segunda-feira, janeiro 30, 2012

O consumo como fundamentalismo


"É preciso explicar por que o mundo de hoje, que é horrível, é apenas um momento do longo desenvolvimento histórico e que a esperança sempre foi uma das forças dominantes das revoluções e das insurreições. E eu ainda sinto a esperança como minha concepção de futuro".
 Jean Paul Sartre, 1963, Prefácio de Os condenados da Terra, de Frantz Fanon

O mundo global visto do lado de cá, documentário do cineasta brasileiro Sílvio Tendler, discute os problemas da globalização sob a perspectiva das periferias (seja o terceiro mundo, seja comunidades carentes). O filme é conduzido por uma entrevista com o geógrafo e intelectual baiano Milton Santos, gravada quatro meses antes de sua morte.
O cineasta conheceu Milton Santos em 1995, e desde então tinha planos para filmar o geógrafo. Os anos foram passando e, somente em 2001, Tendler realizou o que seria a última entrevista de Milton (que viria a morrer cinco meses depois). Baseado nesse primeiro ponto de partida o documentário procura explicar, ou até mesmo elucidar, essa tal Globalização da qual tanto ouvimos falar.
O documentário percorre algumas trilhas desses caminhos apontados por Milton, vemos movimentos na Bolívia, na França, México e chegamos ao Brasil, na periferia de Brasília. Em Ceilândia, a câmera nos mostra pessoas dispostas a mudar as manchetes dos jornais que só falam da comunidade para retratar a violência local. Adirley Queiroz, ex-jogador de futebol, hoje cineasta, estudou os textos de Milton e procura novos caminhos para fugir do 'sistema' ou do Globaritarismo -- termo criado por Milton Santos para designar a nova ordem mundial.

quinta-feira, janeiro 19, 2012

O turista e a modernidade líquida

[...] em nossa sociedade pós-moderna, estamos todos - de uma forma oude outra, no corpo ou no espírito, aqui e agora ou no futuro antecipado, de bom ou de mau grado - em movimento; nenhum de nós pode estar certo/a de que adquiriu o direito a algum lugar uma vez por todas, e ninguém acha que sua permanência num lugar, para sempre, é uma perspectiva provável. Onde quer que nos aconteça parar estamos, pelo menos, parcialmente deslocados ou fora do lugar.
O mundo construído de objetos duráveis foi substituído pelo de produtos disponíveis projetados para imediata obsolescência. Num mundo como esse, as identidades podem ser adotadas e descartadas como uma troca de roupa. O horror da nova situação é que todo diligente trabalho de construção pode mostrar-se inútil; e o fascínio da nova situação, por outro lado, se acha no fato de não estar comprometida por experiências passadas, de nunca ser irrevogavelmente anulada, sempre "mantendo as opções abertas". Mas o horror e o fascínio, de igual modo, fazem a vida como peregrinação dificilmente factível como uma estratégia e improvável de ser escolhida como tal. Não por muitos, afinal de contas. E não com grande probabilidade de sucesso.
No jogo da vida dos homens e mulheres pós-modernos, as regras do jogo não param de mudar no curo da disputa. A estratégia sensível, portanto, é manter curto cada jogo – de modo que um jogo da vida sensatamente disputado requer a desintegração de um jogo que tudo abarca, com prêmios enormes e dispendiosos e não demasiadamente preciosos. Para novamente citar Chistopher Lasch, a determinação de viver um dia de cada vez, e de retratar a vida diária como uma sucessão de emergências menores, se tornaram os princípios normativos de toda estratégia de vida racional.
Manter o jogo curto significa tomar cuidado com os compromissos a longo prazo. Recusar-se a “se fixar” de uma forma ou de outra. Não se prender a um lugar, por mais agradável que a escala presente possa parecer. Não se ligar a vida a uma vocação apenas. Não jurar coerência e lealdade a nada ou a ninguém. Não controlar o futuro, mas se recusar a empenhá-lo: tomar cuidado para que as conseqüências do jogo não sobrevivam ao próprio jogo e para renunciar à responsabilidade pelo que produzem tais conseqüências. Proibir o passado de se relacionar com o presente. Em suma, cortar o presente nas duas extremidades, separar o presente da história. Abolir o tempo em qualquer outra forma que não a de um ajuntamento solto, ou uma seqüência arbitrária, de momentos presentes: aplanar o fluxo do tempo num presente contínuo.
Adequação – a capacidade de se mover rapidamente onde a ação se acha e estar pronto a assimilar experiências quando elas chegam – tem precedência sobre saúde, essa idéia do padrão de normalidade e de conservar tal padrão estável, incólume. Toda demora, também a “demora da satisfação”, perde seu significado: não há nenhum tempo como seta legado para medi-la.
E desse modo a dificuldade já não e descobrir, inventar, construir, convocar (ou mesmo comprar) uma identidade, mas como impedi-la de ser demasiadamente firme e de aderir depressa demais ao corpo.
A figura do turista é a epítome dessa evitação. De fato, os turistas que valem o que comem são os mestres supremos da arte de misturar os sólidos e desprender o fixo. Antes e acima de tudo, eles realizam a façanha de não pertencer ao lugar que podem estar visitando: é deles o milagre de estar dentro e fora do lugar ao mesmo tempo. O turista guarda sua distância, e veda a distância de se reduzir à proximidade.
Viajando despreocupadamente, com apenas uns poucos pertences necessários à garantia contra a inclemência dos lugares estrangeiros, os turistas podem sair de novo a caminho, de uma hora para a outra, logo que as coisas ameaçam escapar de controle, ou quando seu potencial de diversão parece ter-se exaurido, ou quando aventuras ainda mais excitantes acenam de longe. O nome do é mobilidade: a pessoa deve poder mudar quando as necessidades impelem, ou os sonhos o solicitam.
A essa aptidão os turistas dão o nome de liberdade, autonomia ou independência, e prezam isso mais do que qualquer outra coisa, uma vez que é a conditio sine qua non de tudo o mais que seus corações desejam. Este é também o significado de sua exigência mais freqüentemente ouvida: “Preciso de mais espaço”. Ou seja, a ninguém será permitido discutir o meu direito de sair do espaço em que atualmente estou trancado.
Por mais longo que cada intervalo da viagem possa mostrar-se no fim, é vivido, em cada momento, como uma estada de pernoite. Só as mais superficiais das raízes, se tanto, são lançadas. Só relações epidérmicas, se tanto, são iniciadas com as pessoas dos lugares. Acima de tudo, não há nenhum comprometimento do futuro, nenhuma incursão em obrigações de longo prazo, nenhuma admissão de alguma coisa que aconteça hoje para se ligar ao amanhã. As pessoas do lugar, afinal, não são as zeladoras de estalagens do meio do caminho, que os peregrinos tinham de visitar outra vez e outra vez, a cada um efeito peregrinação: as pessoas do lugar, com que os turistas deparam, eles literalmente “tropeçam com” elas acidentalmente, como um efeito colateral do empurrão de ontem, que antes de ontem ainda não era imaginado ou antecipado, e que podia facilmente ser diferente do que era, e levar o turista para algum outro lugar.
Tudo isso oferece ao turista a sensação recompensadora de “estar sob controle”. Não é este, para estar seguro, um controle no sentido agora antiquado, fora de moda, e heróico, de quem grava a sua forma no mundo, refazendo o mundo em sua própria imagem, ou querendo-o e conservando-o como tal. Este não é senão o que se pode chamar o “controle situacional” – a aptidão para escolher onde e com que partes do mundo “interfacear”, e quando desligar a conexão. Ligar e desligar não deixam no mundo qualquer marca duradoura: na verdade, graças à facilidade com que as chaves funcionam, o mundo (como o turista o conhece) parece infinitamente flexível, dócil e esboroável. É improvável manter-se qualquer configuração por muito tempo.
Zygmunt Bauman (1925- ). O mal-estar na pós-modernidade.