanto a isso, mil coisas podem ser ditas. Não é essa a questão levantada. A idéia não é pensar o não-lugar (esse possível que ainda não existe), mas sim, falar da falsidade desse mundo ou de uma de suas facetas mais concretas: o universo da propaganda. Teorizo, de modo especulativo, sobre a mágica construção dessa realidade onírica.
Independente de uma grande teoria ou não, o certo é que a propaganda é um meio sofisticado de dizer aquilo que não é. O comercial vai lhe trazer uma necessidade falsa de consumo. O produto não é aquilo. Na realidade, não há um verdadeiro motivo para o seu consumo. Quem lhe vende o artefato não pensa em outra coisa senão no lucro.
Pergunte-se de um modo sincero antes de comprar qualquer coisa: qual é a finalidade daquele produto? Para quê? Por que comprar? Pare. Pense. Olhe a sua volta. Pense nas pessoas que o rodeiam. O consumo tem um lado social que é fundamental. Você consome por uma necessidade, antes de tudo, criada pela sociedade. Você compra o produto por algo que ele possa lhe trazer perante o grupo: status, poder, reconhecimento, visibilidade, pertencimento, segurança, acolhimento...
Você não quer ficar de fora. Você quer pertencer a alguma coisa. Você quer o reconhecimento daqueles que já pertencem no grupo em que almeja ser membro. São códigos, signos, símbolos...que grupos e/ou coletividades identificam o sentido que eles expressam. Certos objetos não são somente objetos, mas também o que eles expressam socialmente. As coisas dizem o que você é; quem você é; que sonhos tem...
Tudo. O que você pensa sobre tudo é expresso pelas mercadorias. Já está tudo pronto. Você compra todo o pacote. A mercadoria e o seu sentido. “Diga o que consomes e direis quem tu és”. Tal roupa é para rapazes arrojados. Aquelas outras são para senhores que querem parecer garotões. Aquele carro é para homens bem sucedidos. Já o outro é para perdedores que não conseguiram muita coisa na vida.
Curiosamente. Os nossos sonhos terminam na aquisição das coisas. O que queremos não está na coisa em si. Quem nunca se sentiu frustrado após comprar aquela mercadoria tão desejada? Quantas coisas não usamos por que realmente não nos eram necessárias? Por que na loja o objeto era tão diferente do que é agora?
Sobre estas questões, é necessário traçar mais idéias e argumentos a respeito da noção de mercadoria. É dela que podemos partir para avaliar esta sociedade. É por meio dela que as relações sociais se entrelaçam, numa complexa teia de demonstrações de força e poder. Mas, aqui não há espaço misturar muito tais noções. O importante é estabelecer a conexão entre a propaganda e as mercadorias.
Quando olhamos para o passado e vemos o que consumíamos, ou mesmo, o que nossos antepassados consumiam, não nos parece estranho? É engraçado. Há um espaço de tempo interessante que faz com que, de alguma forma, nos afastemos do espírito ideológico da época. Olhamos o passado com o olhar cultural de hoje. As diferenças são gritantes e até cômicas.
Sobre esse aspecto, nada é mais ilustrador do que a moda. Você se lembra do que estava na moda há vinte anos? Recorda-se das roupas? Muitos pensam: “melhor apagar tudo da memória”. Realmente, para a realidade de algumas décadas para cá, memória é um processo em extinção. Ok. Esse também pode ser um assunto para outras reflexões. Mas, e os produtos, as roupas, a propaganda...de anos e anos atrás?
Esse distanciamento provocado pelo tempo e pelo esquecimento programado leva-nos a filtrar, de alguma forma, o que no passado fazia sentido. Aquela necessidade construída pela propaganda da época hoje já não faz o menor sentido. De que vale usar uma calça boca de sino se a moda é calça justa? Não há status nisso, nem reconhecimento algum. Mesmo que o objeto cumpra com suas finalidades e utilidades (proteção e aquecimento do corpo) quem o ver não identificará nada, a não ser, um monte de lixo (mesmo que numa outra época esse mesmo artefato tenha sido o objeto de desejo e consumo).
A propaganda tem um lado cruel. Para nos iludir ao consumo ela estimula nossas pulsões mais primitivas. Quantos não são os comerciais que desenrolam mensagens preconceituosas, arrogantes, intolerantes, segregantes... Por que há sempre um Mané nos comerciais de cerveja? Por que quem consome o produto é sempre “o cara”? Tudo o que tem de mais baixo e sujo é difundido à exaustão pela propaganda.
Por que existem propagandas de cerveja? Por que existem propagandas de remédios? Por que existem propagandas de brinquedos?
Por que no comercial de um medicamento para atletas as pessoas se afastam daquele que tem frieiras ou coceiras (que, aliás, nem são visíveis)? Por que na propaganda de analgésico numa cena uma mãe aparece com expressão sofrida e após o consumo da droga reaparece numa montanha russa de um parque de diversões? Por que um cara chega a conclusão de que vale a pena ir para a cadeia repetidas vezes só para ter o gostinho de assaltar e entrar no carro do ano anunciado pelo comercial? Por que, apesar de existir todo esse contexto de sustentabilidade, uma montadora de carros faz um comercial em que um rapaz ateia fogo no próprio carro – em perfeitas condições de uso – só por que não possui o veículo da moda? Por que numa propaganda em que um carro estaciona sozinho o menino, filho do dono do carro, se gaba com o amiguinho, fazendo-o pensar que tudo aquilo acontece num passe de mágica (nessa, o filho humilha o amiguinho e se gaba por ser o espertão que anda no carrão do momento)?
Boçalidades programadas e calculadas.

terça-feira, outubro 18, 2011

Cultura crítica e práxis revolucionária (1916)

O homem é acima de tudo espírito, isto é, criação histórica, e não natureza. Não poderia explicar de outra forma por que, havendo existido sempre explorados e exploradores, criadores de riqueza e consumidores egoístas dela, o socialismo ainda não tenha se realizado. O fato é que só de degrau em degrau, de arranco em arranco, a humanidade adquiriu consciência do seu próprio valor...E esta consciência se formou não sob o grilhão brutal das necessidades fisiológicas, mas através da reflexão inteligente, primeiramente de alguns e depois de toda uma classe, sobre as razões de determinados fatos e sobre os meios mais adequados para transformá-los da condição de vassalagem em estandarte de rebelião e de reconstrução social. Isto significa que toda revolução foi precedida de um intenso trabalho de crítica, de penetração cultural.
Antonio Gramsci (1891-1937). Il Grido.

segunda-feira, outubro 17, 2011

Contradição

Pois a contradição não reside na incapacidade dos filósofos em analisar de maneira unívoca os fatos diante dos quais eles se encontram; é, antes de tudo, a expressão intelectual da própria situação objetiva que eles têm como tarefa compreender. Em outros termos, a contradição que nesse caso vem à luz entre a subjetividade e a objetividade dos sistemas formais modernos e racionalistas, os emaranhados e equívocos que se escondem em seus conceitos de sujeito e de objeto, a incompatibilidade entre sua essência de sistemas "produzidos" por "nós" e sua necessidade fatalista, estranha ao homem e distanciada dele, são apenas a formulação lógica e metodológica da situação da sociedade moderna.
György Lukács (1885-1971). História e consciência de classe.

sexta-feira, outubro 14, 2011

Reflexão sobre a historicidade do olhar e o estruturalismo em Foucault

Michel Foucault (1926-1984) foi um pensador sempre impelido pela curiosidade, que revisou e expandiu suas investigações, através de uma autocrítica e de uma auto-reflexão. Por essa razão, é difícil localizá-lo ou inscrevê-lo numa forma particular, ou numa determinada linhagem teórica (recusa metodológica ao grande esquema). Seu trabalho é marcado por fases distintas, nas quais elabora discussões sobre ciência, conhecimento, sujeito e poder. Apesar dessas constatações, sua teoria se constitui a partir de uma herança muito próxima ao estruturalismo.
A teoria de Foucault se move a desnaturalizar os objetos (pensar a forma como foram constituídos; quais as condições que tornaram possível sua emergência) e a historicizar radicalmente as perspectivas e os olhares que apreendem esse objeto (historicizar os grandes temas da filosofia). Nesse sentido, o autor desconstrói as ciências humanas e se põe a entender os regimes de verdade, as formas como as coisas se tornam visíveis a nós, os meios pelos quais isso se torna pensável; como em diferentes épocas foi se constituindo a crença de que é possível a verdade (trama de instituições de validação; valida o que pode ser dito sobre esse objeto; sistemas de classificação).
Foucault relativiza o empreendimento da ruptura epistemológica bachelardiana, apropriada por Bourdieu (construir um problema de fundo sociológico). O autor permanece filósofo, não acreditando na ciência e em seus ramos disciplinares. Em Foucault a razão não pode orientar o homem, não pode ser julgadora; o autor apresenta uma descrença na razão.
Quanto à herança estruturalista de Foucault, muitos teóricos apresentam dúvidas se o autor era ou não era estruturalista. Nos termos próprios do estruturalismo mais clássico a abordagem foucaultiana se distingue, reformulando novas problemáticas, mas algumas perspectivas se mantêm: aquela velha e conhecida sensação de estarmos rodeados por um conjunto de práticas, costumes e crenças (tramas de poder) que nos delimitam o caminho e que não nos damos conta de sua ação (historicizar o que vem antes da escolha, antes da estratégia do indivíduo – a disciplina vem antes do indivíduo).
As relações de poder exercem um poder de dominação que não necessariamente é ativo e com o uso da força, mas que pode ser passivo e se caracterizar por manifestar-se em forma de consenso entre os indivíduos (aceitação das normas; o indivíduo é positivamente produzido). Ou seja, conceitos tais como: tramas de poder, práticas de subjetivação e objetivação, mecanismos de dominação, disciplinazação, entre outros apresentam uma proximidade com certo tipo de estruturalismo.
Foucault também trabalha com a idéia de resistência, contra-poder, contra-discurso, mas suas teorizações não lidam com a problemática da emancipação, que também é próprio da descrença de seu tempo. Em certa maneira, o autor está mais preocupado com essas formas de relações de poder, com a produção de sujeitos (circunscritos nos pequenos discursos, nas questões menores).
Texto escrito por Leonardo de Lucas S Domingues em 2008.

segunda-feira, outubro 03, 2011

Sociologia: entre a solidão e a esperança

Se falei das grandes perspectivas que se devem combinar com a pesquisa especializada, foi porque acredito que todas as problemáticas sociológicas e até a simples atitude sociológica contêm sempre uma intenção que transcende a sociedade tal como é. Sem essa intenção, não há problemática correta, nem sequer o simples pensamento sociológico - por mais difícil que seja imaginar essa intenção com exatidão. Sem ela, sucumbe-se sob o excesso de dados ou cai-se na pura invenção. Certa mania de criticar o que existe faz, por assim dizer, parte da profissão de teórico da sociologia, e é justamente esse elemento crítico que torna o sociólogo impopular, quando, na verdade, decorre do elemento mais positivo que existe: a esperança. Ensinar aos estudantes a suportar essa tensão em face do que existe, tensão essa que faz parte da própria existência de nossa ciência, torná-lo social no verdadeiro sentido do termo - o que implica que eles sejam capazes também de permanecer sós - é, talvez, o objetivo último e mais importante da formação como nós a concebemos.
Max Horkheimer (1895-1973). Ein Bericht über die Feier seiner Wiederöffnung, seine Geschichte und seine Arbeiten.

quinta-feira, setembro 08, 2011

Cotidiano insosso: corte de cabelo

Quando os primatas passaram a se parecer com o que somos hoje, homo sapiens, as noções de higiene e os cuidados com o corpo tornaram-se, aos poucos, marcas do nosso processo civilizatório. Não seriamos mais animais, a partir desse momento, mas, sim, homens limpos e bem tratados.

Nossa inimiga declarada: a natureza. Criamos meios para que ela não pudesse mais correr livremente por meio de nossos corpos (pelo menos no que diz respeito a aparência física). Os cheiros não são agradáveis, a pele fica suja com a oleosidade, as unhas crescem e os pêlos tomam conta de tudo. Em um determinado momento histórico-social, essas questões começaram a fazer sentido para a sociedade ou para a parte dela que podia se dar ao luxo de pensar sobre isso. Diante disso tudo, a necessidade social de cortar o cabelo tomou forma material no salão de beleza.
Cortar o cabelo. Para os homens, em geral, é uma ação básica para mantê-lo curtinho (pelo menos entre os países ocidentais). Já para as mulheres o importante é aparar as pontas. Mas não importa, essa prática é inevitável em nossa sociedade, a não ser que você viva em alguma seita religiosa ou coisa do tipo.
Não sei quanto a outros homens, mas eu detesto cortar o cabelo. Reluto até o último minuto antes de me decidir a entrar em um salão de cabeleireiro. Não tenho uma explicação lógica para isso, só sei que algumas atividades do dia-a-dia são de difícil execução para as minhas limitadas capacidades práticas.
Fora alguns salões nos quais encontramos senhores de idade que são agradáveis e que têm uma boa conversa, na maior parte das vezes o que sobra é a rotina incômoda de uma operação meramente mecânica (quase como aparar o pêlo). Não culpo os trabalhadores por isso. Atualmente, mesmo esse pequeno ramo do comércio já se encontra muito bem inserido na grande teia da produção de valor. Poucos são os salões que ainda operam nas características de prestação de serviços feitas pelos chamados autônomos.
O que vejo, principalmente nas cidades de grande e médio porte, são salões que mais parecem indústrias de produção em série de cortes de cabelo. Envolto nesse processo, há uma diversa mescla de produtos e atividades correlatas que acredito renderem muito mais do que o simples corte de cabelo. Esse universo da beleza tornou-se muito atrativo para os negócios. Em poucos anos, uma verdadeira mania por cosméticos de todo tipo e por processos dos mais estranhos para fazer com que as pessoas se sintam mais atraentes e mais jovens tomou a forma imprescindível de um dever austero e inegável.
A pessoa que corta o cabelo, cabeleireiro, já não é mais dona de seu negócio; não é dona de seus meios de produção. Por isso creio que esse hábito está se tornando cada vez mais a sua pura execução. Tudo se reduziu ao corte. É semelhante a tirar fotos naquelas caixas em que as fotos prontas saem logo em seguida, em sequência. Você entra, passa algum tempo, e a coisa está pronta.
Não há muito o que fazer: na tv passa novela, nas revistas só imagens de pessoas sorrindo e poucos textos, nas conversas o que é impera são os produtos de beleza e os problemas de família. Não consigo entender como as mulheres de hoje gostam tanto desse ambiente. O único salão que gostei foi um que o cabeleireiro trazia revistas antigas de futebol para a leitura dos clientes (e ele contava muitas histórias interessantes). Isso fazia algum sentido para mim. Não pelo fato do assunto ser o futebol, mas por ser um convite criativo a imaginação.
Apesar de todas essas questões, um momento do corte de cabelo me põe a refletir, aquele em que nos olhamos no espelho. Naquele instante você é forçado a olhar para você mesmo, quer queira ou quer não. De repente, pode-se notar o passar do tempo nos traços que não reparamos do dia-a-dia. Outros aspectos também se mostram visíveis...você se avalia, se redescobre, se vê por um ângulo diferente...
Depois da percepção da aparência surgem as questões, a investigação dos fatos, o balanço de seu passado recente. Diante dos problemas enfrentados, que soluções encontrou? Foram as melhores?.... O momento do espelho pode ser uma inquisição psicológica: confesse para si mesmo, agora que não tem como fugir!
É interessante pensar que nesse templo da aparência (em todos os sentidos) haja esse pequeno portal intimista de sinceridade e autenticidade. Você vê que a despeito da maravilha ofertada pelo mundo da mercadoria, você sofre e perece. Talvez até note a desilusão das pessoas que buscam nesses produtos e nos estereótipos lançados pela mídia uma felicidade que não está inscrita nos objetos. As pessoas se frustram por terem criado uma falsa expectativa que foi movida por um falso desejo.
A esterilidade da beleza atual esconde os pontos de conexão com a nossa existência. Essa mutação estética nos transforma em seres que não somos. Ela anula a aparência autêntica e a substitui por uma aparência programada.... Narizes amorfos são a maior prova de uma vida que se move para uma essência oca e plasticamente fria. Esses indivíduos genéricos fisicamente se anulam diante de um rótulo preestabelecido...
Quando vejo esses programas que enfatizam essa perfeição estética, arrepio-me pelo culto aos grandes aparelhos brancos que mais parecem terem saído de uma UTI. Ninguém quer compreender como eles funcionam, muito menos quer refletir sobre o porquê de sua construção. Todo o negócio nefasto é consubstanciado em mágica. Um ar místico gravita em torno das gigantes engenhocas milagrosas.
No salão de cabeleireiro, entre uma tesourada e outra, algo me diz que a beleza não é dotada plenamente de sentido; não creio que haja uma essência para o belo. Se houver, certamente não está tão alheia a nós a ponto de negarmos nossa humanidade para alcançá-la.
Uma banda inglesa disse isso um tempo atrás:
She looks like the real thing
She tastes like the real thing
My fake plastic love

quarta-feira, setembro 07, 2011

O Homem de Davos (na terra da Montanha Mágica)

E ali, nas encostas de esqui da Suíça, vestidos como para praticar esportes, estão os vencedores. Aprendi uma coisa do meu passado: seria fatal tratá-los como apenas pérfidos. Enquanto os de minha espécie se tornaram adeptos de uma espécie de desconfiança passiva da realidade existente, a corte de Davos estua de energia. Defende as grandes mudanças que assinalaram nossa época: novas tecnologias, ataque às burocracias rígidas, economia transnacional. Poucas das pessoas que conheci em Davos começaram a vida ricas ou poderosas como se tornaram depois. É um reino de conquistadores, e devem muitas de suas conquistas à prática da flexibilidade.
O Homem de Davos está mais publicamente encarnado no Bill Gates, o ubíquo presidente do conselho da Microsoft Corporation. Ele apareceu há pouco; como fazem muitos oradores na reunião, tanto em pessoa quanto ampliado numa imensa tela de televisão. Ouviram-se murmúrios de alguns maníacos da tecnologia na sala, quando a cabeça gigante falou; acham medíocre a qualidade dos produtos da Microsoft. Mas para a maioria dos executivos ele é uma figura heróica, e não só porque ergueu uma empresa enorme do nada. É o próprio epítome do magnata flexível, como ficou demonstrado mais recentemente quando descobriu que não tinha previsto as possibilidades da Internet. Gates volveu suas imensas operações num minuto, reorganizando seu foco empresarial em busca da nova oportunidade de mercado.
Quando eu era criança, tinha uma coleção de livros intitulada Pequena Biblioteca Lênin, que mostrava em detalhes gráficos o caráter do capitalista que se faz a si mesmo. Uma ilustração particularmente espantosa mostrava o velho John D. Rockefeller como um elefante, esmagando infelizes operários sob as patas enormes, a tromba agarrando máquinas de trem e perfuradoras de petroléo. O Homem de Davos pode ser implacável e ganancioso, mas só essas qualidades animais não bastam para explicar os traços de caráter dos magnatas da tecnologia, dos capitalistas de risco e dos expertos em reengenharia empresarial ali reunidos.
Gates, por exemplo, parece não ter a obsessão de se apegar às coisas. Seus produtos surgem numa fúria e desaparecem com a mesma rapidez, enquanto Rockefeller queria ser dono de perfuradoras de petróleo, prédios, máquinas ou estradas de ferro, a longo prazo. A falta de apego a longo prazo parece assinalar a atitude de Gates em relação ao trabalho: ele falou mais de alguém tomar posição numa rede de possibilidades do que ficar paralisado num determinado emprego. Em todos os aspectos, é um competidor brutal, e a prova de sua ganância é do conhecimento público; dedicou apenas uma minúscula fatia de seus bilhões à beneficiência ou ao bem público. Mas sua disposição a dobrar-se é evidenciada por estar pronto para destruir o que fez, diante das demandas do momento imediato - tem a capacidade de largar, embora não de dar.
Essa ausência de apego temporal está ligada a um segundo traço de flexibilidade de caráter, a tolerância com a fragmentação. Quando Gates conferenciou no ano passado, deu um determinado conselho. Disse-nos que o crescimento das empresas tecnológicas é um caos, assinalado por algumas experiências, erros e contradições. Outros tecnocratas americanos disseram a mesma coisa aos colegas reno-europeus, que, aparentemente presos em velhos modos formalistas, querem criar uma "política tecnológica" coerente para suas empresas ou países. O crescimento, disseram os americanos, não se dá dessa forma clara, burocraticamente planejada.
Talvez o que leva o capitalista hoje a buscar muitas possibilidades ao mesmo tempo não seja mais que a necessidade econômica. Tais realidades práticas exigem no entanto uma determinada força de caráter - a de alguém que tem a confiança de permanecer na desordem, alguém que prospera em meio ao deslocamento. Rico [personagem do livro], como vimos, sofria emocionalmente com os deslocamentos sociais que acompanharam o seu sucesso. Os verdadeiros vencedores não sofrem com a fragmentação. Ao contrário, são estimulados por trabalhar em muitas frentes diferentes ao mesmo tempo; é parte da energia da mudança irreversível.
Capacidade de desprender-se do próprio passado, confiança para aceitar a fragmentação: estes são dois traços de caráter que aparecem em Davos entre pessoas realmente à vontade no novo capitalismo. São traços que encorajam a espontaneidade, mas ali na montanha essa espontaneidade é, na melhor das hipóteses, neutra. Esses mesmos traços de caráter que geram a espontaneidade se tornam mais autodestrutivos para os que trabalham mais embaixo no regime flexível. Os três elementos do sistema de poder flexível corroem o caráter de empregados mais comuns que tentam jogar segundo as mesmas regras. Ou pelo menos foi o que constatei descendo da montanha mágica e voltando a Boston.
Richard Sennett (1943- ). A corrosão do caráter.

sexta-feira, setembro 02, 2011

"os que trabalham mais obtêm menos" (Adam Smith)

No progresso da divisão do trabalho, o emprego da parte muito maior daqueles que vivem do trabalho ... passa a limitar-se a umas poucas operações simples; frequentemente uma ou duas ... O homem que passa a viada realizando umas poucas operações simples ... em geral se torna tão estúpido e ignorante quanto é possível tornar-se uma criatura humana.
Adam Smith (1723-1790). A riqueza das nações.

quarta-feira, agosto 31, 2011

A certeza da incerteza

Qualquer filosofia que, na sua busca da certeza, ignore a realidade do incerto nos processos da natureza em curso nega as condições das quais emerge. A tentativa de incluir tudo o que é duvidoso dentro do alcance fixo daquilo que é teoricamente certo está comprometida com a falta de sinceridade e com a evasão e, consequentemente, carregará os estigmas da contradição interna.
John Dewey (1859-1952). The quest for certainty.

terça-feira, agosto 30, 2011

Alienação como uma doença do eu

A alienação do pensamento não é diversa da alienação do coração. É como alguém acreditar que pensou alguma coisa, e que sua idéia é resultado de sua própria atividade de reflexão; a verdade é que transfere seu cérebro para os ídolos da opinião pública, os jornais, o governo ou um líder político. Acredita que estes expressam seu pensamento, quando na realidade ele aceita os pensamentos dessas personalidades como se seus fossem, porque as escolheu para ídolos, deuses da sabedoria e do conhecimento. Precisamente por essa razão, depende dos ídolos, sendo incapaz de sustar sua idolatria. É escravo deles porque lhes confiou seu cérebro.
Erich Fromm (1900-1980). Meu encontro com Marx e Freud.

segunda-feira, agosto 29, 2011

Reflexões sobre o cotidiano I

De grande mistério a fonte de saber, de lócus da sociabilidade a reino da alienação. Como uma junção de antíteses, o cotidiano, ou melhor, a sua representação, constitui-se ao sabor do tempo e ao gosto de seu avaliador (daquele que o observa).
Na história humana, inúmeras teorias já sondaram o tema e produziram explicações. É amplo o espectro de olhares e de pontos de referência encontrados nos detalhes, nas miudezas e nos sentidos dispersos desse complexo objeto de estudo.
Diante das transformações histórico-sociais que fizeram brotar das entranhas de um não-objeto – a vida diária do povo – essa rica fonte de fenômenos, o que resta ao pensamento é unicamente interagir com os tormentos da matéria, contradizendo, ao longo das décadas, suas próprias idéias e suas previsões lógicas.
“Cotidiano”, essa simples palavrinha é uma construção social, e como tal, é reflexo não só da quimera ideológica que nos rodeia, mas, também, da inevitável base material que nos constitui. O cotidiano está para nós, antes de estar para ele mesmo. Ou será que existe um espaço demarcado no interior da sociedade em que possamos dizer: “Aqui começa e ali termina o cotidiano”.
Poderia se dizer: “é esse dia-a-dia que nos rodeia”. Sim, mas e daí? Rodeia a quem? Que tipo de dia-a-dia é esse? É constituído a partir de qual visão de mundo? É construído por toda a sociedade ou por um grupo específico? Que interesses há por traz dessa convencional noção de cotidiano? A quem é conveniente que ele continue a ser o que é?
Portanto, o cotidiano é amplo. Apenas um estudo sobre a transformação de suas representações e sobre as condições histórico-sociais que o fizeram surgir na condição de objeto de estudo já daria para encher muitos livros de ciências sociais. Isso sem considerar as diversas abordagens existentes que também ampliariam o leque de reflexões teóricas a respeito da questão.
Não se trata aqui de percorrer as linhagens do pensamento que se debruçaram sobre o assunto, nem de revirar questões epistemológicas, levantando as relações e os interesses encobertos pela racionalidade da ciência sociológica. O autor não tem a mínima legitimidade para discorrer análises profundas, muito menos de pretensamente exaurir a realidade objetiva por meio de dados ou de sistematizações persuasivas. O que daqui vier, nas linhas que seguem, é um despretensioso ensaio, e nada mais.
Os argumentos são movidos unicamente pela vontade de escrevê-los. Não há aqui nem uma ponderação sobre os termos usados. As idéias emergem pelo contato sensível do autor e pelo pouco que ele leu sobre o tema. Isso aqui é mais um esboço (ou uma tentativa) para alguma questão mais séria que possa surgir mais a frente.
Esse movimento de entendimento e de compreensão se inicia com a constatação, seja reflexiva, seja crítica ou sei lá o que queira de que o cotidiano compõe esse amplo universo de ações e de relações que os seres humanos constituem em sociedade.
Não é preciso ser sociólogo para perceber que esse mundinho diário existe e que se tem de conviver com ele. Não se pode negá-lo, isso é fato. Mas, do ponto de vista da reflexão filosófica e sociológica, por que o cotidiano é mais um inimigo do que um aliado na reflexão e nos processos transformação? Qual a relação senso comum / cotidiano, alienação / cotidiano?
Desde que comecei a estudar sociologia tive a impressão de que o cotidiano era um mal somente necessário à reprodução do sistema (e aos que se beneficiam dele). Reprodução, aqui, mais no sentido ideológico, como sendo o cimento que cobre as ranhuras e rachaduras e que dá firmeza ao processo produtivo do todo desigual.
Não que isso representasse uma visão negativa sobre o fenômeno. Para mim, havia uma compreensão teórica até certo ponto limitada sobre a riqueza recôndita nesse dia-a-dia pretensamente inócuo.
Há toda uma tradição de pensamento, que nos leva aos antigos filósofos gregos e que se espalhou pelo ocidente, de negar o que está próximo, de não levar a sério o que os sentidos nos dizem, enfim, de evitar as ilusões que o mundo corriqueiro nos traz (uma aparência espiritual e material). É preciso distancia para enxergar melhor aquilo nos aparece como natural e óbvio dentro da lógica de organização social.
Dá para fazer uma analogia com a visão de uma obra de arte num museu, de um quadro, por exemplo. Quando vemos uma pintura expressionista, só conseguimos notar a grandeza do trabalho do autor ao chegarmos próximos da tela. Dali, podemos ver as cores e as pinceladas, que mais parecem borrões sem sentido.
Com relação ao cotidiano a situação se inverte, de perto vemos harmonia, sentido, naturalidade. Mas ao tomarmos distância, podemos ver como estávamos equivocados. Com uma visão melhor de todo o quadro, vemos as contradições e os conflitos de interesses que antes não se faziam presentes. A luz vem a nós, quando observamos sob o enfoque da ciência.
O cotidiano se torna o vilão da história quando entra no grande balaio de saberes do senso comum. É quase uma ação mecânica. Pensou em cotidiano, pensou em senso comum; pensou em senso comum, pensou em cotidiano. E, pensou em qualquer um dos dois, a associação imediata é: ilusão, alienação, não-científico, mentira, falsidade, fantasia... O senso comum, então, é um mal que deve ser extirpado pela raiz.
Não quero com essa argumentação fazer crer que defendo o senso comum ou o cotidiano. Não estou advogando uma sociologia do senso comum ou do cotidiano. Não sei se esse binômio ciência/senso comum ainda tem sentido (prefiro sair dele). Mas também, não quero negar veementemente um ou outro. Não defendo nem a ciência, nem o cotidiano. O importante é avaliar criticamente e dialeticamente cada um desses processos.
Assim como a idéia de ciência não é fechada e pronta, também a de cotidiano não é. Foi isso o que eu quis dizer até agora. Como podemos descartar alguma coisa sem conhecê-la de perto? Tomar como base essa dicotomia simples de oposição entre falso/verdadeiro, claro/escuro, ciência/mito não é deixar tudo no reino exclusivo das idéias? Alguns fenômenos necessitam de processos compreensivos que a lógica abstrata não consegue oferecer.
Tá certo, você pode dizer, o cotidiano não é lá esse mau-caráter que acreditávamos, mas o que ele é de fato? Ele é essa complexidade que se materializa a nossa frente; essa substância que se modifica à medida que o mundo muda. Por isso devemos criticar os conceitos. Estes seguem uma racionalidade própria e não se conectam com o universo humano de maneira dinâmica. E o que isso tem a ver com o cotidiano, ora bolas? A meu ver, tudo.
Penso que deveríamos perder esse preconceito arcaico. Isso não quer dizer aceitá-lo como ele é, nem submeter-se a ele como fonte de uma explicação mais ampla e profunda. Falo sobre o cotidiano num sentido mais global. Não só como objeto de estudo. O cotidiano deve fazer parte do nosso processo de reflexão diário. O contato com esse quebra-cabeças múltiplo enriquece muito a pesquisa social.
Alguns teóricos estão desbravando esse território desconhecido, mas ainda são poucos e a duras penas. Muitas pesquisas empíricas destacam aspectos que poderiam ser menosprezados por outras abordagens mais lógicas.
Mesmo no campo do trabalho, que é reduto de um pensamento fortemente crítico ao cotidiano, boas pesquisas foram feitas por historiadores que trouxeram, nos dados coletados, as minúcias e os detalhes de um universo diário em transformação. O cotidiano teve papel fundamental nessas reflexões.
É lógico que também há muita pesquisa que não leva a nada e que só acrescenta dados insignificantes. Mas, mesmo nesses, devemos não ser tão prepotentes. As pesquisas têm que correr livres como a fértil imaginação humana.
Não há objeto de estudo melhor ou pior que o outro. Criar não-objetos só estimula o pensamento narcisista a seguir seu próprio caminho sem encontrar obstáculos.
O pensamento não quer pensar em outra coisa, a não ser, nele mesmo.
Os pensamentos devem ser nossos, antes de serem deles mesmos.

sábado, agosto 27, 2011

Fome: problema social

O maior absurdo de nossa sociedade é termos deixado morrer centenas de milhões de indivíduos de fome num mundo com capacidade quase infinita de aumento de sua produção e que dispõe de recursos técnicos adequados à realização desse aumento [...] não podemos viver num mundo partilhado por 2/3 que não comem e, tendo consciência das causas de sua fome, se revoltam, e 1/3 que come bem - às vezes demais - mas que já não dorme com medo da revolta dos 2/3 que não comem.
Josué de Castro (1908-1973). Geografia da fome.

terça-feira, agosto 09, 2011

A existência precede a essência

O homem deve criar sua própria essência; é jogando-se no mundo, sofrendo, lutando, que aos poucos se define... A angústia, longe de oferecer obstáculo à ação, é a própria condição dela... O homem só pode agir se compreender que conta exclusivamente consigo mesmo, que está sozinho e abandonado no mundo, no meio de responsabilidades infinitas, sem auxílio nem socorro, sem outro objetivo além do que der a si próprio, sem outro destino além do que forjar para si mesmo aqui na Terra.
Jean-Paul Sartre (1905-1980). Os escritos de Sartre

segunda-feira, agosto 01, 2011

Wesen-Unwesen

O mundo é o sistema do horror, mas quem ainda procura pensá-lo inteiramente como um sistema faz-lhe uma excessiva honraria, pois seu princípio unificador é a cisão, que reconcilia na medida em que impõe pura e simplesmente o caráter irreconciliável do universal e do particular. Sua essência (Wesen) é a essência desnaturada (Unwesen); porém sua aparência, a mentira, graças à qual subsiste, é o lugar-tenente da verdade.
Theodor W. Adorno (1903-1969). Minima Moralia.

quinta-feira, julho 21, 2011

Wissenschaft als Beruf (1917/1919)

Sem dúvida nenhuma, o progresso é um fragmnento, o mais importante, do processo de intelectualização a que estamos submetidos desde milênios e relativamente ao qual algumas pessoas adotam, atualmente, posição estranhamente negativa.
 Inicialmente, tentemos perceber com clareza o que significa, na prática, essa racionalização intelectualista que devemos à ciência e à técnica científica. Acaso, significará que todos os que estão reunidos nesta sala possuem, no que se refere às respectivas condições de vida, conhecimento superior ao que um índio ou um hotentote poderiam alcançar a respeito de suas próprias condições de vida? É pouco provável. Dentre nós, aquele que entra num trem não tem noção alguma do mecanismo que permite que permite ao veículo pôr-se em marcha - exceto se for um físico de profissão. De outra feita, não temos necessidade de conhecer aquele mecanismo. É suficiente poder "contar" com o trem e orientar, consequentemente, nosso comportamento. Não sabemos, todavia, como se constrói aquela máquina que tem condições de deslizar. Contrariamente, o selvagem conhece, de modo incomparavelmente melhor, os instrumentos de que se utiliza. Eu seria capaz de garantir que todos ou quase todos os meus colegas economistas, porventura presentes nesta sala, dariam respostas diferentes à pergunta: como explicar que, utilizando a mesma quantia de dinheiro, ora se possa adquirir grande porção de coisas e ora uma porção mínima? No entanto, o selvagem sabe perfeitamente como agir para obter o alimento diário e conhece os meios capazes de favorecê-lo em seu propósito. A intelectualização e a racionalização crescentes não equivalem, portanto, a um conhecimento geral crescente a respeito das condições em que vivemos. Antes, significam que sabemos ou acreditamos que, a qualquer instante, poderíamos, conquanto que o quiséssemos, provar que não existe, primordialmente, nenhum poder misterioso e imprevisível que interfira com o curso de nossa vida. Em outras palavras, que podemos dominar tudo, por meio da previsão. Isso é o mesmo que despojar de magia o mundo. Não se trata para nós, como para o selvagem que acredita na existência daqueles poderes, de apelar a métodos mágicos para dominar os espíritos ou exorcizá-los, mas de recorrer à técnica e à previsão. Essa é a essência da significação de intelectualização.
Daí surge uma nova pergunta: realizado ao longo dos milênios da civilização ocidental e, em termos mais gerais, esse processo de desencantamento, esse "progresso" do qual participa a ciência, como elemento e motor, tem significação que ultrapasse essa pura prática e essa pura técnica? Mereceu exposição vigorosa na obra de Leon Tolstói essa questão. Por via que lhe é própria, Tolstói a tal questão chegou. Todas as suas meditações cristalizaram-se crescentemente em torno do seguinte tema: a morte é ou não é um acontecimento que encerra sentido? Sua resposta é a de que, para um homem civilizado, não existe tal sentido. Obviamente não pode existir porque a vida individual do civilizado navega no "progresso" e no infinito e, consoante seu sentido imanente, essa vida não deveria ter fim. Por certo, há sempre possibilidade de novo progresso para aquele que vive no progresso. Dos que morrem, nenhum chega jamais a atingir o cimo, já que o cimo se encontra no infinito. Abraão ou os camponeses do passado morreram "velhos e plenos de vida", pois que estavam instalados no ciclo orgânico da vida, porque esta lhes havia reservado, ao fim de seus dias, todo o sentido que podia proporcionar-lhes e porque não subsistia enigma que eles ainda teriam desejado resolver. Portanto, podiam considerar-se plenos com a vida. Contrariamente, o homem civilizado, posto em meio ao caminhar de uma civilização que se enriquece continuamente de pensamentos, de experiências e de problemas, pode sentir-se "cansado" da vida, mas não "pleno" dela. Certamente, jamais ele pode apossar-se senão de uma parte diminuta do que a vida do espírito incessantemente produz. Ele pode captar apenas o provisório e jamais o definitivo. Em virtude disso, a seus olhos a morte não faz sentido, também a vida do civilizado não o faz, já que a "progressividade" sem significação faz da vida um acontecimento igualmente sem significação. Nas últimas obras de Tolstói, por toda parte encontra-se esse pensamento, que dá estilo à sua arte. 
Max Weber (1864-1920). Ciência como vocação.

segunda-feira, julho 18, 2011

Transformações nos processos de trabalho no capitalismo

Segundo Marx, processo de trabalho, com base em seu elemento simples e abstrato, é a atividade humana orientada a um fim para produzir valores de uso. É o meio pelo qual se dá a interação com o meio natural para satisfazer as necessidades humanas, condição universal do metabolismo entre o homem e a natureza (1985, p.153). Nesse processo, três fatores tornam-se indispensáveis: os próprios seres humanos ou a força de trabalho; as matérias-primas sobre as quais o homem atua; e os instrumentos que viabilizam essa transformação. Não consideradas aqui as especificidades históricas de cada período.
O processo de trabalho no capitalismo se caracteriza por ser, ao mesmo tempo, processo de produção de valores de uso e processo de produção de valores excedente (de troca). A produção de valor é, acima de tudo, processo de valorização, isto é, processo de produção de mais-valia e de capital. Essa é a situação em que o capitalista assegura a reprodução da sua condição de apropriação sobre a produção e o trabalho do proletário, que se reproduz, também, enquanto despossuído de meios de produção e possuidor apenas de sua força de trabalho. Tal processo se torna possível por meio da redução do tempo de trabalho necessário - a parte do tempo que o trabalhador utiliza para si mesmo - e aumento do mais trabalho, que corresponde ao tempo de trabalho para o capitalista (MARX, 1985).
Na história de formação do capitalismo, o controle sobre o processo de trabalho foi palco de conflitos e de demonstrações de resistência dos trabalhadores. A luta se dava em torno da autonomia do processo de trabalho, ameaçada de diversas formas por um sistema capitalista ainda gestante. A imposição de um sistema de parcelamento das atividades dos trabalhadores, por um lado, e da centralização hierárquica do mando nas mãos do capitalista, por outro, não se deu por razões de superioridade técnica, e nem teve como função a eficácia técnica, mas, tão-somente, se deu em favor da acumulação e do controle da produção (MARGLIN, 1980).








Nesse palco de apropriação do excedente no interior do processo de trabalho, o confronto entre capital e trabalho se torna visível. A fábrica surge como espaço de disciplina e de controle, e a máquina, por sua vez, representa a arma de uma estratégia de dominação. Muitas lutas foram travadas contra a imposição da maquinaria, encabeçadas por tecelões, operários e mulheres. Michelle Perrot retrata, de maneira notável, como que na França do século XIX, estabeleceu-se uma disciplina industrial que perpassava várias instituições da sociedade, integrando a fábrica , a escola, o exército e a prisão (PERROT, 1988, p.53).
Com a máquina e o sistema de máquinas sob a grande indústria, o processo de trabalho propriamente dito tende a negar a si próprio como processo de trabalho, sob a direção consciente do trabalho vivo (trabalhador), para se tornar processo de produção do capital conduzido pelo trabalho morto (máquina). O que significa que, neste caso, o homem é deslocado do processo de trabalho, deixando de ser elemento ativo e tornando-se elemento passivo, seguindo o ritmo e a cadência do sistema de máquinas. Isso é o que Marx irá denominar como sendo a passagem da subsunção formal do trabalho para a subsunção real do trabalho ao capital (ANTUNES, 1995).
A introdução da maquinaria tem como conseqüência o aumento da produtividade, a desqualificação e a desvalorização dos trabalhadores por meio dos elementos objetivos do processo de trabalho. Na fábrica, instalações, máquinas e equipamentos não podem mais ser utilizados individualmente, porque somente adquirem funcionalidade quando utilizadas coletivamente.
Para intensificar a produção, os capitalistas precisavam conter as diversas formas de porosidade (eliminar o tempo morto) que obstacularizavam o incremento da acumulação de capital. Essas porosidades diziam respeito à falta de integração entre as atividades produtivas e a perda de tempo conseqüente dessa operação (tanto por parte do treinamento operativo do trabalhador, quanto da disposição inadequada de máquinas e matérias-primas, por exemplo) (NEFFA, 1989). A introdução da maquinaria já representava uma forma de estratégia nesse sentido.
Sobre esse plano, instalaram-se técnicas gerenciais que proporcionaram ao capital transpor esses limites. No início do Século XX, Frederick Taylor reinventa a organização do processo produtivo capitalista, com objetivo de extrair o maior aproveitamento possível da força de trabalho (formas e modalidades de obter economia de tempo). Caracterizava-se por compreender: estudos de tempos e movimentos realizados pelos trabalhadores (reduzir tempo ocioso da produção); trabalho prescrito (ação já pensada no escritório de métodos); individualização do trabalho; padronização das tarefas e dos instrumentos de trabalho; seleção pretensamente científica dos trabalhadores; treinamento operacional; pagamento individualizado (remuneração correspondendo ao rendimento, como forma de estímulo); pausas e repousos entre as atividades; e estrutura hierárquica ampliada de controle e supervisão. O taylorismo se constituía, então, em uma proposta de racionalização da produção que integra a organização científica do trabalho (OCT), aprofundando a divisão técnica do trabalho e a separação entre concepção e execução (NEFFA, 1998; CATTANI, HOLZMANN, 2006).
A introdução de todos esses mecanismos se configura numa estratégia patronal de gestão e de organização do processo produtivo, com ênfase na disciplina e no controle fabris. Analisando os processos de resistência que os trabalhadores impunham a essas mudanças, percebe-se que foi muito mais uma estratégia política para retirar o poder de decisão dos trabalhadores na fábrica por meio de uma apropriação do seu saber, visando com isso destruir uma específica organização do processo de trabalho (DE DECCA, 1984).

O fordismo acentua e transforma a divisão social e técnica do trabalho, utilizando outros meios de trabalho. Tal técnica de gerenciamento introduziu a cadeia de montagem, o que possibilitou a mecanização do processo produtivo e a constituição do trabalhador coletivo fabril. A intenção, para aumentar a eficiência das empresas e fazer uma maior economia de tempo, foi mecanizar ao máximo o trabalho e incrementar o rendimento das máquinas, mais do que aumentar a produtividade direta do trabalho manual, que era o objetivo taylorista. Para alcançar esses objetivos, fez-se uma produção massiva de bens de consumo duráveis, pautada na utilização de tecnologias de propósitos únicos (estrutura rígida).
O fordismo/taylorismo teve seu desenvolvimento associado à expansão capitalista mundial, com grande ascensão durante o Estado do Bem Estar Social. No entanto, com as crises dos anos 70, o capitalismo ingressa em mais uma metamorfose, sob viés do programa neoliberal de redução do Estado e da atividade produtiva. Mudanças profundas se estabeleceram nas formas de produção e acumulação capitalista, assim como nas relações sociais que as acompanham. A crise do modelo de acumulação capitalista levou a um reordenamento das formas de organização do capital por meio de uma reestruturação produtiva. As empresas, ao tentarem restabelecer as taxas de lucro, tiveram de adotar medidas para reduzir custos de produção, aumentar a produtividade, ampliar o mercado e acelerar o giro de capital.
É a partir dos anos de 1990 que se observa a ampliação de novas técnicas de gestão do trabalho, profundamente inspiradas no chamado “modelo japonês” de administração e organização da produção. Também conhecido como toyotismo (também chamado de produção enxuta, entre outras), este novo método de gerenciamento tornou-se um fator integrante fundamental da profunda reestruturação produtiva pela qual as empresas do mundo todo vêm passando, de modo mais incisivo, desde a década de 1980. Logo, parte de suas técnicas relacionadas à gestão e treinamento da força de trabalho converteu-se em normatização obrigatória para obtenção de certificados do tipo ISO-9000 e seguintes (LAHERA SANCHEZ, 2005). Tais certificações são hoje consideradas um padrão obrigatório para a autenticação dos negócios das mais diversas firmas perante as associações comerciais de nível nacional e internacional.
Aspecto contingente do toyotismo, os Programas de Qualidade Total são o conjunto de técnicas de gestão responsáveis pela promoção do novo perfil do trabalhador prescrito pelo novo modelo de administração de empresas internacionalmente asseverado. São esses programas que respondem pelo desenvolvimento das novas demandas requeridas pelas grandes empresas relativamente à sua força de trabalho (flexibilidade, polivalência, envolvimento e participação), demandas que garantem, ao mesmo tempo, o engajamento e o desenvolvimento de habilidades operárias que potencializam a nova maquinaria informatizada. A ideologia da administração participativa própria desses programas determina um tipo de qualificação abrangente que motiva, entre outras coisas, a participação dos trabalhadores com sugestões que possam vir a melhorar seus processos de trabalho.
Sob a atual reestruturação produtiva, essa exploração encontra-se qualitativamente agravada já que, para além da força física humana, o que está sendo extraído pela nova maquinaria que a integra é a capacidade cognitiva do trabalho vivo, aquela que produz idéias. É nesse sentido que estão sendo aplicadas as técnicas de gestão do trabalho provenientes da administração participativa, que visam a estimular as qualidades criativas da força de trabalho e, através do incitamento da participação ativa dos trabalhadores de todos os níveis no processo de produção total da empresa, promover a formalização, normalização e a conseqüente materialização dos resultados dessa criatividade. É o que para Arturo Lahera Sánchez se caracteriza como sendo a “conquista dos corações e mentes dos trabalhadores” (LAHERA SANCHEZ, 2005).
A necessidade de recuperação de rentabilidade obrigou as multinacionais a internacionalizarem o seu sistema produtivo, gerando novos vínculos de subcontratação em regiões onde os contratos de trabalho eram bastante flexíveis, proporcionando produção com mão-de-obra menos onerosa como forma de diminuir custos de produção.
As transformações vêm criando dificuldades para a ação dos sindicatos, reduzindo seu poder de representação junto à classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, exigindo novas formas de articulação que viabilizem a incorporação, organização e representação dos novos segmentos de trabalhadores, e acarretando, também, a reestruturação das estratégias de resistência dos trabalhadores.

As diferentes formas de gerenciamento da produção e do processo de trabalho não se estabelecem de forma idêntica em todos os países ou regiões e, apesar de suas distinções, não é possível dizer que uma forma tenha superado totalmente a outra (e assim por diante). “Em condições de acumulação flexível, parece que sistemas de trabalho alternativos podem existir lado a lado, no mesmo espaço, de uma maneira que permita que os empreendedores capitalistas escolham à vontade entre eles” (ANTUNES, 1995, p.22). Mesmo no interior de cada país, estão presentes conjuntos diferenciados de práticas de contratação da mão-de-obra produtiva: subcontratação, mão-de-obra familiar, trabalho domiciliar, trabalho em tempo parcial, trabalho por tarefas, cooperativas de trabalho, etc.
Apesar de compor novos nomes e de representar novas bandeiras, como a qualidade, a participação, a criatividade e a decência, a estratégia que se dá num plano mais concreto é a mesma: a luta do capital para retirar dos trabalhadores o controle sobre o processo de trabalho. Para triunfar no plano da produção, o capital cria novas formas de trabalho e de gestão, assim como reinventa, em novos arranjos, processos de trabalho que pareciam estar superados pela sua mesma lógica racionalizadora.
A busca pelo controle do processo de trabalho traz consigo o conflito entre capital e trabalho. Essa luta dispõe-se num movimento de confronto e consentimento entre as práticas de resistência dos trabalhadores e os mecanismos/estratégias de dominação exercidos pelo capital. O processo de trabalho, incorporando suas mutações e dinâmicas, estabelece-se, assim, como ponto-chave para compreensão das transformações que configuram o caráter singular/universal do sistema capitalista.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, R. Adeus ao Trabalho? São Paulo: Cortez/Unicamp, 1995.
CATTANI, A. D; HOLZMANN, L. Taylorismo. In: ______ (Orgs). Dicionário de Trabalho e Tecnologia. Porto Alegre: UFRGS, 2006.
DE DECCA, E. A ciência da produção. A fábrica despolitizada. Revista Brasileira de História. n.6. Marco Zero, 1984, p.47-79.
HOLZMANN, L. Processo de trabalho II. In: CATTANI, A. D; HOLZMANN, L (Orgs). Dicionário de Trabalho e Tecnologia. Porto Alegre: UFRGS, 2006.
LAHERA SANCHEZ, A. Conquistando corazones y las almas de los trabajadores: la participación de los trabajadores en la calidad total como nuevo dispositivo disicplinario. In: CASTILLO, J. J. (director) El Trabajo Recobrado. Uma evaluación del trabajo realmente existente en España. Madrid: Miño y Dávila, 2005.
MARGLIN, S. A. Origem e funções do parcelamento das tarefas. Para quê servem os patrões? In: GORZ, A (Org). Crítica da Divisão do Trabalho. São Paulo: Martins Fontes, 1980.
MARX, K. O Capital. 2.ed. vol.1 t.1 São Paulo: Nova Cultural, 1985.
NEFFA, J. C. Los Paradigmas Productivos Taylorista y Fordista y su Crisis: Uma contribuición a su estudio, desde el enfoque de la “Teoría de la Regulación”. Buenos Aires: Lumen, 1998.
NEFFA, J. C. El proceso de trabajo y la economia del tiempo. Contribuición al analisis crítico de Marx, Taylor y Ford. Buenos Aires: Humanitas, 1989.
PERROT, M. Os Excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

Texto escrito por Leonardo de Lucas S Domingues em 09 de junho de 2008.

domingo, julho 17, 2011

Fazer Ciências Sociais - III

Mudança. Talvez essa seja uma das marcas indeléveis de alguém que passa pelo processo de graduação em ciências sociais. Falo de mudança porque, na realidade, há um mudar em diversos sentidos. Mesmo para os alunos que não tenham lá tanta simpatia com o curso ou que estejam mais interessados somente no diploma irão ser provocados a saírem do lugar. Isso acontece principalmente se você passa a viver numa cidade universitária distante de sua família. Todo esse ambiente de novidade estimula ainda mais a necessária desconexão com o mundo diário dos problemas corriqueiros. Ainda que tenha de trabalhar para se manter nessa nova morada, como boa parte dos alunos acaba fazendo, isso não vai alterar sua jornada de reconstrução do mundo social que o cerca (e que sempre passa despercebido) por meio das diversas orientações teóricas. Talvez tal fato até potencialize seu distanciamento crítico em relação ao emaranhado de relações entre pessoas e coisas que se pulverizam numa apreensão imediata do cotidiano. O certo é que, de uma maneira ou de outra, independente de sua origem social, de seu credo e todas as outras coisas que nos distinguem/diferenciam uns dos outros, a despeito disso tudo, você vai repensar sua vida; vai questionar seu mundo; vai parar, nem que for por alguns instantes, para pensar sobre coisas que, por circunstancias das mais diversas (e que irá estudar sobre elas), dificilmente pensaria.
Não há nenhum mistério em tudo o que eu disse. A vida universitária por si só já representa uma etapa de transformação. É um momento inédito na vida de muita gente. Muitos estão longe de casa pela primeira vez, tendo que se virar com uma série de detalhes que muitas vezes não são percebidos no dia-a-dia de uma casa familiar (limpeza, comida, dinheiro...). Parece pouco, mas só esse pequeno detalhe já desorganiza a vida de muita gente. Alguns ficarão pelo caminho unicamente por não conseguirem se habituar a manter uma rotina nesse universo pretensamente livre (festas, bares, ausência de controle mais rígido quanto às faltas e às notas baixas, entre outros). Mas, não há com o que se preocupar, a maioria dos alunos estará no mesmo barco; será, de certa forma, a mesma experiência para todos; descobertas muito parecidas. É lógico que cada um terá o seu modo de vivenciá-la. Alguns viverão essas mudanças de modo extremamente intenso, outros já irão percorrer o caminho com moderação. Mas imagine-se, tudo será novo. Por isso é tão interessante estudar em uma cidade distante da sua de origem. Também é importante escolher uma universidade (com muitos cursos diferentes; esse contato com grupos distintos é fundamental).
No que diz respeito especificamente ao curso de ciências sociais, as mudanças incluem não só o contato com novas visões de mundo, mas, também, a conexão com uma miríade de formas de vida alternativa. Se sua sala for realmente representativa nesses quesitos (uma genuína classe de ciências sociais), prepare-se para tomar contato com vegetarianos, hinduístas, budistas, rastafaris, feministas, crentes, anarquistas, naturebas e bichos-do-mato de toda espécie. Por vezes, alguns mudam de uma para outra, transformam-se, convertem-se...é uma loucura. Em paralelo às mudanças de rotas, uma série de crises se sucederá, uma atrás a outra: existenciais, psicológicas, religiosas, financeiras.... Não há quem não passe por elas (a que trata da existência material será, certamente, a mais problemática).
Muitas dúvidas surgirão. Se elas decorrerem das reflexões em sala ou mesmo das leituras, alguma serventia intelectual tais dúvidas terão. Todo questionamento o levará ao movimento. Não há nada mais básico em um trabalho de reflexão. Não importa o quanto isso vá contra seus próprios pensamentos ou convicções, duvide, questione, problematize. O conforto no campo das idéias não é para os que lidam com os problemas do pensamento (muito menos para os que refletem sobre a realidade). Criticar parece ser uma resposta simples para problemas complexos. Não é bem assim. A crítica é um elemento fundamental nesse processo (assim como a autocrítica). Lembre-se que os pensamentos só servem para fazê-lo pensar, nada mais. Não cultue os pensamentos; não se fixe em idéias, principalmente as que abstratamente (no campo lógico) parecem perfeitas. Pense agindo concretamente, transformando sua realidade.
Desde o primeiro momento na graduação, tente abarcar em suas inquietações o máximo de referenciais distintos. Leia sobre tudo. Converse muito com professores de matérias diametralmente opostas. Procure saber, já no primeiro ano, quais os projetos desenvolvidos nas pesquisas do corpo docente. Mergulhe no erro. Teste suas afinidades teóricas. Discuta. Quando sentir que as idéias não saem de certo limite de segurança, provoque-as, remova obstáculos; jogue os pensamentos contra si mesmos. A realidade não vai até onde se estende a racionalidade lógica de meros conceitos abstratos.
Se for instigado a pensar, fará do mundo uma grande experiência criativa. Verá que a mudança que se materializa em você se expressa antes na realidade que o cerca. Esse movimento o levará a investigar sobre o que está inscrito no universo social que nos rodeia. Por trás de explicações supostamente óbvias sobre cada coisa que existe no mundo, apreenderá o jogo contraditório das relações que constituem esse agora antagônico mundo.