quarta-feira, agosto 31, 2011

A certeza da incerteza

Qualquer filosofia que, na sua busca da certeza, ignore a realidade do incerto nos processos da natureza em curso nega as condições das quais emerge. A tentativa de incluir tudo o que é duvidoso dentro do alcance fixo daquilo que é teoricamente certo está comprometida com a falta de sinceridade e com a evasão e, consequentemente, carregará os estigmas da contradição interna.
John Dewey (1859-1952). The quest for certainty.

terça-feira, agosto 30, 2011

Alienação como uma doença do eu

A alienação do pensamento não é diversa da alienação do coração. É como alguém acreditar que pensou alguma coisa, e que sua idéia é resultado de sua própria atividade de reflexão; a verdade é que transfere seu cérebro para os ídolos da opinião pública, os jornais, o governo ou um líder político. Acredita que estes expressam seu pensamento, quando na realidade ele aceita os pensamentos dessas personalidades como se seus fossem, porque as escolheu para ídolos, deuses da sabedoria e do conhecimento. Precisamente por essa razão, depende dos ídolos, sendo incapaz de sustar sua idolatria. É escravo deles porque lhes confiou seu cérebro.
Erich Fromm (1900-1980). Meu encontro com Marx e Freud.

segunda-feira, agosto 29, 2011

Reflexões sobre o cotidiano I

De grande mistério a fonte de saber, de lócus da sociabilidade a reino da alienação. Como uma junção de antíteses, o cotidiano, ou melhor, a sua representação, constitui-se ao sabor do tempo e ao gosto de seu avaliador (daquele que o observa).
Na história humana, inúmeras teorias já sondaram o tema e produziram explicações. É amplo o espectro de olhares e de pontos de referência encontrados nos detalhes, nas miudezas e nos sentidos dispersos desse complexo objeto de estudo.
Diante das transformações histórico-sociais que fizeram brotar das entranhas de um não-objeto – a vida diária do povo – essa rica fonte de fenômenos, o que resta ao pensamento é unicamente interagir com os tormentos da matéria, contradizendo, ao longo das décadas, suas próprias idéias e suas previsões lógicas.
“Cotidiano”, essa simples palavrinha é uma construção social, e como tal, é reflexo não só da quimera ideológica que nos rodeia, mas, também, da inevitável base material que nos constitui. O cotidiano está para nós, antes de estar para ele mesmo. Ou será que existe um espaço demarcado no interior da sociedade em que possamos dizer: “Aqui começa e ali termina o cotidiano”.
Poderia se dizer: “é esse dia-a-dia que nos rodeia”. Sim, mas e daí? Rodeia a quem? Que tipo de dia-a-dia é esse? É constituído a partir de qual visão de mundo? É construído por toda a sociedade ou por um grupo específico? Que interesses há por traz dessa convencional noção de cotidiano? A quem é conveniente que ele continue a ser o que é?
Portanto, o cotidiano é amplo. Apenas um estudo sobre a transformação de suas representações e sobre as condições histórico-sociais que o fizeram surgir na condição de objeto de estudo já daria para encher muitos livros de ciências sociais. Isso sem considerar as diversas abordagens existentes que também ampliariam o leque de reflexões teóricas a respeito da questão.
Não se trata aqui de percorrer as linhagens do pensamento que se debruçaram sobre o assunto, nem de revirar questões epistemológicas, levantando as relações e os interesses encobertos pela racionalidade da ciência sociológica. O autor não tem a mínima legitimidade para discorrer análises profundas, muito menos de pretensamente exaurir a realidade objetiva por meio de dados ou de sistematizações persuasivas. O que daqui vier, nas linhas que seguem, é um despretensioso ensaio, e nada mais.
Os argumentos são movidos unicamente pela vontade de escrevê-los. Não há aqui nem uma ponderação sobre os termos usados. As idéias emergem pelo contato sensível do autor e pelo pouco que ele leu sobre o tema. Isso aqui é mais um esboço (ou uma tentativa) para alguma questão mais séria que possa surgir mais a frente.
Esse movimento de entendimento e de compreensão se inicia com a constatação, seja reflexiva, seja crítica ou sei lá o que queira de que o cotidiano compõe esse amplo universo de ações e de relações que os seres humanos constituem em sociedade.
Não é preciso ser sociólogo para perceber que esse mundinho diário existe e que se tem de conviver com ele. Não se pode negá-lo, isso é fato. Mas, do ponto de vista da reflexão filosófica e sociológica, por que o cotidiano é mais um inimigo do que um aliado na reflexão e nos processos transformação? Qual a relação senso comum / cotidiano, alienação / cotidiano?
Desde que comecei a estudar sociologia tive a impressão de que o cotidiano era um mal somente necessário à reprodução do sistema (e aos que se beneficiam dele). Reprodução, aqui, mais no sentido ideológico, como sendo o cimento que cobre as ranhuras e rachaduras e que dá firmeza ao processo produtivo do todo desigual.
Não que isso representasse uma visão negativa sobre o fenômeno. Para mim, havia uma compreensão teórica até certo ponto limitada sobre a riqueza recôndita nesse dia-a-dia pretensamente inócuo.
Há toda uma tradição de pensamento, que nos leva aos antigos filósofos gregos e que se espalhou pelo ocidente, de negar o que está próximo, de não levar a sério o que os sentidos nos dizem, enfim, de evitar as ilusões que o mundo corriqueiro nos traz (uma aparência espiritual e material). É preciso distancia para enxergar melhor aquilo nos aparece como natural e óbvio dentro da lógica de organização social.
Dá para fazer uma analogia com a visão de uma obra de arte num museu, de um quadro, por exemplo. Quando vemos uma pintura expressionista, só conseguimos notar a grandeza do trabalho do autor ao chegarmos próximos da tela. Dali, podemos ver as cores e as pinceladas, que mais parecem borrões sem sentido.
Com relação ao cotidiano a situação se inverte, de perto vemos harmonia, sentido, naturalidade. Mas ao tomarmos distância, podemos ver como estávamos equivocados. Com uma visão melhor de todo o quadro, vemos as contradições e os conflitos de interesses que antes não se faziam presentes. A luz vem a nós, quando observamos sob o enfoque da ciência.
O cotidiano se torna o vilão da história quando entra no grande balaio de saberes do senso comum. É quase uma ação mecânica. Pensou em cotidiano, pensou em senso comum; pensou em senso comum, pensou em cotidiano. E, pensou em qualquer um dos dois, a associação imediata é: ilusão, alienação, não-científico, mentira, falsidade, fantasia... O senso comum, então, é um mal que deve ser extirpado pela raiz.
Não quero com essa argumentação fazer crer que defendo o senso comum ou o cotidiano. Não estou advogando uma sociologia do senso comum ou do cotidiano. Não sei se esse binômio ciência/senso comum ainda tem sentido (prefiro sair dele). Mas também, não quero negar veementemente um ou outro. Não defendo nem a ciência, nem o cotidiano. O importante é avaliar criticamente e dialeticamente cada um desses processos.
Assim como a idéia de ciência não é fechada e pronta, também a de cotidiano não é. Foi isso o que eu quis dizer até agora. Como podemos descartar alguma coisa sem conhecê-la de perto? Tomar como base essa dicotomia simples de oposição entre falso/verdadeiro, claro/escuro, ciência/mito não é deixar tudo no reino exclusivo das idéias? Alguns fenômenos necessitam de processos compreensivos que a lógica abstrata não consegue oferecer.
Tá certo, você pode dizer, o cotidiano não é lá esse mau-caráter que acreditávamos, mas o que ele é de fato? Ele é essa complexidade que se materializa a nossa frente; essa substância que se modifica à medida que o mundo muda. Por isso devemos criticar os conceitos. Estes seguem uma racionalidade própria e não se conectam com o universo humano de maneira dinâmica. E o que isso tem a ver com o cotidiano, ora bolas? A meu ver, tudo.
Penso que deveríamos perder esse preconceito arcaico. Isso não quer dizer aceitá-lo como ele é, nem submeter-se a ele como fonte de uma explicação mais ampla e profunda. Falo sobre o cotidiano num sentido mais global. Não só como objeto de estudo. O cotidiano deve fazer parte do nosso processo de reflexão diário. O contato com esse quebra-cabeças múltiplo enriquece muito a pesquisa social.
Alguns teóricos estão desbravando esse território desconhecido, mas ainda são poucos e a duras penas. Muitas pesquisas empíricas destacam aspectos que poderiam ser menosprezados por outras abordagens mais lógicas.
Mesmo no campo do trabalho, que é reduto de um pensamento fortemente crítico ao cotidiano, boas pesquisas foram feitas por historiadores que trouxeram, nos dados coletados, as minúcias e os detalhes de um universo diário em transformação. O cotidiano teve papel fundamental nessas reflexões.
É lógico que também há muita pesquisa que não leva a nada e que só acrescenta dados insignificantes. Mas, mesmo nesses, devemos não ser tão prepotentes. As pesquisas têm que correr livres como a fértil imaginação humana.
Não há objeto de estudo melhor ou pior que o outro. Criar não-objetos só estimula o pensamento narcisista a seguir seu próprio caminho sem encontrar obstáculos.
O pensamento não quer pensar em outra coisa, a não ser, nele mesmo.
Os pensamentos devem ser nossos, antes de serem deles mesmos.

sábado, agosto 27, 2011

Fome: problema social

O maior absurdo de nossa sociedade é termos deixado morrer centenas de milhões de indivíduos de fome num mundo com capacidade quase infinita de aumento de sua produção e que dispõe de recursos técnicos adequados à realização desse aumento [...] não podemos viver num mundo partilhado por 2/3 que não comem e, tendo consciência das causas de sua fome, se revoltam, e 1/3 que come bem - às vezes demais - mas que já não dorme com medo da revolta dos 2/3 que não comem.
Josué de Castro (1908-1973). Geografia da fome.

terça-feira, agosto 09, 2011

A existência precede a essência

O homem deve criar sua própria essência; é jogando-se no mundo, sofrendo, lutando, que aos poucos se define... A angústia, longe de oferecer obstáculo à ação, é a própria condição dela... O homem só pode agir se compreender que conta exclusivamente consigo mesmo, que está sozinho e abandonado no mundo, no meio de responsabilidades infinitas, sem auxílio nem socorro, sem outro objetivo além do que der a si próprio, sem outro destino além do que forjar para si mesmo aqui na Terra.
Jean-Paul Sartre (1905-1980). Os escritos de Sartre

segunda-feira, agosto 01, 2011

Wesen-Unwesen

O mundo é o sistema do horror, mas quem ainda procura pensá-lo inteiramente como um sistema faz-lhe uma excessiva honraria, pois seu princípio unificador é a cisão, que reconcilia na medida em que impõe pura e simplesmente o caráter irreconciliável do universal e do particular. Sua essência (Wesen) é a essência desnaturada (Unwesen); porém sua aparência, a mentira, graças à qual subsiste, é o lugar-tenente da verdade.
Theodor W. Adorno (1903-1969). Minima Moralia.