quinta-feira, setembro 24, 2009

Monsieur le Capital et Madame la Terre




No capital portador de juro, esse fetiche automático está, portanto, em evidência em sua forma mais pura, valor que valoriza a si mesmo, dinheiro que gera filhos e não traz mais, sob essa forma, nenhuma marca de nascença. A relação social é completada como relação de uma coisa, do dinheiro, consigo mesma. Em vez da transformação real do dinheiro em capital, vemos aqui apenas sua forma desprovida de conteúdo [...]. Sendo assim, criar valor, dar juros como a macieira dá maçãs, tornou-se inteiramente uma propriedade do dinheiro. E aquele que empresta seu dinheiro o vende como algo que traz rendimento. Isso não basta. O capital efetivamente ativo, como vimos, apresenta-se de tal modo que faz render o juro não como capital ativo, mas como capital em si, como capital financeiro. Isso também se inverte: enquanto o juro é apenas uma parte do lucro, isto é, da mais-valia que o capital ativo extrai do trabalhador, o juro aparece desta vez, inversamente, como o verdadeiro fruto do capital, como a realidade primitiva, e o lucro, transformado então em forma de ganho do empresário, aparece como um simples acessório e suplemento que se adiciona no decorrer do processo de reprodução. Nesse caso, a forma fetichista do capital e a representação do fetiche do capital são completadas. Na fórmula D-D', temos a forma não-conceitual do capital, a inversão e a coisificação das relações de produção na mais alta potência: a forma portadora de juro, forma simples do capital que tem como condição de sua própria reprodução a capacidade do dinheiro, ou seja, da mercadoria, de valorizar seu próprio valor, independente da reprodução - mistificação do capital sob sua forma mais gritante. Para a economia vulgar, que quer representar o capital como fonte autônoma e de criação do valor, essa forma é naturalmente abençoada, pois nela a fonte do juro não é mais reconhecida, nela o resultado do processo capitalista de produção - separado do próprio processo - adquire uma existência autônoma.
Karl Marx. Das Kapital

segunda-feira, agosto 31, 2009

Mímesis e carceragem



A masoquítica cultura de massa é o fenômeno necessário da própria produção todo-poderosa. A ocupação afetiva do valor de troca não é qualquer transubstanciação mística. Ela corresponde ao comportamento do prisioneiro que ama sua cela, porque nada mais lhe é dado amar.


Theodor W. Adorno

segunda-feira, agosto 24, 2009

No fim da tarde: pagamento


As diferenças são muitas, mas não tantas. Hoje, enquanto fui devolver alguns filmes, presenciei uma estranha situação. Estacionei na garagem da vídeolocadora e deixei minha esposa no carro. Quando cheguei ao balcão para consumar a entrega dos dvd´s perguntei ao atendente se o pagamento podia ser feito por cartão em débito. Na realidade, só mostrei o cartão para o rapaz e fiz alguns gestos. Ele entendeu o que eu queria dizer e me respondeu: “Só gerocheque. O cartão é somente para compras de dvd´s”. Pensei: “gerocheque, o que deve ser isso?”. Não perguntei nada ao funcionário da locadora. Fiquei um tanto bravo com o fato. Ao mesmo tempo, alguma coisa me consolou para que eu engolisse aquilo. Moro no RS, e aqui tudo é bem diferente de tudo que já conheci. Aqui o cartão famoso é o Banricompras do banco estatal Banrisul. Em vários lugares já vi que a única coisa que os lojistas aceitavam era o Banricompras. Mesmo assim, em quase todos os estabelecimentos pode-se comprar com qualquer cartão. No entanto, quando ouvi aquele nome incomum facilmente comparei-o ao Banricompras. Veio-me imediatamente à cabeça a idéia de que isso era mais alguma coisa típica da terra dos pampas. Estava sem nenhum ‘pila’. Fui ao carro e perguntei à minha digníssima sobre dinheiro. Disse: “ah, falaram que não aceitam cartão, só um tal de gerocheque”. Voltei ao balcão e paguei a dívida. Já no carro, minha companheira retrucou: “Não era ‘dinheiro ou cheque’ não?”.

quinta-feira, agosto 20, 2009

Memórias da práxis: XI tese


A filosofia, que outrora pareceu ultrapassada, conserva-se vive porque o momento de sua realização não foi aproveitado. O juízo sumário segundo o qual ela apenas interpretou o mundo e que, por resignação ante a realidade, ter-se-ia atrofiado em si mesma, tornou-se derrotismo da razão depois que a transformação do mundo fracassou.


Theodor W. Adorno

terça-feira, agosto 18, 2009

Vêem-se artesãos, mas não pessoas; pensadores, mas não pessoas; sacerdotes, mas não pessoas; senhores e servos, jovens e gente de propriedade, mas não pessoas. Não seria isso como um campo de batalha em que mãos, braços e membros de todos os tipos estão espalhados uns entre os outros enquanto o sangue derramado de sua vida é sugado pela areia?

Friedrich Hölderlin

sexta-feira, julho 03, 2009

Sísifos do dia-a-dia



Como podem as pessoas que tenham sido objeto de dominação eficaz e produtiva criar elas próprias as condições de liberdade? (Herbert Marcuse)
A moderna barbárie, para Löwy (2000), define-se e manifesta-se pela utilização do que há de mais avançado em termos de técnica para produzir a industrialização do homicídio e o extermínio em massa graças às tecnologias de ponta. A destruição, nesse novo tipo de barbárie, é impessoal, ou seja, os massacres não têm contato entre quem toma as decisões e as vítimas; a mediação entre os combates é feita por máquinas militares que matam à distância. Por mais brutal e monstruoso que possa ser esse confronto, por trás dele há uma gestão burocrática e administrativa, a qual se preocupa unicamente com a eficiência da ação. Ademais, para legitimar as investidas militares, o Estado se municia com um poderoso artefato ideológico por meio de discursos “biológicos”, “higiênicos” e “científicos”, que corroboram a perpetuação da dominação e da exploração.
Um dos momentos mais explícitos dessa catástrofe humana se deu nos campos de concentração que se proliferaram nos territórios da Europa. Auschwitz é o exemplo do mais monstruoso uso da razão, uma utilização racional para a produção de irracionalidades impensáveis em tal grau de esclarecimento. “Milhões de homens inocentes [...] foram sistematicamente assassinados” (ADORNO, 1970c, p.81) em um fenômeno que não deve ser tratado como uma aberração na história, mas como algo que era possível de ser feito naquela época segundo a forma unilateral pela qual foi conduzido o desenvolvimento humano. Tal fato não representa uma “regressão” em direção ao passado, em direção aos primórdios da raça humana, mas se trata de um dos possíveis rostos da civilização industrial ocidental. “Que aquilo tenha acontecido é por si só indício de tendência extremamente poderosa da sociedade" (ADORNO, 1970c, p.81). Esse tipo de processo civilizador constitui ao mesmo tempo uma ruptura com a herança humanista e emancipatória dos Iluministas e um exemplo terrível das potencialidades negativas e destrutivas de nossos tempos.

Se a racionalidade instrumental não basta para explicar Auschwitz, ela é sua condição necessária e indispensável. Encontra-se nos meios de exterminação nazistas uma combinação de diferentes instituições típicas da modernidade: ao mesmo tempo, a prisão descrita por Foucault, a fábrica capitalista da qual falava Marx, ‘a organização científica do trabalho’ de Taylor, a administração racional/burocrática segundo Max Weber (LÖWY, 2000, p.51).

Depois de Auschwitz, a razão está sob suspeita. A razão não precisa estar dormindo para produzir monstros[1]. Pior: quando acordada, produz as piores e inimagináveis monstruosidades que ela própria desconhecia ser capaz de cometer. Não podemos mais confiar em qualquer discurso racional, ético ou moral, porque, em nossa época, até a razão e a linguagem são usadas para fins irracionais.
Cada vez mais a razão é usada para forjar uma moral do ato criminoso, especialmente quando este foi cometido em escala até então inimaginável, como foi o genocídio cometido pelos nazistas, soviéticos, e na carnificina americana que levou à dizimação de duas cidades japonesas por uma demonstração de força e poder.
Benjamin, voraz crítico do progresso capitalista, vê esse suposto movimento do progresso em direção ao futuro da nossa civilização, como algo prenhe de catástrofes, gestadas no próprio coração da modernidade. Se por meio dele atingimos, como nunca na história da humanidade, um patamar excepcional de bem-estar material, podemos também creditar ao progresso uma exploração mais destrutiva, sistemática e mortífera da natureza e o inegável aperfeiçoamento das técnicas de guerra e de extermínio de seres humanos. Igualmente, podemos creditar a ele, como uma perfeita combinação entre progresso técnico e regressão social, a emergência do fascismo, que não deve ser descartada como historicamente acidental, nem como um estado de exceção político/social que não se repetirá. Num de seus mais famosos e últimos escritos, as “Teses sobre o conceito de história”, o autor adverte o que para ele é central no processo da Aufklärung (esclarecimento): “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento de barbárie” (BENJAMIN, 1996c, p.225).
Havia também uma outra catástrofe que preocupava Benjamin: a que se apresentava ainda como a “eterna repetição do mesmo”, a que transforma grandes massas em Sísifos e Tântalos (Benjamin Apud LÖWY, 1990, p.211; LÖWY, 1992, p.121), condenados à mesmice a ver os objetos de seu desejo diante de seus olhos e infinitamente distantes de sua posse. Movimentos mecânicos, gestos automáticos, tarefas fragmentadas, pensamentos fragmentados, mundo em eterna incompletude, tudo sempre disfarçado em moda e novidade. Substituição frenética do novo pelo cada vez mais novo que já nasce obsoleto.
Essa é uma barbárie menos explícita, está difusa no meio social entre um trânsito dinâmico de ideologias pulverizadas pelos grandes aparelhos estatais. É por esse tipo de ordem que a razão instrumental irá se hipertrofiar, dominando todas as esferas da vida social. O discurso técnico-calculista irá permear as mediações humanas e irá se tornar o imperativo da ordem do mundo capitalista, em que, antes de tudo, está presente o lucro, a produção, a eficiência e a economia. A ética e os preceitos morais são inócuos diante do desenvolvimento desenfreado da técnica. Ao homem só cabe se adaptar a sua lógica perversa.
O que se percebe, desde os primórdios da utilização da racionalidade como ordenação do mundo e organização do cosmos, até a caótica produção racional do capitalismo tardio, é que a razão humana tem se frustrado em sua intenção de descobrir a verdade sobre o seu uso, de se auto-iluminar (autocriticar). A ela cabe recuperar sua concepção objetiva de transformação dos homens e do mundo, por meio dos homens.
Ao se hipertrofiar, a razão instrumental penetra no meio administrativo das grandes empresas, no meio jurídico, nos grandes laboratórios, nos mass media, nos exércitos, nas universidades, enfim, em tudo o que se refira às relações de produção dessa sociedade e a sua forma de controle e manutenção. Essa nova conjuntura social é o cenário de investigação da Teoria Crítica com relação àquilo que seus membros diziam ser o “mundo administrado”. Esse último seria a realidade do pós-guerra, ao qual o Estado não só tem o domínio legítimo da coerção física, como também da coerção ideologicamente aparelhada pelos meios de comunicação de massa. A dominação se estende da fábrica às mentes e ao inconsciente das pessoas em torno de um controle absoluto e ilimitado pela burguesia. O mundo administrado é aquele em que se desapareceram os esconderijos (ADORNO, 1966, p.91). Ao cidadão comum, resta nada mais do que agir mecanicamente segundo o direcionamento das leis do mercado e atuar no mundo mediante duas ações: consumir e descartar tudo o que estiver ao alcance financeiro de um mundo em que a troca é generalizada e impessoal. Os teóricos frankfurtianos se lançam na crítica à razão instrumental, para descobrir o porquê de a complexidade do todo ser reduzida à particularidade de coisa; qual o motivo de esse tipo de razão instrumentalizar tudo, até a vida humana, como um meio por si só.
Desde a secularização do conhecimento iniciado com o fim da tutela eclesiástica e passando pela emancipação política, econômica, cultural e social da classe burguesa, até o fim trágico e catastrófico do século XX, a razão teve um profundo impacto na coordenação desses eventos. Seja para libertar e conciliar, ou para oprimir e destruir, o uso da razão durante esse processo foi resultado de uma condução unilateral em torno do desenvolvimento humano. Se a história de formação do sistema capitalista por um lado libertou e emancipou os homens de domínios arbitrários da tradição e da natureza, por outro, empreendeu formas cruéis e destrutivas de dominação e exploração. Assim sendo, é por um entendimento mais claro do uso meramente instrumental do conhecimento racional que se torna necessário investigar como esse tipo de racionalidade calculista-instrumental se hipertrofiou e abrangeu todos os campos da vida social.

[1] “Auschwitz não é para se considerar por uma analogia com a destruição das cidades-Estado da Grécia antiga, como um simples aumento gradual do horror, diante do qual é possível manter sua alma tranqüila. Mas certamente o martírio e a humilhação sem precedente daqueles que foram deportados como gado irradia uma luz mortalmente crua sobre o passado mais longínquo, em cuja violência obtusa e sem planejamento já estava posta de maneira teleológica a violência tramada cientificamente” (ADORNO, 1993, p.205).
Leonardo de Lucas S. Domingues - novembro de 2006.

quarta-feira, julho 01, 2009

"Meine Damen und Herren: das ist sehr dialektisch!" (Adorno)

A construção da vida está, atualmente, muito mais em poder dos fatos que em poder de convicções, e de fatos que quase nunca serviram como base de convicções (BENJAMIN, Rua de Mão Única).
Pense sobre isso o que quiser, mas pense. Weiterdenken!

segunda-feira, junho 08, 2009

Experiência e Pobreza


1933
Em nossos livros de leitura havia a parábola de um velho que no momento da morte revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio do tesouro. Com a chegada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra na região. Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho. Tais experiências nos foram transmitidas, de modo benevolente ou ameaçador, à medida que crescíamos: "Ele é muito jovem, em breve poderá compreender". Ou: "Um dia ainda compreenderá". Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência?

Não, está claro que as ações da experiência estão em baixa, e isso numa geração que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da história. Talvez isso não seja tão estranho como parece. Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros de guerra que inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes não continham experiências transmissíveis de boca em boca. Não, o fenômeno não é estranho. Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano.

Uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem. A angustiante riqueza de idéias que se difundiu entre, ou melhor, sobre as pessoas, com a renovação da astrologia e da ioga, da Christian Science e da quiromancia, do vegetarismo e da gnose, da escolástica e do espiritualismo, é o reverso dessa miséria. Porque não é uma renovação autêntica que está em jogo, e sim uma galvanização. Pensemos nos esplêndidos quadros de Ensor, nos quais uma grande fantasmagoria enche as ruas das metrópoles: pequeno-burgueses com fantasias canavalescas, máscaras disformes brancas de farinha, coroas de folha de estanho, rodopiam imprevisivelmente ao longo das ruas. Esses quadros são talvez a cópia da Renascença terrível e caótica na qual tantos depositam suas esperanças. Aqui se revela, com toda clareza, que nossa pobreza de experiências é apenas uma parte da grande pobreza que recebeu novamente um rosto, nítido e preciso como o do mendigo medieval. Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós? A horrível mixórdia de estilos e concepções do mundo do século passado mostrou-nos com tanta clareza aonde esses valores culturais podem nos conduzir, quando a experiência nos é subtraída, hipócrita ou sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza. Sim, é preferível confessar que essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade. Surge assim uma nova barbárie.





Barbárie? Sim. Respondemos afirmativamente para introduzir um conceito novo e positivo de barbárie. Pois o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela o impele a partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda. Entre os grandes criadores sempre existiram homens implacáveis que operaram a partir de uma tábula rasa. Queriam uma prancheta: foram construtores. A essa estirpe de construtores pertenceu Descartes, que baseou sua filosofia numa única certeza — penso, logo existo — e dela partiu. Também Einstein foi um construtor assim, que subitamente perdeu o interesse por todo o universo da física, exceto por um único problema — uma pequena discrepância entre as equações de Newton e as observações astronômicas. Os artistas tinham em mente essa mesma preocupação de começar do principio quando se inspiravam na matemática e reconstruíam o mundo, como os cubistas, a partir de formas estereométricas, ou quando, como Klee, se inspiravam nos engenheiros. Pois as figuras de Klee são por assim dizer desenhadas na prancheta, e, assim como num bom automóvel a própria carroceria obedece à necessidade interna do motor, a expressão fisionômica dessas figuras obedece ao que está dentro. Ao que está dentro, e não à interioridade: é por isso que elas são bárbaras.

Algumas das melhores cabeças já começaram a ajustar-se a essas coisas. Sua característica é uma desilusão radical com o século e ao mesmo tempo uma total fidelidade a esse século. Pouco importa se é o poeta Bert Brecht afirmando que o comunismo não é a repartição mais justa da riqueza, mas da pobreza, ou se é o precursor da moderna arquitetura, Adolf Loos, afirmando: "Só escrevo para pessoas dotadas de uma sensibilidade moderna.. Não escrevo para os nostálgicos da Renascença ou do Rococó". Tanto um pintor complexo como Paul Klee quanto um arquiteto programático como Loos rejeitam a imagem do homem tradicional, solene, nobre, adornado com todas as oferendas do passado, para dirigir-se ao contemporâneo nu, deitado como um recém-nascido nas fraldas sujas de nossa época. Ninguém o saudou tão alegre e risonhamente como Paul Scheerbart. Ele escreveu romances que de longe se parecem com os de Júlio Verne, mas ao contrário de Verne, que se limita a catapultar interminavelmente no espaço, nos veículos mais fantásticos, pequenos rentiers ingleses ou franceses, Scheerbart se interessa pela questão de como nossos telescópios, aviões e foguetes transformam os homens antigos em criaturas inteiramente novas, dignas de serem vistas e amadas. De resto, essas criaturas também falam uma língua inteiramente nova. Decisiva, nessa linguagem, é a dimensão arbitrária e construtiva, em contraste com a dimensão orgânica. É esse o aspecto inconfundível na linguagem dos homens de Scheerbart, ou melhor, da sua "gente"; pois tal linguagem recusa qualquer semelhança com o humano, princípio fundamental do humanismo. Mesmo em seus nomes próprios: os personagens do seu livro, intitulado Lesabéndio, segundo o nome do seu herói, chamam-se Peka, Labu, Sofanti e outros do mesmo gênero. Também os russos dão aos seus filhos nomes "desumanizados": são nomes como Outubro, aludindo à Revolução, ou Pjatiletka, aludindo ao Plano Qüinqüenal, ou Aviachim, aludindo a uma companhia de aviação. Nenhuma renovação técnica da língua, mas sua mobilização a serviço da luta ou do trabalho e, em todo caso, a serviço da transformação da realidade, e não da sua descrição.

Mas, para voltarmos a Scheerbart: ele atribui a maior importância à tarefa de hospedar sua "gente", e os co-cidadãos, modelados à sua imagem, em acomodações adequadas à sua condição social, em casas de vidro, ajustáveis e móveis, tais como as construídas, no meio tempo, por Loos e Le Corbusier. Não é por acaso que o vidro é um material tão duro e tão liso, no qual nada se fixa. É também um material frio e sóbrio. As coisas de vidro não têm nenhuma aura. O vidro é em geral o inimigo do mistério. E também o inimigo da propriedade. O grande romancista André Gide disse certa vez: cada coisa que possuo se torna opaca para mim. Será que homens como Scheerbart sonham com edifícios de vidro, porque professam uma nova pobreza? Mas uma comparação talvez seja aqui mais útil que qualquer teoria. Se entrarmos num quarto burguês dos anos oitenta, apesar de todo o "aconchego" que ele irradia, talvez a impressão mais forte que ele produz se exprima na frase: "Não tens nada a fazer aqui". Não temos nada a fazer ali porque não há nesse espaço um único ponto em que seu habitante não tivesse deixado seus vestígios. Esses vestígios são os bibelôs sobre as prateleiras, as franjas ao pé das poltronas, as cortinas transparentes atrás das janelas, o guarda-fogo diante da lareira. Uma bela frase de Brecht pode ajudar-nos a compreender o que está em jogo: "Apaguem os rastros!", diz o estribilho do primeiro poema da Cartilha para os citadinos. Essa atitude é a oposta da que é determinada pelo hábito, num salão burguês. Nele, o "interior" obriga o habitante a adquirir o máximo possível de hábitos, que se ajustam melhor a esse interior que a ele próprio. Isso pode ser compreendido por qualquer pessoa que se lembra ainda da indignação grotesca que acometia o ocupante desses espaços de pelúcia quando algum objeto da sua casa se quebrava. Mesmo seu modo de encolerizar-se — e essa emoção, que começa a extinguir-se, era manipulada com grande virtuosismo — era antes de mais nada a reação de um homem cujos "vestígios sobre a terra" estavam sendo abolidos. Tudo isso foi eliminado por Scheerbart com seu vidro e pelo Bauhaus com seu aço: eles criaram espaços em que é difícil deixar rastros. "Pelo que foi dito", explicou Scheerbart há vinte anos, "podemos falar de uma cultura de vidro. O novo ambiente de vidro mudará completamente os homens. Deve-se apenas esperar que a nova cultura de vidro não encontre muitos adversários."

Pobreza de experiência: não se deve imaginar que os homens aspirem a novas experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa resultar disso. Nem sempre eles são ignorantes ou inexperientes. Muitas vezes, podemos afirmar o oposto: eles "devoraram" tudo, a "cultura" e os "homens", e ficaram saciados e exaustos. "Vocês estão todos tão cansados — e tudo porque não concentraram todos os seus pensamentos num plano totalmente simples mas absolutamente grandioso." Ao cansaço segue-se o sonho, e não é raro que o sonho compense a tristeza e o desânimo do dia, realizando a existência inteiramente simples e absolutamente grandiosa que não pode ser realizada durante o dia, por falta de forças. A existência do camundongo Mickey é um desses sonhos do homem contemporâneo. É uma existência cheia de milagres, que não somente superam os milagres técnicos como zombam deles. Pois o mais extraordinário neles é que todos, sem qualquer improvisadamente, saem do corpo do camundongo Mickey, dos seus aliados e perseguidores, dos móveis mais cotidianos, das árvores, nuvens e lagos. A natureza e a técnica, o primitivismo e o conforto se unificam completamente, e aos olhos das pessoas, fatigadas com as complicações infinitas da vida diária e que vêem o objetivo da vida apenas como o mais remoto ponto de fuga numa interminável perspectiva de meios, surge uma existência que se basta a si mesma, em cada episódio, do modo mais simples e mais cômodo, e na qual um automóvel não pesa mais que um chapéu de palha, e uma fruta na árvore se arredonda como a gôndola de um balão.

Podemos agora tomar distância para avaliar o conjunto. Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do "atual". A crise econômica está diante da porta, atrás dela está uma sombra, a próxima guerra. A tenacidade é hoje privilégio de um pequeno grupo dos poderosos, que sabe Deus não são mais humanos que os outros; na maioria bárbaros, mas não no bom sentido. Porém os outros precisam instalar-se, de novo e com poucos meios. São solidários dos homens que fizeram do novo uma coisa essencialmente sua, com lucidez e capacidade de renúncia. Em seus edifícios, quadros e narrativas a humanidade se prepara, se necessário, para sobreviver à cultura. E o que é mais importante: ela o faz rindo. Talvez esse riso tenha aqui e ali um som bárbaro. Perfeito. No meio tempo, possa o indivíduo dar um pouco de humanidade àquela massa, que um dia talvez retribua com juros e com os juros dos juros.

Texto de Walter Benjamin
Tradução de Sérgio Paulo Rouanet

Ensaio obtido em Walter Benjamin – Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 114-119.

Retirado de: http://antivalor.vilabol.uol.com.br/textos/frankfurt/benjamin/benjamin_02.htm

quinta-feira, maio 28, 2009

AMASSA

AMASSA

Amassa a massa
Põe o ovo na massa
Amassa o povo até virar massa
Assa
Assa a massa com ovo
Passa do ponto e queima o povo
Acha o ponto da massa
Que o povo virou ovo
E começa tudo de novo
Amassa a massa
Põe ovo na massa de novo.

Gerinho da Terra
Ourinhos 28/02/2004

quinta-feira, abril 30, 2009

Harry Braverman: o operário letrado do qual falava o poema de Brecht


Estudamos muito e aperfeiçoamos, ultimamente, a grande invenção civilizada da divisão do trabalho; só lhe damos um falso nome. Não é, a rigor, o trabalho que é dividido; mas os homens: divididos em meros segmentos de homens - quebrados em pequenos fragmentos e migalhas de vida; de tal modo que toda partícula de inteligência deixada no homem não é bastante para fazer um alfinete, um prego, mas se exaure ao fazer a ponta de um alfinete ou a cabeça de um prego (1977, p. 76)

BRAVERMAN, H. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

terça-feira, abril 21, 2009

Teses sobre Karl Marx

FERNANDO HADDAD

I
O S SOCIALISTAS, até hoje, incidiram no erro de acreditar que o desenvolvimento
das forças produtivas, sob o capitalismo, faria explodir as relações
de produção que o configuram, quando na verdade, ao contrário das antigas
formações sociais, o capitalismo se vale desse desenvolvimento para se legitimar,
sendo que a dialética entre as forças produtivas e as flexíveis relações capitalistas
de produção se desdobra de uma maneira historicamente nova, a um só
tempo dinâmica e estaticamente.
II
Os socialistas se valem das crises do capitalismo, expressão do seu caráter
inerentemente contraditório e irracional, para afirmar seu ponto de vista. Não
obstante, a questão sobre qual será a crise final desse sistema é uma questão
político-prática e não econômico-teórica.
III
Os socialistas querem erradicar do mundo a pobreza de espírito. Tomam-
na como produto direto das atuais condições materiais de existência. O
movimento socialista funda-se no materialismo, mas entendido como crítica
social, tendente a sua consumação.
IV
O socialismo não deve ser tomado como um fim, como telos, mas como
um novo começo, como reconciliação entre homem e natureza que não reivindica
um passado longínquo, pois essa reconciliação se dá num outro plano,
num patamar jamais atingido.
V
O socialismo não deve ser tomado como uma ordem fundada em valores
por ele criados. O socialismo é o desentrave definitivo do processo de
individuação, obstruído pela sociedade de classes. O socialismo é a exuberância
dos indivíduos de uma vez por todas libertos de valores prescritos, unidos solidariamente
pelos laços de justiça, exclusivamente.
VI
O socialismo é igualmente o desentrave do processo de formação de urna
comunidade internacional que preserva as diferenças entre os povos, e que faz
délas o testemunho da riqueza do enfim realizado gênero humano.
VII
O socialismo é o reino da justiça onde se exerce a liberdade.
VIII
Os socialistas pretenderam transformar o mundo; cabe, porém, transformar
os homens, isto é, motivá-los para aquela transformação. O socialismo
depende de um salto psicoterapêutico para além da dominação orquestrada
democraticamente na esfera pública.
IX
O socialismo não é um desdobramento lógico do capitalismo, embora
seja uma possibilidade objetiva. O lógico é tão-somente o histórico que se impôs,
por vezes ilógicamente. O socialismo é a saída talvez ilógica de um mundo
certamente irracional.
X
O socialismo é a superação prática da metafísica realmente existente.
Como a dialética é tão-somente o fruto do esforço mental de compreensão da
fantasmagoria reinante, o advento do socialismo implicará sua obsolescência.
XI
Até lá, os socialistas devem reinterpretar continuamente o mundo social
para uma práxis transformadora sempre renovada.


Fernando Haddad professor do Departamento de Ciência Política da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

quarta-feira, abril 15, 2009

Síntese/Antítese

Quando o poder da síntese desaparece da vida dos homens e quando as antíteses perdem sua relação vital e seu poder de interação e conquistam a independência, é então que a filosofia se torna uma necessidade sentida.
G.W.F. Hegel

sexta-feira, janeiro 16, 2009

Quem é o sujeito que está na foto em p&b utilizando minha identidade?

Ele já pensou em escrever um livro sobre a ética em Tolstoi e via no processo revolucionário russo, iniciado em 1905, a grande alternativa ao mundo ocidental. Ficou tão entusiasmado com esse último fato que até aprendeu a língua de Dostoiévski e Máximo Gorki em pouquíssimo tempo.