terça-feira, fevereiro 21, 2006

Manhã fetichizada (positiva) ou manhã inquieta (negativa)?

Resposta à pergunta: Que é um Universitário? *

Deixar o erro sem refutação é estimular a imoralidade intelectual” (Karl Marx)

O que é, exatamente por ser tal como é, não vai ficar como está” (Bertolt Brecht)


É manhã. Mais uma. Pode-se até dizer uma manhã especial pelo desejo de prestar esclarecimento (que prepotente!) a este enfadonho veículo de especulação. Já está quase no início das aulas e nada de postar. Pois, agora também, irei redigir o meu maior desabafo. Estou no último ano de Ciências Sociais e, por conseguinte, já muito próximo da rua da amargura. Já não era sem tempo! Os companheiros de sala não dirão o mesmo, mas eu quero logo é tocar minha vida, não no sentido de ir levando de barriga, mas no sentido do agir por vontade própria, com minhas próprias pernas, ou, adequando melhor a expressão a nossa vida, com meus próprios neurônios. Por outro lado, é triste, nossa vida acadêmica está acabando. No entanto, penso que esta é só mais uma etapa, nós estamos é realmente começando a nossa vida acadêmica. Acabou a mamata e agora é hora de arregaçar as mangas, ou melhor, “lubrificar o cérebro” que agora é hora de por em prática tudo o que aprendemos! Mas que prática? Onde? Como? O que aprendemos? Ou melhor, de que serve a vida universitária? Para conseguir trabalho? Para ganhar dinheiro? Status? Para ser filho de uma minoria, “elitizada” e “intelectual”? Infelizmente, como você já sabe, nós estamos remando contra maré. Não estou querendo com isso dizer que somos nós os certos, os justos, os intelectuais, aqueles que explicam a realidade. Quando formarmos vão nos perguntar nas esquinas e nos bares: Sociais o que? De que serve? O nosso curso, dependendo do enfoque que é dado, como no nosso caso, não “serve” para nada neste sistema de produção. Dirão: Em que você pode me ser útil? Utilidade neste caso, como sabemos, para acumular valor. Extrair mais-valia. Gerar lucro. Em que que poso ser útil? Deixa me ver, posso lhe mostrar como você explora o trabalho alheio com a finalidade de incitá-lo a serrar fileiras com o proletariado e engrossar a revolução. Será que ele vai achar isso legal? Acho que não. Remamos contra a maré. Penso isso porque, principalmente, não representamos nenhum perigo para o sistema, apesar de só discutirmos qual será o fim dele. Não obstante as teorias que estudamos todos dias, e que, já, algum dia, fizeram a diferença em outras épocas. O pensamento posto em movimento libertou o homem das condições naturais as quais ele era subordinado. Mas hoje não. O tempo já não é mais o mesmo.As datas 1848, 1870, 1919, ou 1968, não representam nada para as atuais reflexões (gerações). Estes surtos revolucionários foram estancados pela eficiente máquina ideológica do capitalismo tardio; é só perguntar para um adolescente na rua o que ele sabe sobre o período 1914-1918, seguramente não irá saber nada, quando muito, irá dizer que foi uma guerra grande; e ele responderá isso sem ter um pingo de consciência sobre a matança indiscriminada de seres humanos que foi feita nesta época, o uso nefasto da ciência para gerar lucros e sangue; hoje, isso não faz mais sentido, o Manifesto Comunista é vendido no Carrefour. Sim. Eles conseguiram; para expressar em poucas palavras todo esse processo citarei Benjamin, grande filósofo alemão do século XX: “A imagem que se faz do anjo da história é a seguinte: sua face está voltada para o passado. No lugar onde percebemos uma cadeia de efeitos, ele vê uma única catástrofe que não para de despejar destroços diante de seus pés. O anjo gostaria de ficar, despertar os mortos, e recompor o que foi esmigalhado. Mas uma tempestade sopra do paraíso; ela atinge-lhe as asas com tal violência que ele não mais pode fechá-las. Esta tempestade o empurra irresistivelmente ao futuro para o qual suas costas estão voltadas, enquanto os destroços a seus pés se amontoam rumo ao céu. Esta tempestade é o que chamamos de progresso”. Dentro da linha que o caracteriza, o pensador escreveu o seguinte sobre os anais da luta de classes: “Mesmo os mortos não estarão a salvo do inimigo se este vencer; e este inimigo só tem colecionado vitórias”. Será que precisa dizer mais alguma coisa?

Nós somos os meninos perdidos no meio da Terra do Nunca. Alguém já ouviu falar deles? Quem são? Fazem o que mesmo? Qual será o mundo pseudo-concreto, o nosso ou o deles? Quem vive na fantasia? No mundo do faz-de-conta. No mundo de mentirinha. Somos nós. Sim meus caros. O capitalismo moderno nos deixou tão obsoletos que não fazemos mais parte da história. O fetiche da mercadoria, que foi tão brilhantemente formulado por Marx, virou a própria relação social como um todo. Algo como que se a ideologia a qual nos mostra uma visão falseada do real, um mundo invertido, que para nós cabe a tarefa de colocá-lo no próprio eixo, é como que se esse mundo invertido fosse a própria realidade. Não há mais como “tirar o véu que encobre as relações sociais”, tal qual dizia Marx, porque o véu são as relações sociais. O todo virou fetiche. Como diria Adorno, a “ideologia está dentro do processo de produção da indústria cultural”. Se tudo virou fetiche, então, a mercadoria, tal qual Marx dizia, com valor de uso e valor de troca ficou um pouco modificada. Hoje, o que temos são mercadorias que não tem valor de uso nenhum para nós. O que elas têm é sim valor de troca, só isso. Por meio da indústria cultural são criados valores de uso em mercadorias que só têm valor de troca. É o tal de criar necessidades desnecessárias que vemos a todo o momento, em todo lugar. Cria-se uma expectativa para algo que depois se percebe que não tem utilidade nenhuma. Como que se processam esses valores de uso? Na propaganda. É lá que é criada para nós a expectativa quanto ao produto. São propagandas que, na maioria das vezes, nem fazem muita menção ao produto em si, mas o associam a momentos pelos quais você não viveria se não usasse aquela mercadoria. Refiro-me a uso, neste caso, no sentido lato do termo, o que também serve para produto; generalizo tudo. Pode ser uma barra de chocolate, ou um filme da Xuxa, ou plano de saúde, ou uma música da moda, ou um liquidificador, não importa, tudo está fetichizado. Pode ser uma notícia ou um sabão em pó. Em casos extremos o produto pode até ser uma garota bonita, ou um cara saradão, ou até seu melhor amigo, ou mesmo seu familiar; creio que é neste sentido que Marx disse no Manifesto Comunista que “o capitalismo transforma as relações familiares em meras relações monetárias”. É o fetiche comendo solto. Você não sabe quem é aquela garota, o que ela faz ou deixa de fazer, apenas quer consumi-la e, o mais depressa possível, descartá-la, porque você percebe que no fim, ela não tem uso nenhum para você, ela apenas é um meio e não um fim. Descarta o “produto” também, porque há outras “mercadorias” que agora o seduzem e que amanhã não o seduzirão mais, porque já estarão fora de moda. Fato que é visível em qualquer festa de jovens na atualidade. Esta é só uma das facetas deste mundo moderno. São problemas que ainda carecem de entendimento e conceituação, acrescento dentre eles: as transformações rápidas e turbulentas, dissolução dos vínculos sociais de caráter orgânico, o triunfo da tecnologia e do tecnicismo, a eclosão dos regimes totalitários e dos campos de concentração e extermínio, a atrofia da autonomia dos indivíduos, a vitória planetária de mercado, a contínua luta pela liberdade. Esse é o trágico século XX. E o XXI? Não foge muito disso não; estes apontamentos só são acentuados neste novo milênio.

Não podemos deixar o fracasso nos vencer. Eu sei que você que está ai do outro lado já está de saco cheio de tudo e de todos, mas esse tudo e todos não se referem à totalidade, porque, como diria Hegel “a verdade é o todo”, então, por silogismo, como que o verdadeiro pode ser tedioso? Seria mais fácil aliarmos esta conduta ao que diria Adorno sobre tudo isso: “o todo é falso”. Sim. Exatamente. Esse Todo em que vivemos é falso! Não é o verdadeiro! Não é o justo, não é o livre, não é o autônomo, muito menos o igual, em resumo, não é o eu, é o outro. É o outro que me toma; é a mão do outro que me toma o que por finalidade me pertenceria. É daí que vem a palavra emancipação. O Todo é falso pelo fato de nossas necessidades serem falsas, nossas relações serem falsas, não é por menos que nossas liberdades são falsas, nossas escolhas também; não poderia faltar também a base material de reprodução do sistema: o modo de produção é falso. Falso porque ele reifica a realidade. Nós a desejamos. Apesar da extrema contradição deste mundo. Apesar de toda discrepância que dele resulta. Somos seduzidos por essa realidade. Queremos fazer parte dela, consumi-la. A ciência que, em tempos passados trouxe um mundo desencantado – no sentido weberiano (racionalizado) -, agora, por meio do capitalismo tardio, ela re-encanta o mundo. Essa pseudo-realidade encobre os meios pelos quais este sistema espalha miséria, exploração, dominação e miséria. É a ciência transfigurada em mercadoria e em armas de destruição e poder.

E no mundo universitário, será que lá as coisas são diferentes? Eu acho que não. E é deste mundo que quero falar, mas precisamente sobre o universitário em si. O que será que o motiva na carreira acadêmica? O que pensa o universitário sobre o mundo? Qual é a sua realidade? A resolução de tais questões não será procedida por algum trabalho de campo específico. Pode-se dizer que até é um trabalho de cunho empírico porque tenho que me debruçar sobre alguma realidade. Mas esta não será preestabelecida por critérios rígidos e dogmáticos. É a reflexão de um acadêmico sobre seu mundo prosaico. São somente predições de caráter especulativo, nada muito objetivo, mas nem por isso podem ser consideradas fantasiosas ou oníricas. Tomando emprestado o subtítulo do livro Mínima Moralia de Theodor Adorno: são “Reflexões a partir da vida danificada”. Não vou tratar rigidamente tudo isso, até porque, acima de tudo, não tenho tempo. E esta é uma das características principais do mundo moderno: tempo é dinheiro! Não vou endurecer nos conceitos até porque ainda não tenho muita intimidade com eles. Mas, lembrando Hegel, é preciso “tornar fluídos os conceitos rígidos, os pensamentos duros”.

Há tempos não escrevo neste site, mas não é só com relação ao blog que estou ausente, deixei muitas coisas de lado, o tempo livre principalmente – se é que ele exista de fato. Referi-me a este porque ele é associado as “coisas boas da vida”, ao divertimento. Neste momento você deve estar pensando: peraí, esse Leonardo tá loco! Aquele porra loca das antiga virou crente acadêmico? Como assim? Não é que eu tenha virado um eremita ou coisa parecida, só me desvinculei do tempo livre – ainda estou em transição – enquanto hobby. Minha vida deixou de ser hobby, agora, o hobby é minha vida. Digo isso no sentido negativo da expressão, não no sentido dado pela indústria cultural. O meu hobby virou uma negação do próprio hobby. Neste caso não é que eu tenha virado um franciscano ou coisa do tipo, até porque no caso deles é tudo fuga ideológica. São messiânicos pregando voto de pobreza no mundo do capital. É somente uma entre as várias dimensões de nossa realidade antagônica, antitética e contraditória. Aqui também, reafirmo o Todo é falso dito lá em cima pelo Adorno. Pela materialidade, incontestável, os pobres religiosos ainda dependem do sistema, e como dependem. Não há nada de caridade ali, só omissão. Omissão do católico quanto à realidade, que é capitalista. Tentam fugir do pecado, e, no entanto, só estão atrás do desejo. Eles também se lambuzam da podridão ideológica cultural. Se alienam na sua realidade hipostasiada. Vivem num cosmos já destruído por Copérnico lá no século XVI. Que barbárie! Só no século passado a Igreja “perdoou” Galileu! A Razão, que é negada em nossa sociedade, já neste período começou a efetivar a construção, daquele que, como diria Giordano Bruno, seria o Homo Faber. É o homem que é senhor de seu próprio destino. O homem autônomo que é livre do medo e da passividade, da ignorância e da resignação. Mas não, o franciscano só quer viver na Toca de Assis, mutilado do mundo concreto por suas músicas estúpidas e pelo seu assistencialismo barato. Entretanto, não era sobre o franciscano que eu estava dizendo. Dizia sobre o hobby. Pois é, eu estou tentando negá-lo, e é da negação que surge o primeiro movimento da dialética. É da negação que nasce a crítica! Mudo um pouco o que Gramsci disse com relação ao pessimismo teórico, mas não a ponto de mudar o sentido da frase. É o negativismo do intelecto e o otimismo da vontade. É pela negação da minha própria realidade que estou fazendo meu aufheben **. Estou abrindo mão de uma série de elementos que faziam parte da minha vida, mas estou fazendo um caminho “adocicado”, não pratiquei as rupturas tal qual Marx dizia. Mudo porque estou sempre mudando, mas não sem rumo, pelo menos agora – eu acho. Mudo porque estou em movimento. É difícil, mas é preciso movimentar-se, até mesmo ficando a mercê da inércia é estar em movimento. O que me motivou neste ensaio foi a mudança, aquela que sinto acontecer na minha vida e é ela que constrói a vida de universitário. Mas tem que ser uma mudança qualitativa, a fim de desenvolver melhor as potencialidades humanas. E é ela que tem de nos incentivar durante a vida acadêmica. Temos que ter espírito crítico, mas, o mais importante ainda, e que falta em muitos de nós é o espírito autocrítico. A autocrítica é extremamente necessária para a teoria e para nós mesmos. Antes de querermos transformar o mundo temos que nos preocupar em nos transformarmos. Temos que renovar o tanto quanto necessário.

Vamos ser dialéticos! “A dialética intranqüiliza os comodistas, assusta os preconceituosos, perturba desagradavelmente os pragmáticos ou utilitários” (Leandro Konder). Vamos nos transformar, e para melhor! Não vamos ser só uns meros universitários com diploma na mão. Temos ainda muita teoria pela frente. Não podemos ter medo!


O homem não tem imediatamente acesso à totalidade na sua unidade, descobre-a tão-somente no movimento do seu discurso que é ação, da sua ação que é pensamento, passo a passo, ponto por ponto, e nenhum passo é o último, nenhum ponto é privilegiado. A verdade está no discurso, verdade como ser, ser que se manifesta: mas a negação condiciona o discurso no seu início e no seu movimento e só a totalidade do discurso, a totalidade das contradições é não-contradição...A dialética não é, pois, senão o movimento incessante entre o discurso, que é ação, e a revelação da realidade neste discurso e nesta ação. A dialética é este movimento, não uma construção do espírito. Exatamente por isso a dialética acaba por saber que ela é totalidade não contraditória das contradições” (Hegel)

O todo está sempre mudando” (Denis Diderot)

*Alusão descabida ao soberbo texto de Kant "Resposta à pergunta: que é esclarecimento".
** É a superação dialética. Hegel utilizou essa palavra alemã para designar o movimento, sem redundâncias, da dialética, que por si só já movimento. Aufheben significa suspender, mas este tem três sentidos diferentes: negação, conservação e elevação.