segunda-feira, junho 25, 2012

Coronelismo intelectual: não há muita diferença entre a mesa de bar e a mesa-redonda dos acadêmicos


Escrito por Marcia Tiburi. Retirado da Revista Cult: http://revistacult.uol.com.br/home/2012/05/coronelismo-intelectual/
Podemos chamar de “coronelismo intelectual” a prática autoritária no campo do conhecimento. Este campo é extenso, começa na pesquisa científica universitária e se estende pela sociedade como um todo, dos meios de comunicação ao básico botequim onde ideias entram em jogo.
Coronelismo intelectual é a postura da repetição à exaustão de ideias alheias. A reflexão só atrapalharia, por isso é evitada.
Encarnação de prepotente eloquência, o paradoxo do coronelismo é alimentar uma ordem coletiva de silêncio em que o debate inexiste, o culto da verdade pronta ou da ignorância é a regra, bem como a apologia ao gesto de falar sem ter nada a dizer, que culmina no discurso tão vazio quando maldoso da fofoca, versão popular do eruditismo.
Não há muita diferença entre a mesa de bar e a mesa-redonda dos acadêmicos parafraseando qualquer filósofo clássico apenas pelo amor ao fundamentalismo exegético.
Enquanto todos falam sem nada dizer, ajudados pelo jornalista que repete o que se entende pela sacrossantificada “informação”, mercadoria da contra-reflexão atual, os coronéis podem comentar que os outros é que não sabem nada e praticar o “discurso verdadeiro” em seus artigos estilo “mais do mesmo”, moedinha cadavérica com que se enche o cofrinho das plataformas de medição de produtividade acadêmica em nossos dias.
O coronelismo intelectual infelizmente segue forte na filosofia e nas ciências humanas, na verdade dos especialistas, tanto quanto na dos ignorantes que se separam apenas por titulação ou falta dela. Professores e estudantes, sábios e leigos, todos se servem metodologicamente dos frutos dessa árvore apodrecida. A prática do pensamento livre que se autocritica e busca, consciente de sua inconsciência, seu próprio processo de autocriação talvez seja a contraverdade capaz de cortá-la pela raiz.
Intelectual serviçal
Eis a cultura do lacaio intelectual, do bom serviçal sempre pronto à reprodução do mesmo. Nela, a boa ovelha especialista em assinar embaixo as verdades do senhor feudal que um dia as emitiu num ritual de sacralização já não é fácil de distinguir do lobo. A semelhança entre o puxa-saco, o crente e o líder paranóico que o conduz revela a verdade do mimetismo. Os seguidores dos líderes, de rabinho entre as pernas, latem para mostrar que aprenderam bem o refrão.  Abanam as asas ao redor da lâmpada esperando que ela também fique onde está, do contrário não saberiam o que fazer.

As consequências do coronelismo em um país de antipolítica e anti-educação generalizadas como este é algo ainda mais grave do que o medo de pensar. É o fato de que já não se pensa mais. A ausência de debate não é medo de expor ideias, mas a falta delas. Inação é o corolário da impossibilidade de mudar, porque o campo das ideias onde surge a vida já foi minado. O coronel ri sozinho da impossibilidade de mudanças, pois ele ama a monocultura enquanto odeia o cultivo de ideias diferentes ou de ideias alheias. O autoritarismo intelectual não é feito apenas de ódio ao outro, mas da inveja de que haja exuberância criativa em outro território, em outra experiência de linguagem. Conservadorismo é seu nome do meio.
Coronelismo não é simplesmente a zona cinzenta onde não podemos mais distinguir o ignorante do culto, mas a política generalizada introjetada por todos – salvo exceções – pela letal dessubjetivação acadêmica da qual somos vítimas enquanto algozes e que, no campo do senso comum, surge como robotização e plastificação das pessoas entregues como zumbis aos mecanismos do nonsense geral, que, é preciso cuidar, deve ser aparentemente desejável pela liberdade de cada um.
Contra a escravidão intelectual somente um contradesejo pode gerar emancipação. A prática da invenção teórica, a liberdade da interpretação e de expressão nos obrigam a ir contra os ordenamentos da ditadura micrológica do cotidiano, em que a lei magna reza o “proibido pensar”. A direção, como se pode ver, parece que só se encontra, atualmente, no desvio dos caminhos dados.

quarta-feira, junho 20, 2012

Entre a Jamaica e a Inglaterra


Tendo sido preparado pela educação colonial, eu conhecia a Inglaterra de dentro. Mas não sou nem nunca serei inglês. Conheço intimamente os dois lugares, mas não pertenço completamente a nenhum deles. E esta é exatamente a experiência diaspórica, longe o suficiente para experimentar o sentimento de exílio e perda, perto o suficiente para entender o enigma de uma "chegada" sempre adiada. [...] É impossível "voltar para casa" de novo.
Stuart Hall (1932- ).A formação de um intelectual diaspórico.

terça-feira, junho 19, 2012

Verdade: Cucolândia das Nuvens

O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma das relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu o que são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas.
Friedrich Nietzsche (1844-1900). Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral.

segunda-feira, junho 18, 2012

Recado de Durkheim

Se a vida não vale a pena ser vivida, qualquer coisa se torna pretexto para nos desvencilharmos dela.
Émile Durkheim (1854-1917). O suicídio.

quarta-feira, junho 13, 2012

Sobre a Rio+20

Se, como fez uma vez Hillel com a doutrina judaica, se tivesse de enunciar a doutrina dos antigos em toda concisão, em pé sobre uma perna, a sentença teria de dizer: "A Terra pertencerá unicamente àqueles que vivem das forças do cosmos". Nada distingue tanto o homem antigo do moderno quanto sua entrega a uma experiência cósmica que este último mal conhece. O naufrágio dela anuncia-se já no florescimento da astronomia, no começo da Idade Moderna. Kepler, Copérnico, Tycho Brahe certamente não eram movidos unicamente por motivos científicos. Mas, no entanto, há no acentuar exclusivo de uma vinculação ótica com o universo, ao qual a astronomia muito em breve conduziu, um signo precursor daquilo que tinha de vir. O trato antigo com o cosmos cumpria-se de outro modo: na embriaguez. É embriaguez, decerto, a experiência na qual nos asseguramos unicamente do mais próximo e do mais distante, e nunca de um sem o outro. Isso quer dizer, porém, que somente na comunidade o homem pode comunicar em embriaguez com o cosmos. É o ameaçador descaminho dos modernos considerar essa experiência como irrelevante, como descartável, e deixá-la por conta do indivíduo como devaneio místico em belas noites estreladas. Não, ela chega sempre e sempre de novo a seu termo de vencimento, e então povos e gerações lhe escapam tão pouco como se patenteou da maneira mais terrível na última guerra, que foi um ensaio de novos, inauditos esponsais com as potências cósmicas. Massas humanas, gases, forças elétricas foram lançadas ao campo aberto, correntes de alta freqüência atravessaram a paisagem, novos astros ergueram-se no céu, espaço aéreo e profundezas marítimas ferveram de propulsores, e por toda parte cavaram-se poços sacrificiais na Mãe Terra. Essa grande corte feita ao cosmos cumpriu-se pela primeira vez em escala planetária, ou seja, no espírito da técnica. Mas, porque a avidez do lucro da classe dominante pensava resgatar nela sua vontade, a técnica traiu a humanidade e transformou o leito de núpcias em um mar de sangue. Dominação da Natureza, assim ensinam os imperialistas, é o sentido de toda técnica. Quem, porém, confiaria em um mestre-escola que declarasse a dominação das crianças pelos adultos como o sentido da educação? Não é a educação, antes de tudo, a indispensável ordenação da relação entre as gerações e, portanto, se se quer falar de dominação, a dominação das relações entre as gerações, e não das crianças? E assim também a técnica não é dominação da Natureza: é dominação da relação entre Natureza e humanidade. Os homens como espécie estão, decerto, há milênios, no fim de sua evolução; mas a humanidade como espécie está no começo. Para ela organiza-se na técnica como physis na qual seu contato com o cosmos se forma de modo novo e diferente do que em povos e famílias. Basta lembrar a experiência de velocidades, por força das quais a humanidade prepara-se agora para viagens a perder de vista no interior do tempo, para ali deparar com ritmos pelos quais os doentes, como anteriormente em altas montanhas ou em mares do Sul, se fortalecerão. Os Luna Parks são uma pré-forma de sanatórios. O calafrio da genuína experiência cósmica não está ligado àquele minúsculo fragmento de natureza que estamos habituados a denominar "Natureza". Nas noites de aniquilamento da última guerra, sacudiu a estrutura dos membros da humanidade um sentimento que era semelhante à felicidade do epilético. E as revoltas que se seguiram eram o primeiro ensaio de colocar o novo corpo em seu poder. A potência do proletariado é o escalão de medida de seu processo de cura. Se a disciplina deste não o penetra até a medula, nenhum raciocínio pacifista o salvará. O vivente só sobrepuja a vertigem do aniquilamento na embriaguez da procriação.
Walter Benjamin (1892-194). A caminho do planetário.