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quinta-feira, maio 01, 2014

Górgonas da produção de valor


Perseu tinha um capacete que o tornava invisível, para perseguir os monstros. Nós, de nossa parte, nos embuçamos com nosso capuz mágico, tapando nossos olhos e nossos ouvidos, para poder negar as monstruosidades existentes.
Karl Marx (1818-1883). O Capital

segunda-feira, julho 18, 2011

Transformações nos processos de trabalho no capitalismo

Segundo Marx, processo de trabalho, com base em seu elemento simples e abstrato, é a atividade humana orientada a um fim para produzir valores de uso. É o meio pelo qual se dá a interação com o meio natural para satisfazer as necessidades humanas, condição universal do metabolismo entre o homem e a natureza (1985, p.153). Nesse processo, três fatores tornam-se indispensáveis: os próprios seres humanos ou a força de trabalho; as matérias-primas sobre as quais o homem atua; e os instrumentos que viabilizam essa transformação. Não consideradas aqui as especificidades históricas de cada período.
O processo de trabalho no capitalismo se caracteriza por ser, ao mesmo tempo, processo de produção de valores de uso e processo de produção de valores excedente (de troca). A produção de valor é, acima de tudo, processo de valorização, isto é, processo de produção de mais-valia e de capital. Essa é a situação em que o capitalista assegura a reprodução da sua condição de apropriação sobre a produção e o trabalho do proletário, que se reproduz, também, enquanto despossuído de meios de produção e possuidor apenas de sua força de trabalho. Tal processo se torna possível por meio da redução do tempo de trabalho necessário - a parte do tempo que o trabalhador utiliza para si mesmo - e aumento do mais trabalho, que corresponde ao tempo de trabalho para o capitalista (MARX, 1985).
Na história de formação do capitalismo, o controle sobre o processo de trabalho foi palco de conflitos e de demonstrações de resistência dos trabalhadores. A luta se dava em torno da autonomia do processo de trabalho, ameaçada de diversas formas por um sistema capitalista ainda gestante. A imposição de um sistema de parcelamento das atividades dos trabalhadores, por um lado, e da centralização hierárquica do mando nas mãos do capitalista, por outro, não se deu por razões de superioridade técnica, e nem teve como função a eficácia técnica, mas, tão-somente, se deu em favor da acumulação e do controle da produção (MARGLIN, 1980).








Nesse palco de apropriação do excedente no interior do processo de trabalho, o confronto entre capital e trabalho se torna visível. A fábrica surge como espaço de disciplina e de controle, e a máquina, por sua vez, representa a arma de uma estratégia de dominação. Muitas lutas foram travadas contra a imposição da maquinaria, encabeçadas por tecelões, operários e mulheres. Michelle Perrot retrata, de maneira notável, como que na França do século XIX, estabeleceu-se uma disciplina industrial que perpassava várias instituições da sociedade, integrando a fábrica , a escola, o exército e a prisão (PERROT, 1988, p.53).
Com a máquina e o sistema de máquinas sob a grande indústria, o processo de trabalho propriamente dito tende a negar a si próprio como processo de trabalho, sob a direção consciente do trabalho vivo (trabalhador), para se tornar processo de produção do capital conduzido pelo trabalho morto (máquina). O que significa que, neste caso, o homem é deslocado do processo de trabalho, deixando de ser elemento ativo e tornando-se elemento passivo, seguindo o ritmo e a cadência do sistema de máquinas. Isso é o que Marx irá denominar como sendo a passagem da subsunção formal do trabalho para a subsunção real do trabalho ao capital (ANTUNES, 1995).
A introdução da maquinaria tem como conseqüência o aumento da produtividade, a desqualificação e a desvalorização dos trabalhadores por meio dos elementos objetivos do processo de trabalho. Na fábrica, instalações, máquinas e equipamentos não podem mais ser utilizados individualmente, porque somente adquirem funcionalidade quando utilizadas coletivamente.
Para intensificar a produção, os capitalistas precisavam conter as diversas formas de porosidade (eliminar o tempo morto) que obstacularizavam o incremento da acumulação de capital. Essas porosidades diziam respeito à falta de integração entre as atividades produtivas e a perda de tempo conseqüente dessa operação (tanto por parte do treinamento operativo do trabalhador, quanto da disposição inadequada de máquinas e matérias-primas, por exemplo) (NEFFA, 1989). A introdução da maquinaria já representava uma forma de estratégia nesse sentido.
Sobre esse plano, instalaram-se técnicas gerenciais que proporcionaram ao capital transpor esses limites. No início do Século XX, Frederick Taylor reinventa a organização do processo produtivo capitalista, com objetivo de extrair o maior aproveitamento possível da força de trabalho (formas e modalidades de obter economia de tempo). Caracterizava-se por compreender: estudos de tempos e movimentos realizados pelos trabalhadores (reduzir tempo ocioso da produção); trabalho prescrito (ação já pensada no escritório de métodos); individualização do trabalho; padronização das tarefas e dos instrumentos de trabalho; seleção pretensamente científica dos trabalhadores; treinamento operacional; pagamento individualizado (remuneração correspondendo ao rendimento, como forma de estímulo); pausas e repousos entre as atividades; e estrutura hierárquica ampliada de controle e supervisão. O taylorismo se constituía, então, em uma proposta de racionalização da produção que integra a organização científica do trabalho (OCT), aprofundando a divisão técnica do trabalho e a separação entre concepção e execução (NEFFA, 1998; CATTANI, HOLZMANN, 2006).
A introdução de todos esses mecanismos se configura numa estratégia patronal de gestão e de organização do processo produtivo, com ênfase na disciplina e no controle fabris. Analisando os processos de resistência que os trabalhadores impunham a essas mudanças, percebe-se que foi muito mais uma estratégia política para retirar o poder de decisão dos trabalhadores na fábrica por meio de uma apropriação do seu saber, visando com isso destruir uma específica organização do processo de trabalho (DE DECCA, 1984).

O fordismo acentua e transforma a divisão social e técnica do trabalho, utilizando outros meios de trabalho. Tal técnica de gerenciamento introduziu a cadeia de montagem, o que possibilitou a mecanização do processo produtivo e a constituição do trabalhador coletivo fabril. A intenção, para aumentar a eficiência das empresas e fazer uma maior economia de tempo, foi mecanizar ao máximo o trabalho e incrementar o rendimento das máquinas, mais do que aumentar a produtividade direta do trabalho manual, que era o objetivo taylorista. Para alcançar esses objetivos, fez-se uma produção massiva de bens de consumo duráveis, pautada na utilização de tecnologias de propósitos únicos (estrutura rígida).
O fordismo/taylorismo teve seu desenvolvimento associado à expansão capitalista mundial, com grande ascensão durante o Estado do Bem Estar Social. No entanto, com as crises dos anos 70, o capitalismo ingressa em mais uma metamorfose, sob viés do programa neoliberal de redução do Estado e da atividade produtiva. Mudanças profundas se estabeleceram nas formas de produção e acumulação capitalista, assim como nas relações sociais que as acompanham. A crise do modelo de acumulação capitalista levou a um reordenamento das formas de organização do capital por meio de uma reestruturação produtiva. As empresas, ao tentarem restabelecer as taxas de lucro, tiveram de adotar medidas para reduzir custos de produção, aumentar a produtividade, ampliar o mercado e acelerar o giro de capital.
É a partir dos anos de 1990 que se observa a ampliação de novas técnicas de gestão do trabalho, profundamente inspiradas no chamado “modelo japonês” de administração e organização da produção. Também conhecido como toyotismo (também chamado de produção enxuta, entre outras), este novo método de gerenciamento tornou-se um fator integrante fundamental da profunda reestruturação produtiva pela qual as empresas do mundo todo vêm passando, de modo mais incisivo, desde a década de 1980. Logo, parte de suas técnicas relacionadas à gestão e treinamento da força de trabalho converteu-se em normatização obrigatória para obtenção de certificados do tipo ISO-9000 e seguintes (LAHERA SANCHEZ, 2005). Tais certificações são hoje consideradas um padrão obrigatório para a autenticação dos negócios das mais diversas firmas perante as associações comerciais de nível nacional e internacional.
Aspecto contingente do toyotismo, os Programas de Qualidade Total são o conjunto de técnicas de gestão responsáveis pela promoção do novo perfil do trabalhador prescrito pelo novo modelo de administração de empresas internacionalmente asseverado. São esses programas que respondem pelo desenvolvimento das novas demandas requeridas pelas grandes empresas relativamente à sua força de trabalho (flexibilidade, polivalência, envolvimento e participação), demandas que garantem, ao mesmo tempo, o engajamento e o desenvolvimento de habilidades operárias que potencializam a nova maquinaria informatizada. A ideologia da administração participativa própria desses programas determina um tipo de qualificação abrangente que motiva, entre outras coisas, a participação dos trabalhadores com sugestões que possam vir a melhorar seus processos de trabalho.
Sob a atual reestruturação produtiva, essa exploração encontra-se qualitativamente agravada já que, para além da força física humana, o que está sendo extraído pela nova maquinaria que a integra é a capacidade cognitiva do trabalho vivo, aquela que produz idéias. É nesse sentido que estão sendo aplicadas as técnicas de gestão do trabalho provenientes da administração participativa, que visam a estimular as qualidades criativas da força de trabalho e, através do incitamento da participação ativa dos trabalhadores de todos os níveis no processo de produção total da empresa, promover a formalização, normalização e a conseqüente materialização dos resultados dessa criatividade. É o que para Arturo Lahera Sánchez se caracteriza como sendo a “conquista dos corações e mentes dos trabalhadores” (LAHERA SANCHEZ, 2005).
A necessidade de recuperação de rentabilidade obrigou as multinacionais a internacionalizarem o seu sistema produtivo, gerando novos vínculos de subcontratação em regiões onde os contratos de trabalho eram bastante flexíveis, proporcionando produção com mão-de-obra menos onerosa como forma de diminuir custos de produção.
As transformações vêm criando dificuldades para a ação dos sindicatos, reduzindo seu poder de representação junto à classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, exigindo novas formas de articulação que viabilizem a incorporação, organização e representação dos novos segmentos de trabalhadores, e acarretando, também, a reestruturação das estratégias de resistência dos trabalhadores.

As diferentes formas de gerenciamento da produção e do processo de trabalho não se estabelecem de forma idêntica em todos os países ou regiões e, apesar de suas distinções, não é possível dizer que uma forma tenha superado totalmente a outra (e assim por diante). “Em condições de acumulação flexível, parece que sistemas de trabalho alternativos podem existir lado a lado, no mesmo espaço, de uma maneira que permita que os empreendedores capitalistas escolham à vontade entre eles” (ANTUNES, 1995, p.22). Mesmo no interior de cada país, estão presentes conjuntos diferenciados de práticas de contratação da mão-de-obra produtiva: subcontratação, mão-de-obra familiar, trabalho domiciliar, trabalho em tempo parcial, trabalho por tarefas, cooperativas de trabalho, etc.
Apesar de compor novos nomes e de representar novas bandeiras, como a qualidade, a participação, a criatividade e a decência, a estratégia que se dá num plano mais concreto é a mesma: a luta do capital para retirar dos trabalhadores o controle sobre o processo de trabalho. Para triunfar no plano da produção, o capital cria novas formas de trabalho e de gestão, assim como reinventa, em novos arranjos, processos de trabalho que pareciam estar superados pela sua mesma lógica racionalizadora.
A busca pelo controle do processo de trabalho traz consigo o conflito entre capital e trabalho. Essa luta dispõe-se num movimento de confronto e consentimento entre as práticas de resistência dos trabalhadores e os mecanismos/estratégias de dominação exercidos pelo capital. O processo de trabalho, incorporando suas mutações e dinâmicas, estabelece-se, assim, como ponto-chave para compreensão das transformações que configuram o caráter singular/universal do sistema capitalista.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, R. Adeus ao Trabalho? São Paulo: Cortez/Unicamp, 1995.
CATTANI, A. D; HOLZMANN, L. Taylorismo. In: ______ (Orgs). Dicionário de Trabalho e Tecnologia. Porto Alegre: UFRGS, 2006.
DE DECCA, E. A ciência da produção. A fábrica despolitizada. Revista Brasileira de História. n.6. Marco Zero, 1984, p.47-79.
HOLZMANN, L. Processo de trabalho II. In: CATTANI, A. D; HOLZMANN, L (Orgs). Dicionário de Trabalho e Tecnologia. Porto Alegre: UFRGS, 2006.
LAHERA SANCHEZ, A. Conquistando corazones y las almas de los trabajadores: la participación de los trabajadores en la calidad total como nuevo dispositivo disicplinario. In: CASTILLO, J. J. (director) El Trabajo Recobrado. Uma evaluación del trabajo realmente existente en España. Madrid: Miño y Dávila, 2005.
MARGLIN, S. A. Origem e funções do parcelamento das tarefas. Para quê servem os patrões? In: GORZ, A (Org). Crítica da Divisão do Trabalho. São Paulo: Martins Fontes, 1980.
MARX, K. O Capital. 2.ed. vol.1 t.1 São Paulo: Nova Cultural, 1985.
NEFFA, J. C. Los Paradigmas Productivos Taylorista y Fordista y su Crisis: Uma contribuición a su estudio, desde el enfoque de la “Teoría de la Regulación”. Buenos Aires: Lumen, 1998.
NEFFA, J. C. El proceso de trabajo y la economia del tiempo. Contribuición al analisis crítico de Marx, Taylor y Ford. Buenos Aires: Humanitas, 1989.
PERROT, M. Os Excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

Texto escrito por Leonardo de Lucas S Domingues em 09 de junho de 2008.

quinta-feira, setembro 24, 2009

Monsieur le Capital et Madame la Terre




No capital portador de juro, esse fetiche automático está, portanto, em evidência em sua forma mais pura, valor que valoriza a si mesmo, dinheiro que gera filhos e não traz mais, sob essa forma, nenhuma marca de nascença. A relação social é completada como relação de uma coisa, do dinheiro, consigo mesma. Em vez da transformação real do dinheiro em capital, vemos aqui apenas sua forma desprovida de conteúdo [...]. Sendo assim, criar valor, dar juros como a macieira dá maçãs, tornou-se inteiramente uma propriedade do dinheiro. E aquele que empresta seu dinheiro o vende como algo que traz rendimento. Isso não basta. O capital efetivamente ativo, como vimos, apresenta-se de tal modo que faz render o juro não como capital ativo, mas como capital em si, como capital financeiro. Isso também se inverte: enquanto o juro é apenas uma parte do lucro, isto é, da mais-valia que o capital ativo extrai do trabalhador, o juro aparece desta vez, inversamente, como o verdadeiro fruto do capital, como a realidade primitiva, e o lucro, transformado então em forma de ganho do empresário, aparece como um simples acessório e suplemento que se adiciona no decorrer do processo de reprodução. Nesse caso, a forma fetichista do capital e a representação do fetiche do capital são completadas. Na fórmula D-D', temos a forma não-conceitual do capital, a inversão e a coisificação das relações de produção na mais alta potência: a forma portadora de juro, forma simples do capital que tem como condição de sua própria reprodução a capacidade do dinheiro, ou seja, da mercadoria, de valorizar seu próprio valor, independente da reprodução - mistificação do capital sob sua forma mais gritante. Para a economia vulgar, que quer representar o capital como fonte autônoma e de criação do valor, essa forma é naturalmente abençoada, pois nela a fonte do juro não é mais reconhecida, nela o resultado do processo capitalista de produção - separado do próprio processo - adquire uma existência autônoma.
Karl Marx. Das Kapital

quinta-feira, agosto 20, 2009

Memórias da práxis: XI tese


A filosofia, que outrora pareceu ultrapassada, conserva-se vive porque o momento de sua realização não foi aproveitado. O juízo sumário segundo o qual ela apenas interpretou o mundo e que, por resignação ante a realidade, ter-se-ia atrofiado em si mesma, tornou-se derrotismo da razão depois que a transformação do mundo fracassou.


Theodor W. Adorno

terça-feira, abril 21, 2009

Teses sobre Karl Marx

FERNANDO HADDAD

I
O S SOCIALISTAS, até hoje, incidiram no erro de acreditar que o desenvolvimento
das forças produtivas, sob o capitalismo, faria explodir as relações
de produção que o configuram, quando na verdade, ao contrário das antigas
formações sociais, o capitalismo se vale desse desenvolvimento para se legitimar,
sendo que a dialética entre as forças produtivas e as flexíveis relações capitalistas
de produção se desdobra de uma maneira historicamente nova, a um só
tempo dinâmica e estaticamente.
II
Os socialistas se valem das crises do capitalismo, expressão do seu caráter
inerentemente contraditório e irracional, para afirmar seu ponto de vista. Não
obstante, a questão sobre qual será a crise final desse sistema é uma questão
político-prática e não econômico-teórica.
III
Os socialistas querem erradicar do mundo a pobreza de espírito. Tomam-
na como produto direto das atuais condições materiais de existência. O
movimento socialista funda-se no materialismo, mas entendido como crítica
social, tendente a sua consumação.
IV
O socialismo não deve ser tomado como um fim, como telos, mas como
um novo começo, como reconciliação entre homem e natureza que não reivindica
um passado longínquo, pois essa reconciliação se dá num outro plano,
num patamar jamais atingido.
V
O socialismo não deve ser tomado como uma ordem fundada em valores
por ele criados. O socialismo é o desentrave definitivo do processo de
individuação, obstruído pela sociedade de classes. O socialismo é a exuberância
dos indivíduos de uma vez por todas libertos de valores prescritos, unidos solidariamente
pelos laços de justiça, exclusivamente.
VI
O socialismo é igualmente o desentrave do processo de formação de urna
comunidade internacional que preserva as diferenças entre os povos, e que faz
délas o testemunho da riqueza do enfim realizado gênero humano.
VII
O socialismo é o reino da justiça onde se exerce a liberdade.
VIII
Os socialistas pretenderam transformar o mundo; cabe, porém, transformar
os homens, isto é, motivá-los para aquela transformação. O socialismo
depende de um salto psicoterapêutico para além da dominação orquestrada
democraticamente na esfera pública.
IX
O socialismo não é um desdobramento lógico do capitalismo, embora
seja uma possibilidade objetiva. O lógico é tão-somente o histórico que se impôs,
por vezes ilógicamente. O socialismo é a saída talvez ilógica de um mundo
certamente irracional.
X
O socialismo é a superação prática da metafísica realmente existente.
Como a dialética é tão-somente o fruto do esforço mental de compreensão da
fantasmagoria reinante, o advento do socialismo implicará sua obsolescência.
XI
Até lá, os socialistas devem reinterpretar continuamente o mundo social
para uma práxis transformadora sempre renovada.


Fernando Haddad professor do Departamento de Ciência Política da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

sexta-feira, setembro 14, 2007

Discurso no Aniversário de "The People's Paper"



Proferido em Londres, a 14 de Abril de 1856

Primeira Edição: Publicado no The People's Paper de n." 207, de 19 de Abril de 1856.
Fonte: . Obras Escolhidas em três tomos, Editorial "Avante!"
Tradução: José BARATA-MOURA (Traduzido do inglês e publicado segundo o texto do jornal).
Transcrição e HTML: Fernando Antônio de Souza Araújo, março 2007.
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Editorial "Avante!" - Edições Progresso Lisboa - Moscovo, 1982.


As chamadas revoluções de 1848 não foram mais do que pobres incidentes — pequenas fracturas e fissuras na dura crosta da sociedade europeia. No entanto, elas denunciavam o abismo. Por detrás da superfície aparentemente sólida, elas revelavam oceanos de matéria líquida que apenas precisavam de expansão para fazer em bocados continentes de rocha firme. Barulhenta e confusamente, proclamaram a emancipação do proletário, isto é, o segredo do século XIX e da revolução deste século.

Esta revolução social — é certo — não foi uma novidade inventada em 1848. O vapor, a electricidade e a máquina de fiação foram revolucionários de um tipo muito mais perigoso do que mesmo os cidadãos Barbès, Raspail e Blanqui. Mas, embora a atmosfera em que vivemos pese sobre cada um de nós com uma força de 20 000 libras, senti-la vós? Não a [sentis] mais do que a sociedade europeia antes de 1848 sentia a atmosfera revolucionária que a envolvia e pressionava de todos os lados.

Há um grande facto, característico deste nosso século XIX, um facto que nenhum partido ousa negar. Por um lado, despontaram para a vida forças industriais e científicas, de que nenhuma época da história humana anterior alguma vez tinha suspeitado. Por outro lado, existem sintomas de decadência que ultrapassam de longe os horrores registados nos últimos tempos do Império Romano.

Nos nossos dias, tudo parece prenhe do seu contrário. Observamos que maquinaria dotada do maravilhoso poder de encurtar e de fazer frutificar o trabalho humano o leva à fome e a um excesso de trabalho. As novas fontes de riqueza transformam-se, por estranho e misterioso encantamento, em fontes de carência. Os triunfos da arte parecem ser comprados à custa da perda do carácter. Ao mesmo ritmo que a humanidade domina a natureza, o homem parece tornar-se escravo de outros homens ou da sua própria infâmia. Mesmo a luz pura da ciência parece incapaz de brilhar a não ser sobre o fundo escuro da ignorância. Todo o nosso engenho e progresso parecem resultar na dotação das forças materiais com vida intelectual e na redução embrutecedora da vida humana a uma força material. Este antagonismo entre a indústria e a ciência modernas, por um lado, e a miséria e a dissolução modernas, por outro; este antagonismo entre os poderes produtivos [productive powers] e as relações sociais da nossa época é um facto palpável, esmagador, e que não é para ser controvertido. Alguns partidos podem lamentar-se disso; outros podem desejar ver-se livres das artes modernas, a fim de se verem livres dos conflitos modernos. Ou podem imaginar que tão assinalável progresso na indústria requer que seja completado por uma igualmente assinalável regressão na política. Pela nossa parte, não nos engana a forma do espírito astucioso que continua a marcar todas estas contradições. Sabemos que, para trabalharem bem, as novas forças da sociedade apenas precisam de ser dominadas por novos homens — e os operários são esses [novos homens]. Eles são tanto uma invenção dos tempos modernos como a própria maquinaria. Nos sinais que desorientam a classe média, a aristocracia e os pobres profetas da regressão, reconhecemos o nosso bom amigo, Robin Goodfellow(1*), a velha toupeira que sabe trabalhar a terra tão rapidamente, esse digno sapador — a Revolução. Os operários ingleses são os primeiros filhos da indústria moderna. Certamente que não serão, então, os últimos a ajudar a revolução social produzida por essa indústria, uma revolução que significa a emancipação da sua própria classe em todo o mundo, [uma revolução] que é tão universal como a dominação do capital e a escravidão assalariada. Eu conheço as lutas heróicas por que a classe operária inglesa passou desde os meados do século passado — lutas menos celebradas, porque são amortalhadas em obscuridade e abafadas pelo historiador da classe média. Para vingar as malfeitorias da classe dominante havia na Idade Média, na Alemanha, um tribunal secreto, chamado "Vehmgericht". Se se visse uma cruz encarnada a marcar uma casa, as pessoas sabiam que o seu proprietário estava condenado pelo "Vehm". Todas as casas da Europa estão hoje marcadas com a misteriosa cruz encarnada. A História é o juiz — o seu executor, o proletário.

Karl Marx (1818-1883)


Notas de Rodapé:

(1*) Robin Goodfellow: ser lendário que, segundo a crença popular inglesa, protegia e ajudava os homens. Vêmo-lo, por exemplo, em acção como Puck na peça de Shakespeare Sonho de Uma Noite de Verão. (Notada edição portuguesa.) (retornar ao texto)

Notas de Fim de Tomo:

Em 14 de Abril de 1856, num banquete em honra do quarto aniversário do jornal cartista The People's Paper, Marx, usando do direito que lhe foi concedido de falar em primeiro lugar, pronunciou um discurso sobre o papel histórico mundial do proletariado. A participação de Marx no aniversário de The People's Paper foi um dos exemplos mais brilhantes da ligação dos fundadores do comunismo científico com os cartistas ingleses, da aspiração de Marx e Engels de exercer uma influência ideológica no proletariado inglês e de apoiar os dirigentes cartistas com o objectivo de fazer ressurgir o movimento operário na Inglaterra numa base nova, socialista.
The People's Paper (O Jornal do Povo): semanário cartista publicado de Maio de 1852 até Junho de 1858 em Londres; entre Outubro de 1852 e Dezembro de 1856 Marx e Engels colaboraram no jornal, ajudando também a redigi-lo. Em Junho de 1858 o jornal passou para as mãos de homens de negócios ingleses.