terça-feira, junho 19, 2007

Introdução


"Houve em território grego um grande debate, um debate que decidiu da direcção de toda a história do pensamento, que já não pode afastar-se do caminho do homem" (Parménides, frag. 1), mas tem de seguir pelo caminho dos homens. Devemos restituir aos primeiros heróis desta luta a Protágoras (carregador), a Górgias, a sua glória e reconhecer neles não os negadores de um critério escolástico de verdade, mas os primeiros grandes defensores de que o saber não é uma visão solitária, que o saber é comunicação, e que o não é comunicável ou exprimível não é saber. Quando Massolo dizia estas palavras no início dos anos sessenta entrava no cerne da problemática contemporânea, que de novo se interrogava sobre o significado da dialéctica, sobre o sentido da presença de Marx e de Hegel no nosso tempo. Oferecia-nos também, e de modo explícito, um guia para compreender a história da dialéctica na sua relação com a realidade e com as coisas, no seu sair para fora destas.
A dialéctica - originária da Grécia, pelo menos segundo o nosso modo de interpretar - representou imediatamente, como veremos, um novo ordenamento dos démos (aquele pouco de democracia que foi possível nos alvores da civilização ocidental) contra a ordem aristocrática, ou melhor, tribal, herdeira (ou pelo menosequivalente) daquilo a que nós damos o nome de despotismo oriental. Contra a liberdade do príncipe, de um só, nasciam as constituições livres das cidades e com elas a liberdade de muitos ou, pelo menos, de alguns. Era o fim do mundo dos heróis, dos reis-sábios, dos iluminados. É o início do discurso, da comunicação imposta pela necessidade de encontrar o consenso e o acordo geral nos debates, sobre um conceito jurídico ou político. É a dialéctica. O saber como visão é considerado não-saber, a moral aristocrática "que nasce de um consentimento consigo próprio" é também rejeitada.
Não foi por acaso que recordamos esta intervenção do começo dos anos sessenta, um dos muitos momentos de restauração política e cultural em Itália. Não era por acaso que o autor que citávamos polemiza com Heidegger e, através dele, com Nietzsche, o anti-Sócrates da cultura contemporânea. Sócrates, o dialéctico, o filho de um canteiro, aquele que arrancou a filosofia do empírico e a trouxe para o meio dos homens (como revelou logo Aristóteles, retomado e divulgado por Cícero), teria incarnado o espírito da vingança: "a dialéctica é tão-só uma forma de vingança"; "com a dialéctica a plebe domina". E Nietzsche chamava aos dialécticos, aos pregadores da igualdade, "tarântulas". "O espírito de vingança, é a melhor reflexão dos homens... O ódio da vontade contra o tempo e contra o passado". Parece crônica do nosso tempo, citação de um diário oficial ou oficioso. Aristóteles dará razão aos sofistas e a Sócrates, às "tarântulas". Com a dialética reivindicará a importância da opinião e conquistará para a filosofia o mundo do homem comum, isto é, "aquela inteligência que desejava encontrar uma explicação para tudo, explicação que todos pudessem compreender e levar ao mercado" - e tal definição, que saiu da pena de Heidegger, não soa evidentemente a aprovação ou a elogio. A figura do homem comum que se agarra à sua razão e que quer firmar as suas razões, que se desenvolve ao lado da retórica até se confundir com ela, há-de acompanhar toda a história dos homens, das comunidades humanas reunidas na cidade.
A cidade é o autêntico lugar de origem da dialéctica e este facto explica a importância que ela assume no pensamento medieval. Decerto que aqui é sobretudo técnica da disputa, retórica, mas, em todo o caso, continua a ser defesa das pretensões da razão e da ciência frente a uma ordem fundada, ou que se apresentava como tal, sobre a fé. Depois nascem, por outro lado, a ciência nova e, por outro, as técnicas de produção, como resultado do desenvolvimento da vida citadina, da multiplicação das suas exigências, exigências do homem, criadas pelo homem, que acabarão por ter razão. É a indústria, a sociedade mercantil, o mundo das coisas. À dialéctica como ciência ou técnica dos discursos sobre as coisas vai-se substituindo, precisamente numa época em que se deixou de falar de dialéctica (e isto é particularmente significativo), a dialéctica das coisas. Filosofia, política, história, sociologia e antropologia entrelaçam-se e confundem-se na era que prepara e acompanha a revolução industrial. É uma época de grandes tensões. A coroá-la aparecem, de um lado, a Revolução Francesa e do outro, Kant.
Note-se apenas que Kant redescobre a dialéctica e restitui-a à filosofia; trata-se, porém, de uma dialéctica transfigurada: é uma dialéctica da razão, é a própria razão, é uma sua obra necessária e inevitável, mas é, ao mesmo tempo, a dialéctica da realidade, o sinal da presença de um mundo que não pode deixar de ser considerado como contradição e antítese. Contradição e antítese: o mundo, real, do homem e da dua cidade, agora sociedade burguesa, do cidadão despedaçado pela propriedade. Neste sentido, de kant a Marx fecha-se e reabre-se aquele grande debate que veio à luz na Grécia: o mundo da antítese, da alienação, o único mundo em que o homem pode e deve viver e trabalhar - porque é o mundo que é, e não uma invenção dos filósofos - é verdadeiramente o mundo, a cidade do homem, para o homem? Se o homem, alienado, quiser reencontrar-se a si próprio, superar esse ser-outro, só poderá conseguí-lo transformando, destruindo a realidade histórica que torna (necessariamente) possível essa situação. A dialéctica das coisas (e também a luta de classes) impõe a transformação e a destruição das coisas: a construção de um mundo mais humano exige-o. Este o resultado, o nó histórico do pensamento entre a Revolução Francesa e Marx. A filosofia reconhece a realidade dialéctica e reconhece que esta realidade é desmanizante; tranformá-la significa exactamente fazer apelo à dialéctica e, ao mesmo tempo, suprimi-la. Não é realmente uma tese, mais ou menos paradoxal: realizar a filosofia que reconheceu que a realidade e ela própria são dialéctica, significa reconhecer que a dialéctica não é um problema meramente filosófico. Depois de Marx, outras mãos recolheram a filosofia; afirma-o Engels, ao reflectir sobre a gênese do "marxismo": "o proletariado é herdeiro da filosofia clássica alemã". É o destronamento da dialéctica, o seu afastamento.
Se nos permitem antecipar algo da conclusão da nossa história podemos dizer que, em rigor de termos, a dialéctica só existe hoje para aqueles que põem o problema da "dialéctica" como problema filosófico. Hoje, mas não apenas hoje, na sua história, a dialéctica aparece como elemento de mediação para aqueles filósofos que atacam com um interesse positivo a política e a realidade social e se deixam prender por ela. Exactamente por isto, exactamente por não ser um problema "filosófico", o debate que emergiu no e do mundo grego está ainda aberto, actualemente. É ainda o debate entre o saber como visão e o saber como comunicação, entre a escolástica, ou melhor, as escolásticas, isto é, as filosofias que filosofam sobre filosofia (um facto presente também no marxismo contemporâneo) e a intervenção do homem, político ou filósofo, que não reconhece a pretensão da consciência privada de iniciar e de conter o sentido da filosofia, entre o "idealismo" das escolásticas (e da dialéctica: mas, neste caso, se o dissemos e a história que vamos reconstruir têm um sentido, não se trata de dialéctica), das metodologias abstracas, das análises recorrentes sobre "estruturas" e a investigação, a que por tradição continuamos a dar o nome de filosofia, na medida em que ela se reconhece numa situação histórica real e procura pôr a descoberto as suas componentes (estruturais, superstruturais e ideológicas), essa investigação que só em abstracto é ou filosófica ou científica ou histórica, mas, de facto, mantém firma a unidade destas diferenças e determinações e se constrói sobre essa unidade. Marx e Engels assinalaram já o fim da "separação" entre ciências humanas e naturais, entre história do homem e história da natureza, entre dialéctica, como método para compreender a realidade a partir de dentro, e filosofia como sistema, como construção ideológica ou itinerário pessoal posto como fim.
Mas sejamos sinceros, que sabemos nós hoje deles, imersos nas ecolásticas, incapazes de nos opormos às restaurações que se processam? O debate contemporâneo, a que nos referimos brevemente, demonstra, por outro lado, a verdade, e, por outro, o não-sentido das nossas preocupações, das nossas incapacidades. Mas aponta-nos também o caminho que temos a percorrer. Então, e só neste sentido, podemos afirmar que continua vivo o espírito da dialéctica, isto é, a necessidade a que Sócrates se referia de viver na cidade, de não bastar a contemplação dos campos e das àrvores. A filosofia tem necessidade de realidade. Só neste sentido poderemos reafirmar a lição do grande debate que teve o seu início na Grécia: no princípio era a dialéctica, porque no princípio era a cidade.
SICHIROLLO, Lívio. Introdução. In: ______. Dialéctica. Lisboa: Presença, 1973.

segunda-feira, junho 18, 2007

O Pensamento


Crer que a verdade de uma teoria é a mesma coisa que sua fecundidade é um erro. Muitas pessoas parecem, no entanto, admitir o contrário disso. Elas acham que a teoria tem tão pouca necessidade de encontrar aplicação no pensamento, que ela deveria antes dispensá-lo pura e simplesmente. Elas interpretam toda declaração equivocadamente no sentido de uma definitiva profissão de fé, imperativo ou tabu. Elas querem submeter-se à Idéia como se fora um Deus, ou atacá-la como se fora um ídolo. O que lhes falta, em face dela, é a liberdade. Mas é próprio da verdade o fato de que participamos dela enquanto sujeitos ativos. Uma pessoa pode ouvir frases que são em si mesmas verdadeiras, mas só perceberá sua verdade na medida em que está pensando e continua a pensar, ao ouvi-las.

Hoje em dia, esse fetichismo exprime-se sob a forma drástica. Pedem-se prestações de contas pelo pensamento expresso, como se ele fosse a própria práxis. Justamente por isso toda palavra é intolerável: não apenas a palavra que pretende atingir o poder, mas também a palavra que se move tateando, experimentando, jogando com a possibilidade do erro. Mas: não estar pronto e acabado e saber que não está é o traço característico daquele pensamento e precisamente daquele pensamento com o qual vale a pena morrer. A proposição segundo a qual a verdade é o todo revela-se idêntica à proposição contrária, segundo a qual ela só existe em cada caso como parte. Dentre as desculpas que os intelectuais encontraram para os carrascos - e, na última década, eles não ficaram de braços cruzados com relação a isso - a mais deplorável é a desculpa de que o pensamento da vítima, responsável por seu assassinato, fora um erro.


ADORNO, Th; HORKHEIMER, M. O Pensamento. In: ______. Dialética do Esclarecimento. tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.