quinta-feira, março 29, 2012

Ainda Marcuse (Prefácio político de 1966: Eros e Civilização)

Eros e Civilização: o título expressou um pensamento otimista, eufemístico, mesmo positivo, isto é, que as realizações da sociedade industrial avançada habilitariam o homem a inverter o rumo do progresso, a romper a união fatal de produtividade e destruição, de liberdade e repressão — por outras palavras, a aprender a gaya sciencia de como usar a riqueza social para moldar o mundo do homem de acordo com os seus Instintos Vitais, na luta combinada contra os provisores da Morte. Esse otimismo baseava-se no pressuposto de que deixara de prevalecer o fundamento lógico, para a contínua aceitação da dominação, que a carência e a necessidade de labuta só “artificialmente” eram perpetuadas — no interesse de preservar o sistema de dominação. Negligenciei ou minimizei o fato desse fundamento lógico “obsoleto” ter sido amplamente reforçado (se não substituído) por formas ainda mais eficientes de controle social. As próprias forças que tornaram a sociedade capaz de amenizar a luta pela existência serviram para reprimir nos indivíduos a necessidade de tal libertação. Sempre que o elevado nível de vida não basta para reconciliar as pessoas com suas vidas e seus governantes, a “engenharia social” da alma e “ciência de relações humanas” fornecem a necessária catexe libidinal. Na sociedade afluente, as autoridades raramente se vêem forçadas a justificar seu domínio. Fornecem os bens; satisfazem a energia sexual e agressiva de seus súditos. Tal como o inconsciente, cujo poder destrutivo representam com tanto êxito, estão aquém do bem e do mal, e o princípio de contradição não tem lugar na sua lógica.
Como a sociedade afluente depende cada vez mais da ininterrupta produção e consumo do supérfluo, dos novos inventos, do obsoletismo planejado e dos meios de destruição, os indivíduos têm de adaptar-se a esses requisitos de um modo que excede os caminhos tradicionais. O “látego econômico”, mesmo em suas formas mais refinadas, já deixou de ser adequado, ao que parece, para garantir a continuidade da luta pela existência na organização antiquada de hoje, assim como as leis e o patriotismo também já não parecem apropriados para assegurar um apoio popular ativo à cada vez mais perigosa expansão do sistema. A administração científica das necessidades instintivas converteu-se, desde há muito, em fator vital na reprodução do sistema: a mercadoria que tem de ser comprada e usada traduz-se em objetos da libido; e o Inimigo nacional, que tem de ser combatido e odiado, é destorcido e inflado a tal ponto que pode ativar e satisfazer a agressividade na dimensão profunda do inconsciente. A democracia de massa fornece os apetrechos políticos para efetuar-se essa introjeção do Princípio de Realidade; não só permite às pessoas (até um certo ponto) escolherem seus próprios senhores e amos, e participarem (até um certo ponto) no Governo que as governa, como também permite aos senhores e amos desaparecerem por trás do véu tecnológico do aparelho produtivo e destrutivo que eles controlam, e esconderem o preço humano (e material) dos benefícios e conforto concedidos àqueles que colaboram. O povo, eficientemente manipulado e organizado, é livre; a ignorância e a impotência, a heteronomia introjetada, é o preço de sua liberdade.
Não faz sentido falar sobre libertação a homens livres — e somos livres se não pertencemos à minoria oprimida. E não faz sentido falar sobre “repressão excessiva” quando os homens e as mulheres desfrutam mais liberdade sexual que nunca. Mas a verdade é que essa liberdade e satisfação estão transformando a Terra em inferno. Por enquanto, o inferno ainda está concentrado em certos lugares distantes: Vietname, Congo, África do Sul, assim como nos guetos da “sociedade afluente”: no Mississippi e no Alabama, no Harlem. Esses lugares infernais iluminam o todo. É fácil e razoável ver neles, apenas, bolsões de pobreza e miséria numa sociedade em crescimento que é capaz de as eliminar gradualmente e sem uma catástrofe. Essa interpretação pode até ser realista e correta. A questão é: eliminadas a que preço — não em dólares e centavos, mas em vidas humanas e em liberdade humana?
Hesito em empregar a palavra — liberdade — porque é precisamente em nome da liberdade que os crimes contra a humanidade são perpetrados. Essa situação não é certamente nova na História: pobreza e exploração foram produtos da liberdade econômica; repetidamente, povos foram libertados em todo o mundo por seus amos e senhores, e a nova liberdade dessas gentes redundou em submissão não ao império da lei, mas ao império da lei dos outros. O que principiou como submissão pela força cedo se converteu em “servidão voluntária”, colaboração em reproduzir uma sociedade que tornou a servidão cada vez mais compensadora e agradável ao paladar. A reprodução, maior e melhor, dos mesmos sistemas de vida passou a significar, ainda mais nítida e conscientemente, o fechamento daqueles outros sistemas possíveis de vida que poderiam extinguir servos e senhores, assim como a produtividade de repressão.
Hoje em dia, essa união de liberdade e servidão tornou-se “natural” e um veículo do progresso A prosperidade apresenta-se, cada vez mais, como um pré-requisito e um produto marginal de uma produtividade auto-impulsionada, em constante busca de novas saídas para o consumo e a destruição, no espaço, exterior e interior, embora seja impedida de “extravasar” nas áreas de miséria — tanto as internas como as externas. Em contraste com esse amálgama de liberdade e agressão, produção e destruição, a imagem de liberdade humana está deslocada: converte-se em projeto da subversão dessa espécie de progresso. A libertação das necessidades instintivas de paz e tranqüilidade, do Eros “associai” autônomo, pressupõe a emancipação da afluência repressiva: uma inversão no rumo do progresso.
A tese de Eros e Civilização, mais completamente desenvolvida no meu livro One-Dimensional Man, era que o homem só podia evitar a fatalidade de um Estado de Bem-Estar Social através de um Estado Beligerante mediante o estabelecimento de um novo ponto de partida, pelo qual pudesse reconstruir o sistema produtivo sem aquele “ascetismo do mundo interior” que forneceu a base mental para a dominação e a exploração. Essa imagem do homem era a negação determinada do super-homem de Nietzsche: um homem suficientemente inteligente e suficientemente saudável para prescindir de todos os heróis e virtudes heróicas, um homem sem impulsos para viver perigosamente, para enfrentar o desafio; um homem com a boa consciência para fazer da vida um fim em si mesmo, para viver com alegria uma vida sem medo. “Sexualidade polimórfica” foi a expressão que usei para indicar que a nova direção de progresso dependeria completamente de oportunidade de ativar necessidades orgânicas, biológicas, que se encontram reprimidas ou suspensas, isto é, fazer do corpo humano um instrumento de prazer e não de labuta. A velha fórmula, o desenvolvimento das necessidades e faculdades predominantes, pareceu-me inadequada; a emergência de novas necessidades e faculdades, qualitativamente diferentes, pareceu-me ser o pré-requisito e o conteúdo da libertação.
A idéia de um novo Princípio de Realidade baseou-se no pressuposto de que as precondições materiais (técnicas) para o seu desenvolvimento estavam estabelecidas ou podiam ser estabelecidas nas sociedades industriais mais avançadas do nosso tempo. Entendia-se implicitamente que a tradução das capacidades técnicas em realidade significava revolução. Mas o próprio escopo e eficácia da introjeção democrática suprimiu o sujeito histórico, o agente de revolução: as pessoas livres não necessitam de libertação e as oprimidas não são suficientemente fortes para libertarem-se. Essas condições redefinem o conceito de Utopia: a libertação é a mais realista, a mais concreta de todas as possibilidades históricas e, ao mesmo tempo, a mais racionalmente, mais eficazmente reprimida — a possibilidade mais abstrata e remota. Nenhuma filosofia, nenhuma teoria pode desfazer a introjeção democrática dos senhores em seus súditos. Quando, nas sociedades mais ou menos afluentes, a produtividade atingiu um nível em que as massas participam de seus benefícios, e em que a oposição é eficaz e democraticamente “contida”, então o conflito entre senhores e escravos também é eficientemente contido. Ou, melhor, mudou a sua localização social. Existe, e explode, na revolta dos países atrasados contra a intolerável herança do colonialismo e seu prolongamento pelo neocolonialismo. O conceito marxista estipulou que somente aqueles que estavam livres dos benefícios do capitalismo seriam possivelmente capazes de transformá-lo numa sociedade livre; aqueles cuja existência era a própria negação da propriedade capitalista poderiam tornar-se os agentes históricos da libertação. Na arena internacional, o conceito marxista retoma sua plena validade. Na medida em que as sociedades exploradoras tornaram-se potências globais, na medida em que as novas nações independentes converteram-se em campo de batalha para seus interesses, as forças “externas” de rebelião deixaram de ser forças estranhas: são o inimigo no interior do sistema. Isso não faz desses rebeldes os mensageiros da humanidade. Por si mesmos, não são (como o proletariado marxista pouco era) os representantes da liberdade. Também neste caso o conceito marxista se aplica de acordo com o qual o proletariado internacional obteria sua armadura intelectual de fora: o “relâmpago do pensamento” atingiria os “naiven Volksboden”. As idéias grandiosas sobre a união da teoria e da prática não fazem jus aos fracos começos de tal união. Entretanto, a revolta nos países atrasados encontrou uma resposta nos países adiantados, onde a juventude está protestando contra a repressão na afluência e a guerra no estrangeiro.
É revolta contra os falsos pais, falsos professores e falsos heróis — solidariedade com todos os infelizes da Terra: existirá alguma ligação “orgânica” entre as duas facetas do protesto? Parece tratar-se de uma solidariedade quase instintiva. A revolta interna contra a própria pátria parece sobretudo impulsiva, suas metas difíceis de definir: náusea causada pelo “sistema de vida”, revolta como uma questão de higiene física e mental. O corpo contra “a máquina” — não contra o mecanismo construído para tornar a vida mais segura e benigna, para atenuar a crueldade da natureza, mas contra a máquina que sobrepujou o mecanismo: a máquina política, a máquina dos grandes negócios, a máquina cultural e educacional que fundiu benesses e maldições num todo racional. O todo agigantou-se demais, sua coesão tornou-se forte demais, seu funcionamento eficiente demais — o poder do negativo concentrar-se-á nas forças ainda em parte por conquistar, primitivas e elementares? O homem contra a máquina: homens, mulheres e crianças lutando, com os mais primitivos instrumentos, contra a máquina mais brutal e destruidora de todos os tempos e mantendo-a em xeque — a guerra de guerrilhas definirá a revolução do nosso tempo?
O atraso histórico poderá redundar de novo na oportunidade histórica de fazer girar a roda do progresso noutra direção. O superdesenvolvimento técnico e científico fica desmentido quando os bombardeiros equipados de radar, os produtos químicos e as “forças especiais” da sociedade afluente desencadeiam-se sobre os mais pobres da Terra, seus barracos, hospitais e campos de arroz. Os “acidentes” revelam a substância: rasgam o véu tecnológico, sob o qual se ocultavam os verdadeiros podêres. A capacidade de matar e queimar em grandes proporções, e o comportamento mental que lhe é concomitante, são subprodutos do desenvolvimento das forças produtivas, dentro de um sistema de exploração e repressão; parecem essas forças tornar-se tanto mais produtivas quanto mais confortável o sistema vai ficando para os seus privilegiados sujeitos. A sociedade afluente demonstrou agora que é uma sociedade em guerra; se os seus cidadãos não o notaram, as suas vítimas já o perceberam, por certo.
A vantagem histórica das nações mais novas, do seu atraso técnico, talvez seja a de poderem saltar o estágio de sociedade afluente. Os povos atrasados, por sua pobreza e fraqueza, poderão ser forçados a renunciar ao uso agressivo e supérfluo da ciência e da tecnologia, para manterem a engrenagem produtiva à la mesure de l’homme, sob o seu controle, para satisfação e desenvolvimento das necessidades vitais, tanto individuais como coletivas.
Para os países superdesenvolvidos, essa oportunidade seria equivalente à abolição das condições em que a labuta do homem perpetua, como um poder autopropulsor, a sua subordinação à engrenagem produtiva e, com ela, às formas obsoletas de luta pela existência. A abolição dessas formas é, como sempre foi, a tarefa da ação política; mas há uma diferença decisiva na situação presente. Ao passo que as revoluções anteriores acarretaram um desenvolvimento mais amplo e mais racional das forças produtivas, nas sociedades superdesenvolvidas de hoje, porém, revolução significaria a inversão dessa tendência: eliminação do superdesenvolvimento e de sua racionalidade repressiva. A rejeição da produtividade afluente, longe de constituir um compromisso com a pureza, a simplicidade e a “natureza”, poderia ser um indício (e uma arma) de um estágio superior de desenvolvimento humano, baseado nas realizações da sociedade tecnológica. Sendo interrompida a produção de bens supérfluos e destrutivos (um estágio que significaria o fim do capitalismo, em todas as suas formas) — as mutilações somáticas e mentais infligidas ao homem por essa produção seriam eliminadas. Por outras palavras, a configuração do meio, a transformação da natureza, podem ser impulsionadas mais pelos Instintos Vitais liberados do que reprimidos, e a agressão estaria sujeita às suas exigências.
A oportunidade histórica dos países atrasados está na ausência de condições que propiciam a tecnologia e a industrialização exploradoras e repressivas, para fins de produtividade agressiva. O próprio fato de que o Estado beligerante afluente desencadeia o seu poderio aniquilador sobre os países atrasados elucida a grandeza da ameaça. Na revolta dos povos atrasados, as sociedades ricas defrontam-se numa forma elementar e brutal, não só com uma revolta social, na acepção tradicional, mas também com uma revolta instintiva: a aversão biológica. A propagação da guerra de guerrilhas no apogeu do século tecnológico é um acontecimento simbólico: a energia do corpo humano revolta-se contra a repressão intolerável e lança-se contra as máquinas da repressão. Talvez os rebeldes nada saibam a respeito dos métodos de organização de uma sociedade, de edificação de uma sociedade socialista; talvez estejam aterrorizados por seus próprios líderes, que sabem alguma coisa a tal respeito, mas a chocante existência dos rebeldes está em total necessidade de libertação e a sua liberdade é a contradição das sociedades superdesenvolvidas.
A civilização ocidental sempre glorificou o herói, o sacrifício da vida pela cidade, o Estado, a nação; raramente indagou se a cidade estabelecida, o Estado ou a nação eram dignos do sacrifício. O tabu sobre a indiscutível prerrogativa do todo sempre foi mantido e imposto, e tem sido mantido e imposto tanto mais brutalmente quanto mais se supõe que o todo é composto de indivíduos livres. A questão está sendo agora formulada — formulada de fora — e entendida por aqueles que se recusam a fazer o jogo dos afluentes; é a questão de saber se a abolição desse todo não será uma precondição para a emergência de uma cidade, Estado, nação, verdadeiramente humanos.
As probabilidades estão esmagadoramente do lado dos poderes vigentes. O que é romântico não é a avaliação positiva dos movimentos de libertação nos países atrasados, mas a avaliação positiva de suas perspectivas. Não há razão justificativa para que a ciência, a tecnologia e o dinheiro não repitam a tarefa de destruição e, depois, executem a tarefa de reconstrução à sua própria imagem e semelhança. O preço do progresso é terrivelmente alto, mas nós o pagaremos. Não só as vítimas ludibriadas, mas também os seus chefes de Estado assim o afirmam. Entretanto, há fotografias que mostram filas de cadáveres seminus, assim dispostos em honra dos vencedores no Vietname: assemelham-se, em todos os seus detalhes, às cenas de cadáveres mutilados e esquálidos que nos chegaram de Auschwitz e Buchenwald. Nada e ninguém pode jamais pagar por esses feitos, nem superar o sentimento de culpa e remorso que reage praticando novas agressões. Mas a agressão pode voltar-se contra o agressor. O estranho mito de que a ferida aberta só pode ser sarada pela arma que praticou a ferida ainda não foi validado na História: a violência que deflagra a cadeia de violência pode dar início a uma nova cadeia. Entretanto, nessa e contra essa sucessão contínua, a luta prosseguirá. Não é o combate de Eros contra Thanatos, porque também a sociedade estabelecida tem seu Eros: protege, perpetua e amplia a vida. E não é uma vida má para os que se submetem e reprimem. Mas, num balanço geral, o pressuposto é que a agressividade em defesa da vida é menos nociva aos Instintos de Vida do que a agressividade na agressão.
Em defesa da vida: a frase tem um significado explosivo na sociedade afluente. Envolve não só o protesto contra a guerra e a carnificina neocoloniais, a queima de cartão de recrutamento, a luta pelos direitos civis, mas também a recusa em falar a língua morta da afluência, em usar roupas limpas, desfrutar os inventos da afluência, submeter-se à educação para a afluência. A nova boêmia, os beatniks e hipsters, os andarilhos da paz — todos esses “decadentes” passaram agora a ser aquilo que a decadência, provavelmente, sempre foi pobre refúgio da humanidade difamada.
Poderemos falar de uma junção das dimensões erótica e política?
Na e contra a organização terrivelmente eficiente da sociedade afluente, não só o protesto radical, mas até a tentativa de formulação, de articulação, de dar palavras ao protesto, assume uma imaturidade pueril, ridícula. Assim, é ridículo e talvez “lógico” que o Movimento pela Liberdade de Expressão, em Berkeley, terminasse em balbúrdia e brigas entre os participantes, por causa do aparecimento de um cartaz com um palavrão. Talvez seja igualmente ridículo e legítimo ver uma significação mais profunda nos distintivos usados por alguns manifestantes (entre eles, crianças) contra os morticínios do Vietname: Make Love, Not War (Faça Amor, Não Guerra). Por outro lado, contra a nova mocidade que se recusa e rebela, estão os representantes da antiga ordem, que já não são capazes de proteger a existência dela sem a sacrificarem numa obra de destruição, desperdício e poluição. Neles se incluem agora os representantes da mão-de-obra sindicalizada — e corretamente, na medida em que o emprego, no quadro da prosperidade capitalista, depende da contínua defesa do sistema social estabelecido.
Poderá o resultado, num futuro próximo, oferecer dúvidas? O povo, a maioria das pessoas na sociedade afluente, está do lado daquilo que é — não com o que podia e devia ser. E a ordem estabelecida é suficientemente forte e eficiente para justificar essa adesão e garantir a sua continuidade. Contudo, o próprio vigor e eficiência dessa ordem podem-se tornar fatores de desintegração. A perpetuação da cada vez mais obsoleta necessidade de trabalho em tempo integral (mesmo numa forma muito reduzida) exigirá o crescente desperdício de recursos, a criação de empregos e serviços cada vez mais desnecessários e o crescimento do setor militar ou destrutivo. Guerras mantidas em sucessivas escaladas, permanente preparação para uma conflagração bélica e administração total podem muito bem bastar para manter o povo sob controle, mas à custa de alterar a moralidade de que a sociedade ainda depende. O progresso técnico, em si mesmo uma necessidade para a manutenção da sociedade estabelecida, fomenta necessidades e faculdades que são antagônicas da organização social do trabalho, sobre a qual o sistema está edificado. No processo de automação, o valor do produto social é determinado em grau cada vez mais diminuto pelo tempo de trabalho necessário para a sua produção. Conseqüentemente, a verdadeira necessidade social de mão-de-obra produtiva declina, e o vácuo tem de ser preenchido por atividades improdutivas. Um montante cada vez maior do trabalho efetivamente realizado torna-se supérfluo, dispensável, sem significado. Embora essas atividades possam ser sustentadas e até multiplicadas sob uma administração total, parece existir um teto para o seu aumento. Esse teto, ou limite superior, seria atingido quando a mais-valia criada pelo trabalho produtivo deixa de ser suficiente para compensar o trabalho não-produtivo. Uma progressiva redução de mão-de-obra parece ser inevitável, e o sistema, para fazer face a essa eventualidade, tem de prover à criação de ocupações sem trabalho; tem de desenvolver necessidades que transcendem a economia de mercado e que podem até ser incompatíveis com êle.
A sociedade afluente está-se preparando, à sua maneira, para essa eventualidade, organizando “o desejo de beleza e os anseios da comunidade”, a renovação do “contato com a natureza”, o enriquecimento do espírito e as honras à “criação pela criação”. O falso timbre de tais proclamações é indicativo do fato de que, dentro do sistema estabelecido, essas aspirações são transladadas para as atividades culturais administradas, patrocinadas pelo Governo e as grandes companhias — um prolongamento de seu braço executivo, penetrando na alma das massas. É quase impossível reconhecer nas aspirações assim definidas as de Eros e sua transformação autônoma de um meio e de uma existência repressivos. Se essas finalidades tiverem de ser satisfeitas sem um conflito irreconciliável com os requisitos da economia de mercado, deverão ser satisfeitas dentro do quadro estrutural do comércio e do lucro. Mas este gênero de satisfação equivaleria a uma negação, pois a energia erótica dos Instintos de Vida não pode ser libertada sob as condições desumanizantes da afluência lucrativa. Certo, o conflito entre o necessário desenvolvimento das necessidades não-econômicas, que validaria a idéia da abolição do trabalho (a vida como um fim em si), por um lado, e a conveniência em manter a necessidade de ganhar a vida, por outro lado, é muito maneável, especialmente enquanto o Inimigo interno e externo puder servir como força propulsora, escorando a defesa do status quo. Contudo, o conflito pode tornar-se explosivo se fôr acompanhado e agravado por perspectivas de mudança na própria base da sociedade industrial avançada, nomeadamente o gradual desmoronamento da empresa capitalista em processo de automação.
Entrementes, há coisas a fazer. O sistema tem seu ponto mais frágil justamente onde apresenta sua força mais brutal: a escalada do seu potencial militar (que parece impor a atualização periódica, com interrupções cada vez mais curtas de paz e de prontidão). Essa tendência só parece reversível sob as mais fortes pressões, e tal reversão ativaria as zonas de perigo na estrutura social: a sua conversão num sistema capitalista “normal” é dificilmente imaginável sem uma séria crise e transformações econômicas e políticas arrasadoras. Hoje, a oposição à guerra e à intervenção militar ataca nas raízes: revolta-se contra aqueles cujo domínio econômico e político depende da contínua (e ampliada) reprodução do estabelecimento militar, seus “multiplicadores” e a política que precisa dessa reprodução. Esses interesses não são difíceis de identificar, e a guerra contra eles não requer mísseis, bombas e napalm. Mas exige, efetivamente, algo que é muito mais difícil de produzir: a divulgação de conhecimentos livres de censura e manipulação, consciência e, sobretudo, a recusa organizada em continuar trabalhando com os instrumentos materiais e intelectuais que estão sendo agora usados contra o homem — para a defesa da liberdade e prosperidade daqueles que dominam o resto.
Na medida em que o trabalhismo, a mão-de-obra sindicalizada, atua em defesa do status quo, e na medida em que a quota-parte de trabalho humano no processo material de produção declina, as aptidões e capacidades intelectuais tornam-se fatores sociais e econômicos. Hoje, a recusa organizada dos cientistas, matemáticos, técnicos, psicólogos industriais e pesquisadores de opinião pública poderá muito bem consumar o que uma greve, mesmo uma greve em grande escala, já não pode conseguir, mas conseguia noutros tempos, isto é, o começo da reversão, a preparação do terreno para a ação política. Que a idéia pareça profundamente irrealista não reduz a responsabilidade política subentendida na posição e na função do intelectual na sociedade industrial contemporânea. A recusa do intelectual pode encontrar apoio noutro catalisador, a recusa instintiva entre os jovens em protesto. É a vida deles que está em jogo e, se não a deles, pelo menos a saúde mental e capacidade de funcionamento deles como seres humanos livres de mutilações. O protesto dos jovens continuará porque é uma necessidade biológica. “Por natureza”, a juventude está na primeira linha dos que vivem e lutam por Eros contra a Morte e contra uma civilização que se esforça por encurtar o “atalho para a morte”, embora controlando os meios capazes de alongar esse percurso. Mas, na sociedade administrativa, a necessidade biológica não redunda imediatamente em ação; a organização exige contra-organização. Hoje, a luta pela vida, a luta por Eros, é a luta política.
Herbert Marcuse (1898-1979). Prefácio político. Eros e Civilização.

terça-feira, março 27, 2012

A produção e o elemento 'animalidade' do homem

A história do industrialismo sempre foi (e hoje o é de forma mais acentuada e rigorosa) uma luta contínua contra o elemento 'animalidade' do homem, um processo ininterrupto, muitas vezes doloroso e sangrento, de sujeição dos instintos (naturais, isto é, animalescos e primitivos) a sempre novos, complexos e rígidos hábitos e normas de ordem, exatidão, precisão, que tornem possível as formas sempre mais complexas de vida coletiva, que são a consequência necessária do desenvolvimento do industrialismo. Esta luta é imposta do exterior e até agora os resultados obtidos, embora de grande valor prático imediato, são em grande parte puramente mecânicos, não se transformaram numa 'segunda natureza'. Mas, todo novo modo de vida, no período em que se impõe a luta contra o velho, não foi sempre durante certo tempo o resultado de uma compressão mecânica? Inclusive os instintos que hoje devem ser superados como ainda bastante 'animalescos' constituíram, na realidade, um progresso notável em relação aos anteriores, ainda mais primitivos: quem poderia enumerar o 'custo', em vidas humanas e em dolorosas sujeições dos instintos, da passagem do nomadismo à vida sedentária e agrícola? (...)
Até agora, todas as mudanças do modo de ser e viver se verificaram através da coerção brutal, através do domínio de um grupo social sobre todas as forças produtivas da sociedade: a seleção ou 'educação' do homem apto para os novos tipos de civilização, para as novas formas de produção e de trabalho, foi realizada com o emprego de brutalidades inauditas, lançando no inferno das subclasses os débeis e os refratários, ou eliminando-os simplesmente.
Antonio Gramsci (1891-1937). Americanismo e fordismo.

segunda-feira, março 19, 2012

A equação da pós-modernidade

De Ricardo Musse:

Os trabalhos de Fredric Jameson sobre o pós-modernismo outorgaram legitimidade intelectual e despertaram interesse por uma série de sintomas que pareciam apenas características de uma moda efêmera. Ao contrário de seus predecessores, entre os quais se destacam Lyotard e Habermas, Jameson procurou entender o pós-modernismo não só como teoria epistemológica ou estética, mas também como fenômeno social. Abordando a pós-modernidade como signo cultural de um novo estágio na história do capitalismo, consumou uma inflexão de esquerda num conceito e numa discussão cujas origens remetiam à manutenção da ordem existente, como mostrou com propriedade Perry Anderson, em "As Origens da Pós-Modernidade" (Ed. Jorge Zahar). Em sua obra mais sistemática e ambiciosa sobre o assunto, "Pós-Modernismo - A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio" (ed. Ática), de 1991, Jameson procura, num afã totalizante de inspiração hegeliana, estabelecer a topografia dessa nova sensibilidade, moldada, segundo ele, pelo esmaecimento do sentido histórico, pela espacialização do que outrora era temporal e pela transmutação, no processo de reificação, das coisas em imagens. Análise formal e histórica Mas, apesar da intensidade da análise, havia algo de insatisfatório nesse livro. Primeiro, certa dificuldade em seguir o preceito marxista, reiterado por ele próprio, de apontar a investigação para as contradições da nova ordem social. Depois, uma insuficiente utilização, na determinação específica do funcionamento em ato dessa nova lógica cultural, de seu principal achado teórico, a tese de que a estrutura do capitalismo tardio promove uma dissolução da autonomia da esfera cultural, gerando uma prodigiosa expansão até o ponto em que tudo na vida social -do valor econômico e do poder do Estado às práticas individuais e à estrutura da psique- passa a ser considerado cultural. Tudo isso assoma ao primeiro plano do livro, num visível descompasso entre análise formal e histórica.
Para superar esses impasses, Jameson seguiu a pista -aberta, mas não desenvolvida naquela obra- segundo a qual a descrição e a decodificação de uma época pós-moderna nada mais foram do que uma precoce e insuficiente tentativa de compreender a nova fase do capitalismo. A virada de Jameson pode ser documentada em um artigo seu publicado no número especial da revista "Monthly Review", dedicado ao pós-modernismo (editado em livro como "Em Defesa da História", ed. Jorge Zahar).
Enquanto todos os participantes seguiam a vereda aberta por ele, procurando identificar a lógica cultural da sociedade atual, Jameson, por sua vez, procurava entender -na mesma chave de antes, tomando-a como um fenômeno cultural sintomático da nova fase do capitalismo- a moda intelectual subsequente: a globalização. "A Cultura do Dinheiro", recém-lançado pela ed. Vozes, congrega seis ensaios, três deles pinçados do livro "Cultural Turn" (ed. Verso, EUA), dois publicados posteriormente na "New Left Review".
Nesse movimento em que desloca a ênfase do pós-modernismo para a globalização, da cultura para a economia, Jameson encontrou o que faltava em seu livro de 1991, uma adequada descrição daquilo que nomeia como terceiro estágio do capitalismo. As análises de Ernest Mandel, em "O Capitalismo Tardio" (ed. Abril) -um livro de 1972, redigido no momento da inflexão que conduziu o capitalismo a uma nova fase-, cedem lugar à recente teoria de Giovanni Arrighi, exposta principalmente em "O Longo Século 20" (ed. Contraponto, 1996).
Na versão de Arrighi, os movimentos do capitalismo, descontínuos e em perpétua expansão, se cristalizam em um esquema cíclico que se desloca ao longo de nações e espaços geográficos distintos: a hegemonia migrou das cidades italianas para a Holanda, daí para a Inglaterra e, no século 20, para os EUA.
Mas o que interessou a Jameson, particularmente, foi a descrição do movimento interno de cada ciclo, uma tríade em que primeiro ocorre "a implantação de capital que busca investimentos numa região nova; em seguida, o desenvolvimento produtivo da região em termos de indústrias e manufaturas; e, finalmente, uma desterritorialização do capital na indústria pesada para possibilitar sua reprodução e multiplicação na especulação financeira". Assim, o que geralmente se denomina globalização seria apenas um aspecto de um processo mais profundo, o ingresso do capitalismo no terceiro estágio, de expansão financeira.
Com esse diagnóstico do presente histórico, Jameson recompõe alguns fios que pareciam soltos em suas análises. A abstração inerente ao capitalismo financeiro possibilita uma equalização entre análise histórica e formal. A lógica cultural do presente não se apresenta mais como um fechado universo foucaultiano, mas como expressão, na esteira da tradição marxista, da dialética da modernidade. Por fim, a tese da colonização do real pela cultura, simultânea à subordinação da produção cultural à lógica da mercadoria, pode ser desdobrada em todas as suas implicações.
Não se trata apenas de restabelecer, em outro patamar, a conexão entre economia e cultura, desplugada desde o declínio do marxismo ocidental em meados dos anos 70, mas também de precisar, à luz de um novo contexto, a função da crítica. O predomínio do capital financeiro intensificou a dissolução da autonomia do estético, já prevista por Adorno e Horkheimer no conceito de indústria cultural, a tal ponto que inviabilizou o projeto comum de artistas modernistas e marxistas ocidentais de expressarem as contradições inerentes à modernidade.
No momento atual, a associação, a reciprocidade entre crítica cultural e crítica social, a possibilidade de "pensar dialeticamente a evolução do capitalismo como um progresso e uma catástrofe ao mesmo tempo" parece ter se tornado uma tarefa solitária da crítica.
A Cultura do Dinheiro 208 págs. de Fredric Jameson. Trad. Marcos César Soares e Maria Elisa Cevasco. Ed. Vozes (r. Frei Luís, 100, CEP 25689-900, Petrópolis, RJ, tel. 0/xx/ 24/4237-5112).
Folha de São Paulo, 15 de abril de 2001.

sexta-feira, março 16, 2012

Utopia e engajamento

Entrevista de Susan Buck-Morss a Willi Bolle, Elvis Cesar Bonassa e Fernanda Pitta
No encerramento do último “International Walter Benjamin Congress”, em Amsterdã (de 24 a 26 de julho de 1997), Susan Buck-Morss provocou polêmica entre os participantes ao concluir sua conferência “Revolutionary time: the Vanguard and the Avantgarde” com um ataque à falta de compromissos políticos dos intelectuais na universidade. Professora da Cornell University (EUA), é autora de, entre outros, Origin of negative dialectics (1977) e Dialectics of seeing (1989). Ao lado de Martin Jay, Buck- Morss é considerada uma das principais especialistas norte-americanas na obra dos autores da assim chamada Escola de Frankfurt. Na entrevista a seguir, ela retoma temas apresentados em sua conferência, fala sobre seu projeto de releitura de Hegel e comenta a obra de Adorno e Benjamin.

Sua recente pesquisa sobre Hegel pretende investigar o significado político de alguns de seus conceitos filosóficos para a época em que foram concebidos, com ênfase na dialética senhor-escravo. Você poderia explicar melhor essa abordagem?
Estou tentando pensar seriamente o fato de virmos estudando o passado com antolhos eurocêntricos e disciplinares, e também o fato de que os atores históricos desse passado não eram, eles mesmos, tão cegos quanto somos. Hegel era um ávido leitor de jornais, atualizado com a imprensa inglesa tanto quanto com a alemã, além de vivamente interessado pela Revolução Francesa e pelos acontecimentos políticos que eclodiam nas outras nações. É pouco provável que ele, ao conceber a dialética senhor-escravo, não tivesse em mente a existência de escravos reais em países reais (como, por exemplo, nas colônias caribenhas) ou que esses escravos, como o seu escravo filosófico, não fossem capazes de se rebelar. 1803 é a data da revolução haitiana e é também quando a temática do senhor-escravo aparece pela primeira vez nos escritos de Hegel. Minha abordagem lança mão do princípio da montagem, justapondo retalhos da história – normalmente mantidos separados no modo em que o passado nos aparece – a fim de ter uma imagem diferente das origens do presente. É um modo de libertar os fatos do passado para que possam ser usados em outras constelações no presente.
De que maneira a nova aproximação de Hegel proposta por você muda a interpretação tradicional da filosofia hegeliana?
“Hegel” é entendido como uma filosofia, não como um filósofo (um ser vivo, uma personagem histórica). Com isso, é dada à sua palavra uma autoridade que hoje em dia traz consigo toda hegemonia eurocêntrica por detrás. Ao percebermos que Hegel está descrevendo condições históricas reais (não somente a escravidão na América Latina ou a decretação do fim da escravidão durante a Revolução Francesa – com o seu reestabelecimento, por Napoleão, nas colônias –, mas também a libertação dos servos na Europa Oriental e mesmo a servidão contratada, típica das colônias britânicas), sua filosofia torna- se legível como um comentário da época. E, entretanto, a simultaneidade desses acontecimentos históricos não se adequa à narrativa hegeliana da História Universal – que era seu próximo projeto filosófico depois da Fenomenologia do espírito e que é um documento fundador do pensamento eurocêntrico. A atual importância política dessa leitura é que ela contribui para minar o discurso do “desenvolvimento”, do “progresso” ou “atraso” histórico. Todas as partes do planeta estão no tempo presente – do mesmo modo que, em 1800, a escravidão no Caribe era um fato da história européia, não algum resíduo “pré-histórico” africano, como Hegel tentou argumentar na Filosofia da História, para tornar convincente sua teoria do Weltgeist.
Você afirma que Hegel não falava tão abstratamente quanto os intérpretes contemporâneos tentam mostrar. Isso quer dizer que esses conceitos filosóficos são também escolhas políticas? Ao dirigir seus estudos atuais para o pensamento político na América Latina, que relação você estabelece com sua leitura de Hegel? A dialética senhor-escravo pode ser usada como metáfora para a política latino-americana?
É curioso notar que a “libertação” da servidão como metáfora básica para o pensamento político moderno europeu torna-se hegemônica precisamente no momento em que a escravidão real transforma-se no fundamento da produção de um novo modo de capitalismo (exploração do trabalho em função de lucros teoricamente infinitos). Não é que Hegel “escolheu” uma metáfora da escravidão, mas que nós esquecemos a realidade que estava por detrás dela. Se alguém hoje falasse em revolução nos termos de uma explosão nuclear, imediatamente saberíamos que a metáfora se refere a uma certa realidade, e que essa realidade deveria ser discutida ao consideramos o significado do termo.

O interesse de sua pesquisa parece ter se deslocado da ex-União Soviética para a América Latina. Qual o significado dessa mudança?
Com a dissolução do bloco soviético – e isso não pode ser encarado como uma metáfora, mas sim como um fato –, um certo discurso também se desfez. A distância entre ricos e pobres, por exemplo, nunca foi tão grande; mas a única linguagem de que dispúnhamos para falar a respeito está em ruínas. Daí a necessidade de pegar os fragmentos, alguns fragmentos, e tentar reuni-los em novas constelações. Esse é o propósito de passar da União Soviética para Hegel e o Haiti. Realmente não importa para onde olhamos ou com quais fragmentos trabalhamos – há sempre algo a ser salvaguardado, e um novo modo de reorientarmos a linguagem e a política. Não me parece de grande ajuda dizer: está bem, tivemos a “modernidade” e ela está acabada, agora estamos “na” pós-modernidade – como se a história se movesse numa progressão ao longo dessas épocas... Isso não passa de um resíduo da fantasia hegeliana da História Universal, do qual devemos abrir mão. Em outras palavras: temos ainda o passado cheio de “fatos” e acontecimentos e tudo o mais, e somos obrigados a lidar com ele sem a ajuda de uma narrativa filosófica da história que o explique como um processo total.
Recolher os fragmentos, fazer novas constelações. Essa é uma tarefa política para os intelectuais?
Sim, já que quase todo trabalho intelectual é, de alguma maneira, relacionado com o passado, e já que é inegável que a maneira pela qual os fragmentos do passado têm sido organizados a fim de produzir a ilusão de um progresso contínuo foi criticada devastadoramente pelos próprios fatos da história. Estamos sentados, como a Melancolia de Dürer, rodeados por todos esses fragmentos de conhecimento, e precisamos juntá-los de alguma maneira, de um modo que tornem possível a prática política. Redimir o passado não deve ser entendido como uma tarefa demasiadamente mística ou nostálgica (não estou tentando mimetizar o lado nostálgico de Benjamin aqui), mas simplesmente aceitar que o passado está em ruínas e que, entretanto, não temos nada além do passado para “ler”, se quisermos nos orientar no presente – pois não existe nenhum “futuro” no sentido cosmológico-temporal em que Hegel (e também Marx e Lenin) acreditava. Tais critérios benjaminianos de reordenação do passado se distinguem também dos da Ecole des Annales, por exemplo. Esta se via fazendo história, ao passo que Benjamin estava fazendo política/filosofia (ele não as separava) por meio da história, ao ler os fragmentos históricos de uma nova maneira. Há ainda muito da atitude do historiador profissional na Escola dos Annales – em demasia, eu diria, não no sentido de que as fontes sejam importantes (elas realmente o são), mas na filosofia da verdade que opera nos escritos da Escola. Descobrir como o passado “realmente foi” é uma busca historicista. Benjamin, pelo contrário, estava interessado em como o passado pode fornecer uma experiência no presente, ou melhor, como o passado pode se tornar uma fonte de iluminação para o presente, abrindo espaço para a transformação política.
Diante da atual cena intelectual presente na Universidade, sua proposta não corre o risco de ecoar no vazio? Não é crescente o número de intelectuais sem quaisquer interesses políticos?
Dizer que os intelectuais de hoje não têm preocupações políticas não quer dizer que eles não se importam. É como dizer que alguém não está amando no momento e que, por conseguinte, ele não se importa com amor, ou que não haveria uma mudança radical naquilo com que ele se importa caso se apaixonasse amanhã. Peguem como exemplo o fenômeno da morte da princesa Diana (independentemente do que se possa dizer cinicamente sobre ela ou a monarquia, ou mesmo sobre a mídia) e compare com a morte da Irmã Teresa. Chegou-se a comentar que essa pobre freira era na verdade uma oportunista querendo ser beatificada. Não deixa de ser interessante que uma aura de santidade possa ser construída ao redor de uma celebridade e uma motivação egoísta de realização pessoal possa ser atribuída a uma freira. Mas a mistura de santidade e de oportunismo cínico indica que ambos, pensamento crítico e pensamento utópico, estão vivos e passam bem. Não importa o quanto sua expressão seja distorcida pela mídia cultural: há uma enorme quantidade de fantasia utópica à espera de um meio de expressão político e progressista – o que me faz otimista. O “passado”, como vocês sabem, está cheio de todos os tipos de munições que podem ser usadas contra estruturas de exploração no presente – estruturas que também podem ser intelectuais. Devemos ter em mente o seguinte raciocínio (e Max Weber é um exemplo disso): tentar evitar a exploração intelectual por meio da transformação da política em tabu pode ser um tiro pela culatra...
 
A fantasia utópica, como esta ao redor da morte da princesa Diana, não pode ser apenas um fenômeno de mídia, sem nenhum conteúdo emancipatório para o presente? A Dialética do esclarecimento de Adorno e Horkheimer fez críticas severas à fantasia utópica promovida pela indústria cultural, já que seu contéudo é incapaz até mesmo de manter as recusas que se encontram nas ambigüidades das “promessas de felicidade” feitas pela arte.
As críticas de Adorno e Horkheimer são muito válidas. Entretanto, o problema não reside na fantasia utópica propriamente, mas nos abusos feitos quando ela é manipulada segundo certos fins. Como o próprio Adorno disse, precisamos de mais razão esclarecida, e não menos. Benjamin observou que nem todos os textos são legíveis em todos os tempos, mas é possível que um texto que tenha se tornado impenetrável subitamente se abra para uma nova leitura – por meio da justaposição de Hegel e Haiti, por exemplo.
Utilizar conceitos benjaminianos, extrapolar a partir deles – e com eles – para constelações do mundo atual – por que isso foi considerado um tabu durante as discussões sobre sua conferência no Congresso Internacional Walter Benjamin, em Amsterdã?
É um problema de adequação a fronteiras – o tabu contra a transformação do trabalho acadêmico em algo realmente relevante, em termos políticos, para o que se passa do lado de fora da Academia nos dias de hoje... Mas fronteiras são muito preocupantes porque elas nos fazem pensar nas coisas como contidas em si mesmas, quando elas de fato não o são. Não acho que o trabalho filológico não seja valioso, mas gostaria de voltar ao ponto: é uma insensatez proibir a discussão acerca do mundo atual, para além das conferências e salas de aula, quando discutimos Benjamin ou quem quer que seja. Mas deixem-me perguntar: o que vocês acham que está em jogo em uma Associação Internacional Walter Benjamin?

Um dos propósitos de reunir intelectuais para o estudo da obra de Walter Benjamin deveria ser o de fornecer leituras acuradas de seus textos, leituras que atentem para o que ele efetivamente escreveu e também para a diferença histórica existente entre seus textos e a realidade histórica que nos cerca e que tentamos decifrar.
Sim, decifrar. A tarefa é decifrar tanto o passado quanto o presente; ao traduzir o passado no presente, revivemos seu conteúdo. A justaposição entre passado e presente muda seus contornos. Ambas são tarefas de decifração.

É possível que Benjamin pensasse a fantasia utópica de maneira diferente da de Adorno e Horkheimer? Se pensarmos em seus escritos sobre Fourier, por exemplo, ou mesmo sobre o cinema, a aparência é de que realmente são concepções diferentes.
Eu considero que os três pensadores afirmavam a fantasia utópica, e também os três estavam tremendamente conscientes dos modos pelos quais essa fantasia pode ser manipulada pelo poder.
 
Mas não há diferenças significativas entre eles precisamente quanto a esse ponto? As diferentes concepções sobre o papel utópico do cinema, por exemplo, e seu uso para a politização das massas – para Adorno, a fantasia utópica seria somente uma utopia negativa, que se converte em seu contrário quando se tenta usá-la para dar base a qualquer prática coletiva. Por outro lado, Benjamin, influenciado talvez por Brecht, defendia os conteúdos emancipatórios do cinema, pois eles poderiam trazer às massas uma sensibilidade diferente, revolucionária, reordenando os elementos postos em um dado momento histórico, dando a eles uma nova configuração.
Certamente diferenças existem, mas não acho útil aqui tentar tomar partido de um ou de outro. Não há nada intrínseco ao cinema que o torne politicamente impotente. Pelo contrário, o cinema é fonte de técnicas de justaposição e tradução, cuja importância acabamos de mencionar. Como você discute o papel da fantasia utópica em seu mais recente livro, Dreamworld and Catastrophe? Uma das coisas que tentei mostrar em Dreamworld and Catastrophe foi que os sonhos utópicos dos EUA e da URSS eram bastante similares. De fato, surpreendentemente similares e ao mesmo tempo distantes de nossa própria maneira de pensar deste fim de século. Vejam o caso de amor com a indústria pesada, por exemplo, que deveria trazer fartura material para as massas. Ele era baseado na real ignorância das catástrofes ecológicas daí resultantes, mas ao menos havia uma preocupação com as massas, ou pelo menos se falava em cuidar delas. Vocês sabiam que o mesmo escritório de arquitetura, o de Albert Khan, que construiu para a Ford a fábrica de motores River Rouge nos EUA, foi comissionado por Stálin para construir fábricas automotivas soviéticas como parte do primeiro plano qüinqüenal? Portanto, não é apenas uma questão de sonhos similares – eles tinham um mesmo sonho. O sonho coletivo de um futuro emancipado que se traduzia, na realidade, em uma economia fortemente baseada na indústria de guerra. O problema é essa palavra: “futuro”. O pensamento utópico deve dizer respeito à felicidade no presente – este é o lado fourierista no pensamento de Benjamin. A valorização da felicidade sensorial, da felicidade material e corpórea, é algo que os membros da Escola de Frankfurt tinham em comum.

Para encerrar, você poderia falar um pouco sobre a permanência da Dialética do esclarecimento em seu 50o aniversário?
Minha leitura da Dialética do esclarecimento difere da interpretação predominante. O livro fala claramente que o esclarecimento não é páreo para o capitalismo (o termo aparece em diversos momentos-chave do livro), e nesse sentido o livro é “marxista” de uma forma francamente não apologética. Ao mesmo tempo (e essa é a grande contribuição do ensaio de Benjamin sobre “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”), assim como a revolução capitalista dos meios de produção libera um potencial socialista que contradiz as relações capitalistas de produção, o mesmo é verdade para a produção de objetos culturais (o potencial democrático do cinema, por exemplo). Portanto, se o esclarecimento não vai nunca, por si só, acabar com o capitalismo, ele pode ao menos nos chamar a atenção para as relações no interior do capitalismo que impedem seu próprio potencial utópico. Um exemplo perfeito é a tentativa vã de manter direitos sobre a “propriedade” cultural na época das máquinas de xerox e das cópias em vídeo ou cassete. A máquina xerox é um emblema de socialismo plantado em todo escritório de corporação. O ciberespaço é outro exemplo. Ao surgir, ele não é ainda um espaço de relações capitalistas – é preciso transformá-lo em tal. Cabe a nós, enquanto produtores de cultura, tentar resistir a essas tentativas. Talvez nossa própria “conversa virtual” possa ser parte desse processo. É agradável pensar assim.
A entrevista foi concedida on line em outubro de 97 via Internet (com o apoio técnico de Fábio Tagnin, do Universo Online) e revista posteriormente pela entrevistada.
Tradução: Fernanda Pitta e Marcio Sattin.
Publicado em Cadernos de Filosofia Alemã 3, PP. 61-68, 1997 62
Retirado do site Antivalor.

quinta-feira, março 15, 2012

Veja vê vantagens na leitura de lixo

Por Janer Cristaldo:

Quem acredita em tudo que lê, melhor não tivesse aprendido a ler, diz um provérbio oriental.
Vou mais longe. Quem se nutre de best-sellers, nem devia ter aprendido a ler. Ainda há pouco, eu afirmava que fora da leitura não há salvação. Em meus dias de universidade, uma aluna me perguntava. Professor, é verdade que a leitura pode transformar a gente? Ora, é uma das poucas coisas que realmente transformam, eu diria. Pessoas, viagens, encontros, doenças, adversidades sempre mexem com nossas vidas. Mas a leitura continua sendo o método mais eficaz de mutação.
Mas há leituras e leituras. Uma coisa é ler Harry Potter e outra é ler Crime e Castigo. Conheço inclusive leitores contumazes – e os conheço de perto - que lêem talvez até mais do que eu leio, mas não fazem distinção alguma entre Rowling e Dostoievski. Crime e Castigo? Ah, sim a história daquele estudante que matou uma velhota? E estamos conversados. Como se fosse entrecho da novela das oito. As reflexões do russo sobre a vida e a morte, sobre o homem, Deus e a sociedade, escorrem como água entre os dedos. Ou seja, ler nem sempre é sinônimo de aquisição de cultura.
A revista Veja desta semana dá capa ao último best-seller tupiniquim, o padre Marcelo Rossi, com o título “O milagre da leitura”, enfocando Ágape, livro que já vendeu 7,5 milhões de exemplares. Em editorial, a revista saúda “os resultados auspiciosos do censo encomendado ao Upea pela Câmara Brasileira do Livro. Os dados mostram que, de 2009 para 2010, o número de exemplares impressos no Brasil bateu em quase 500 milhões, com um crescimento de 23%.”
Desse montante, 230 milhões pertencem ao que chamo de indústria textil – assim mesmo, sem acento, a indústria do texto. 144 milhões são comprados pelo governo e distribuídos gratuitamente às escolas, o que explica em boa parte a perenidade de autores que há muito estão mortos e bem mortos. E explica também a ojeriza dos jovens à leitura.
Muito bem. Mas que está lendo o brasileiro? Para começar, o tal de Ágape, do padre Marcelo Rossi. Ladeado por Zíbia Gasparetto, escritora espírita cujos livros são ditados por entidades de luz e já venderam 16 milhões de exemplares. Mais Jô Soares, que mistura o imperador D. Pedro II com Sarah Bernhardt e Sherlock Holmes, mais um violino Stradivarius. Mais outros ilustres nomes das letras pátrias, dos quais jamais ouvi falar: Thalita Rodrigues, crônica do cotidiano dos jovens; Ana Beatriz da Silva, série sobre as angústias da mente; Roberto Shinyashiki, o guru corporativo que fala sobre felicidade. Jô à parte, tudo auto-ajuda, esse gênero abominável da literatura, que vende falsas esperanças para os pobres de espírito.
Isso que Paulo Coelho não foi arrolado na reportagem, por não ter publicado título novo desde 2010. E sem falar em Gabriel Chalita, autor polímata que em seus 43 anos escreveu mais de 60 livros. Dos quais ninguém lembra título algum.
O Brasil está cheio de escritores que vendem milhões de livros e dos quais jamais ouvimos falar. Alguém conhece algum título – ou pelo menos ouviu falar – do padre Lauro Trevisan, de Santa Maria? Pois o homem – leio na Wikipédia – é autor de mais de 40 livros, todos eles best-sellers a nível internacional, com mais de dois milhões de exemplares vendidos. Em Portugal, as suas obras Apresse o Passo Que o Mundo Está a Mudar (2001), Como Usar o Seu Poder para Qualquer Coisa (2002), Conhece-te e Conhecerás o Teu Poder (2002), Regressão de Idade para a Libertação Total (2001) e Relax com Programação Positiva (2001) estão publicadas pela Editora Pergaminho. Os gaúchos têm uma celebridade em seus pagos e a desconhecem. Estes livros, você não os vê nem em livrarias. Exceto, é claro, na livraria que o padre administra em Santa Maria. São vendidos a partir de conferências e cursos de auto-ajuda.
Quem me acompanha, sabe de minha ojeriza aos best-sellers. Se um livro vendeu de repente um milhão de exemplares, este é um de meus critérios para não comprá-lo. Não existe tanta gente inteligente no mundo. Não existe um único best-seller em minha biblioteca. Aliás, quando saio atrás de um título, tenho de trotar entre uma livraria e outra, pois trata-se de livro geralmente pouco divulgado.
Os brasileiros estão lendo mais, diz Veja. Ora, de que adianta ler mais, quando o que se lê é isso? “O intelecto só precisa de uma faísca, mesmo que fraca, para acender o fogo da curiosidade e abrir uma clareira acolhedora que dará início ao interminável processo de enriquecimento do mundo interior. Qualquer livro pode ser essa faísca”. A frase soa a texto de auto-ajuda. Pelo jeito, o redator se deixou contaminar ao lidar com tanto lixo.
Paulo Coelho ou padre Marcelo, Zíbia ou Trevisan, Thalita ou Chalita não produzem faísca alguma, não acendem fogo algum nem abrem clareira alguma. Quem lê essa gente jamais vai chegar a Poe ou Pessoa, a Dostoievski ou Orwell, a Cervantes ou Nietzsche.
Não vejo vantagem alguma neste maior número de brasileiros que lêem, quando o que se lê é lixo.

quarta-feira, março 14, 2012

Beginners

Há tempos ensaio dizer algo sobre os filmes que vejo. Até agora só saíram rabiscos e notas esparsas sem muita consistência e encanto. O que eu posso fazer? Esse é um drama que eu divido com vocês. Não sabemos mais o que dizer sobre nada. É difícil expressar aquilo que você não sabe como sentir. Perdemos esse ancestral poder de comunicação com o mundo. Mas, enfim, depois escrevo sobre isso.
Aproveito os dedos afoitos para escrever poucas linhas sobre um filme que vi. Chama-se Beginners (Toda forma de amor).
Não direi nada no plano cinematográfico e técnico da coisa. Talvez eu até arrisque alguma coisa nos próximos posts. O importante é que me pareceu um filme bom. Gostaria de deixar tal impressão registrada aqui.
É uma história muito bem contada e está montada da forma como o cinema precisa ser.
Os personagens são bem construídos. Os dramas são reais, tangíveis. Não há exageros.
O diretor constrói uma narrativa complexa sobre a vida e sobre os frágeis relacionamentos humanos.
Essa ida à locadora valeu a pena.
Diretor: Mike Mills
Elenco: Ewan McGregor, Christopher Plummer, Mélanie Laurent, Goran Visnjic, Kai Lennox, Mary Page Keller, Keegan Boos, China Shavers, Melissa Tang, Amanda Payton
Produção: Miranda de Pencier, Lars Knudsen, Leslie Urdang, Jay Van Hoy, Dean Vanech
Roteiro: Mike Mills
Fotografia: Kasper Tuxen
Trilha Sonora: Roger Neill, Dave Palmer, Brian Reitzell
Duração: 105 min.
Ano: 2010
País: EUA
Gênero: Comédia Dramática
Cor: Colorido
Distribuidora: Universal
Estúdio: Olympus Pictures / Roos Film

terça-feira, março 13, 2012

Mito e história - semana de 22

Este ano comemoram-se os noventa anos da Semana de Arte Moderna, marco inicial do nosso Modernismo, realizada nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo. Como acontece em todas as datas redondas, diversos lançamentos somam-se ao extenso legado de obras consagradas ao tema. 1922: a semana que não terminou, de Marcos Augusto Gonçalves, editorialista e repórter da Folha de São Paulo, reconstrói, na linguagem fluente e ágil do jornalismo, o contexto e os preparativos para o evento, além de destacar os momentos mais importantes e traçar um perfil dos protagonistas, tudo amparado em ampla investigação, enriquecida por excelente iconografia.
Apesar de não haver uma preocupação em reavaliar criticamente a Semana, as informações reunidas pelo autor permitem preencher certas zonas de sombra, ao propiciar maior nitidez sobre as relações entre os autores modernistas e a elite paulista, num processo paradoxal que instituiu o modernismo não como ruptura, mas como um jogo conciliatório com o conservadorismo que supostamente o movimento deveria combater. Se na Europa a arte moderna precisou conquistar terreno à margem dos salões oficiais, no Brasil veio à cena “pela via oficial e conduzida pela mão do poder”.
As duas partes iniciais do livro concentram-se em apresentar os preparativos da Semana. Só na reduzida parte final o autor descreve o que de fato ocorreu nos três dias considerados decisivos para a arte brasileira.
Os anos anteriores a 1922 viram nascer uma insatisfação com a literatura no Brasil. Toda a tradição realista, naturalista, parnasiana e simbolista sobrevivia como fantasmas disputando um território abandonado. O contato com a cultura europeia - realizado por intermédio da leitura de textos inovadores, por meio das viagens de Anita Malfatti, Graça Aranha, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, entre outros, e pela vinda para o Brasil de artistas europeus, como Brecheret - expunha o fosso que afastava nossos autores do amplo movimento de renovação estética proposto pelas vanguardas. Essa percepção manifestou-se na polarização entre futurismo x passadismo, pois o primeiro termo, posteriormente renegado, possuía então uma significação muito mais vasta, representando a ruptura com o atraso e com a tradição acadêmica. O fato de Mário de Andrade rejeitar o rótulo de “futurista” tanto significou um afastamento da proposta de Marinetti, quanto assinalou um caráter complacente em relação à tradição criticada.
Ao abordar as relações com a tradição na gênese da Semana, o autor é bem preciso: “Se havia negação na atitude polêmica e agressiva do grupo, a estética prendia-se ainda ao passado. E o evento, programado para gerar repercussão, parecia combinar muito bem com os interesses da elite paulista de autovalorização histórica e hegemonia intelectual”.
Não há como fugir à força da Pauliceia, à presença do ufanismo paulistano. A Semana foi trabalhada desde o início por intelectuais paulistas, com a ajuda de representantes da burguesia cafeeira, sob o influxo de Paulo Prado, misto de escritor e empresário. Todos perceberam a necessidade de o movimento ultrapassar os limites do provincianismo. A presença de figuras do cenário do Rio de Janeiro contribuiu para dar uma dimensão nacional ao evento. No entanto, a Semana assinalou um deslocamento cultural só tornado possível, de acordo com o crítico Antônio Cândido, porque “meia dúzia de intelectuais renovadores da Pauliceia, por estarem mais afastados do campo gravitacional do poder literário e artístico, teriam menos a perder”.
O deslocamento promoveu visões diferentes, confrontando leituras paulistas e não paulistas. A Semana, assim, passou a ser exaltada, combatida, negada, ao sabor de circunstâncias diversas, dificultando uma avaliação crítica mais acurada.
Por outro lado, algumas manifestações literárias com feições modernas, como a “escrita art déco”, estudada por Beatriz Resende, foram praticamente apagadas do cânone por um modernismo depurado de qualquer elemento que não correspondesse à visão do núcleo articulador da Semana.
A efeméride poderia ter passado à história como Semana Villa-Lobos. O espaço reservado à literatura, diminuto em relação à música, assumiu a forma de conferências: “A emoção estética na arte moderna”, de Graça Aranha, palestras de Menotti del Picchia, de Mário de Andrade e de Ronald de Carvalho.
A leitura de poemas, após a palestra de Menotti, já faz parte do nosso folclore literário. Assim que Oswald subiu ao palco, houve vaias e manifestações de desagrado. Tudo indica, no entanto, que os modernistas alugaram uma claque para encenar o escândalo: “Depoimentos de participantes do evento sugerem que o receio do fiasco os teria levado a incentivar alguns conhecidos a puxar a vaia no segundo dia”. Um golpe de mestre ou de marketing, fato já apontado por Mário da Silva Brito, no indispensável Antecedentes da Semana de Arte Moderna, primeiro volume da História do modernismo brasileiro, obra que infelizmente não teve continuidade.
Livros, ensaios, reportagens, artigos, dissertações e teses ajudaram a construir uma visão multifacetada do marco inicial do modernismo. O livro de Marco Augusto Gonçalves serve para atenuar a visão acrítica sobre um mito da cultura oficial brasileira. A reconstituição passo a passo dos acontecimentos questiona verdades aceitas como incontestes, lacunas, deturpações. Torna-se uma referência importante para fugir a um evento reinventado constantemente ao longo do tempo pelos próprios participantes e por parcela significativa da crítica. A Semana de Arte Moderna é um mito móvel, informe, afetivo. Não pode ser apreendida apenas pela leitura de sua programação, pois tanto guarda organização quanto improviso, vale tanto pela presença quanto por ausências e esquecimento. Nela, no entanto, dificilmente encontramos as marcas de ruptura. Foi preciso um trabalho notável para reinventá-la como dias extraordinários de inovações estéticas e de propostas radicais.
Por ser uma manifestação flutuante, autêntico ponto de cruzamento de linhas de chegada e de partida, assumiu uma dimensão extraordinária, inscrita como nascente do pensamento e da sensibilidade que ainda nos regem. A leitura do livro ajuda a desmontar fantasias sobre os três dias mágicos e revolucionários de noventa anos atrás, apaga a lenda para nos restituir a história. Não obstante, a Semana nunca será aprisionada ao ano de 1922. Sempre viverá miticamente em fuga, o que só aumenta o desejo de querer inaugurá-los. Estranha semana, seus dias só transcorreram em anos posteriores.

José Antônio Cavalcanti é poeta, professor do Colégio Pedro II e Doutor em Ciência da Literatura – UFRJ.

segunda-feira, março 12, 2012

A segunda morte do flâneur

Outro dia, eu revirava uma pilha de antigos artigos sobre o futuro da internet quando um pequeno e obscuro ensaio de 1998 – publicado num site chamado Ceramics Today, por incrível que pareça – chamou minha atenção. Celebrando o “flâneur cibernético”, o texto falava de um futuro digital brilhante, cheio de mistério e espontaneidade, que aguardava este intrigante usuário da rede. Essa visão do amanhã parecia inevitável numa época na qual “o que a cidade e a rua representaram para o flâneur, a internet e a superestrada da informação passaram a representar para o flâneur cibernético”.
Curioso, decidi desvendar o que ocorreu com o flâneur online. Eles são poucos e difíceis de encontrar, enquanto a própria prática de flanar na rede parece estar em desacordo com o mundo das mídias sociais. O que foi que deu errado? Será que devemos nos preocupar? Conhecer a história do flanar é uma boa maneira de começar a responder estas perguntas. Graças ao poeta francês Charles Baudelaire e ao crítico alemão Walter Benjamin, que viam no flâneur um emblema da modernidade, a figura dele (tratava-se em geral de homens) é associada à Paris do século 19. O flâneur passeava lentamente por ruas e galerias – animadas fileiras de lojas cobertas por telhados de vidro – para cultivar o que Honoré de Balzac chamou de “gastronomia do olhar”.
Embora não ocultasse deliberadamente sua identidade, o flâneur preferia passear incógnito. “A arte que o flâneur domina é a de observar sem ser flagrado”, destacou certa vez o sociólogo polonês Zygmunt Bauman. O flâneur não era antissocial – ele precisava das multidões para desenvolver sua atividade –, mas não se misturava aos demais, preferindo saborear a solidão. E tinha para si todo o tempo do mundo: falava-se em flâneurs que levavam tartarugas para passear.
Ele entrava nas galerias de lojas, mas não cedia ao consumismo; a galeria era antes um atalho para uma rica experiência sensorial – e só depois um templo do consumo. O objetivo era observar, banhar-se na multidão, absorvendo ruídos, o caos, a heterogeneidade, o cosmopolitismo. Ocasionalmente, narrava o que via – investigando tanto a própria intimidade quanto o mundo exterior – na forma de ensaios curtos para jornais diários.
É fácil ver o motivo pelo qual o flanar online pareceu tão atraente nos primeiros dias da web. A ideia de explorar o ciberespaço como território virgem, ainda não colonizado por governos e empresas, era romântica; este romantismo aparecia até no nome dos primeiros browsers (o Explorador da Internet e o Navegante da Paisagem da Rede).
Comunidades como GeoCities e Tripod foram as galerias digitais daquele período, lidando com aquilo que havia de mais obscuro e mais peculiar, sem que houvesse hierarquia organizando-as por popularidade ou valor comercial. Naquele então, o eBay era mais esquisito do que a maioria dos mercados de pulgas; um passeio por suas prateleiras virtuais era mais agradável do que comprar de fato algum dos artigos oferecidos no site.
Em meados da década de 90, parecia que a internet poderia levar a um inesperado renascimento do flanar. Mas quem sonhava com uma web que serviria como refúgio de boêmios hedonistas e idiossincráticos, provavelmente não sabia a causa mortis do flâneur original.
Avenida. Na segunda metade do século 19, Paris passou por profundas mudanças. As reformas na arquitetura e no planejamento urbano promovidas pelo barão Haussmann no governo de Napoleão III foram particularmente importantes: a demolição de estreitas ruas medievais, o estabelecimento de praças amplas (construídas em parte para melhorar a higiene e em parte para impedir barricadas revolucionárias), a proliferação da iluminação de rua a gás e as crescentes vantagens de passar o tempo em ambientes fechados transformaram radicalmente a cidade.
A tecnologia e as mudanças sociais também tiveram seus efeitos. O tráfego de carros na rua fez de passeios contemplativos uma atividade perigosa. Galerias foram substituídas por lojas de departamentos. A racionalização da vida urbana conduziu os flâneurs ao subterrâneo, obrigando-os a se refugiar num tipo de flanar interno, cujo apogeu é o exílio autoimposto de Marcel Proust em seu quarto (situado, voilà, no bulevar Haussmann).
Algo parecido aconteceu na internet. Transcendendo sua brincalhona identidade original, a rede não é mais para passear – virou lugar de cumprir tarefas. Ninguém mais navega. A popularidade dos aplicativos – que conduzem àquilo que queremos sem que seja necessário abrir o browser, faz do flanar online algo cada vez menos provável.
O fato de uma parte tão preponderante da atividade contemporânea na rede envolver compras não ajuda em nada. Passear pelo Groupon não é tão divertido quanto caminhar por uma galeria, eletrônica ou não.
O ritmo da internet mudou. Dez anos atrás, um conceito como o tempo real, em que cada tweet e atualização de status é automaticamente indexada, atualizada e respondida, era impensável. Hoje, este é o termo do momento no Vale do Silício. Não se trata de algo surpreendente: as pessoas gostam de velocidade e eficiência.
Mas as páginas de outrora, que abriam lentamente ao som de estranhos ruídos do modem, tinham um inusitado lado poético. Ocasionalmente, a lentidão chegava a nos alertar para o fato de que estávamos sentados diante de um computador. Bem, esta tartaruga não existe mais.
Enquanto isso, o Google, ao tentar de organizar a informação do mundo, vem tornando desnecessária a visita a sites individuais assim como, gerações atrás, o catálogo da Sears tornou desnecessária a ida a lojas físicas. A atual ambição do Google é responder nossas perguntas – sobre o clima, as taxas de câmbio, o jogo de ontem – ele mesmo, sem levar a nenhum outro site. Digite a pergunta, e a resposta aparece no topo da lista de resultados.
(O impacto de atalhos deste tipo nas buscas não interessa aqui; quem imagina a busca por informações em termos tão puramente instrumentais, enxergando a internet como pouco mais do que um gigante FAQ, dificilmente criará espaços que convidem ao flanar online.)
Novo barão. Mas, se há um barão Haussmann na internet hoje, ele é o Facebook. Tudo aquilo que torna possível o flanar online – solidão e individualidade, anonimato e opacidade, mistério e ambivalência, curiosidade e o desejo de correr riscos – está sob o ataque desta empresa. E não estamos falando de uma empresa qualquer: com 845 milhões de usuários ativos espalhados pelo mundo, dá para dizer que aonde quer que o Facebook vá, a internet irá atrás.
É fácil culpar o modelo de negócios do Facebook (a perda do anonimato permite que ele lucre mais com os anunciantes), mas o problema é mais embaixo. O Facebook parece acreditar que os peculiares elementos que tornam possível o flanar devem ser eliminados. “Queremos que tudo seja social”, disse Sheryl Sandberg, diretora de operações do Facebook, em entrevista ao programa de TV Charlie Rose alguns meses atrás. Na prática, isso foi explicado pelo chefe dela, Mark Zuckerberg, no mesmo programa. “Preferimos ir ao cinema sozinhos ou com amigos?”, perguntou, respondendo imediatamente: “Com amigos”.
As implicações são claras: o Facebook quer construir uma internet na qual ver filmes, ouvir música, ler livros e até mesmo navegar sejam atividades desempenhadas não só abertamente como social e colaborativamente. Por meio de parcerias com empresas como Spotify e Netflix, ele cria poderosos incentivos que fariam os usuários adotarem ansiosos a tirania do “social”, a tal ponto que desempenhar qualquer uma dessas atividades sozinho seria impossível.
Ora, se Zuckerberg de fato acredita no que disse sobre cinema, há uma longa lista de filmes que eu gostaria de sugerir aos amigos dele. Por que ele não leva a turma para ver Satantango, sete horas de filme de arte branco e preto do húngaro Bela Tarr? A resposta: se fizéssemos uma pesquisa de opinião entre os amigos dele, ou um determinado grupo numeroso de pessoas, Satantango seria quase sempre derrotado por um título que pode não ser o filme preferido por todos, mas que também não vai incomodar ninguém. Eis um exemplo da tirania do social.
Além disso, não parece óbvio que consumir sozinho o que a arte tem de melhor é uma experiência qualitativamente diferente de consumi-lo socialmente? Qual é o motivo de tamanho medo da solidão? Para Zuckerberg, “é melhor estar conectado às pessoas. A vida fica mais rica”. É esta ideia de que a experiência individual seria forma inferior à coletiva que subjaz no “compartilhamento sem atrito” do Facebook – a ideia de que, de agora em diante, teremos de nos preocupar só com o que não queremos compartilhar; tudo o mais será compartilhado automaticamente.
Para tanto, o Facebook encoraja seus parceiros a construir aplicativos que compartilham automaticamente tudo o que fizermos: os textos que lemos, as músicas que ouvimos, os vídeos que assistimos. Nem é preciso dizer que o compartilhamento sem atrito também ajuda o Facebook a nos vender aos anunciantes, ajudando esses anunciantes a vender seus produtos para nós.
Isto poderia até valer a pena se o compartilhamento sem atrito incrementasse a experiência na rede; afinal, até mesmo o flâneur do século 19 enfrentou cartazes de anúncios nas suas caminhadas. Mas uma coisa é encontrar uma matéria interessante e compartilhá-la com os amigos. Outra bem diferente é inundar os amigos com tudo o que passa pelo seu browser ou app, na esperança de que eles escolham algo interessante pelo caminho.
Pior: quando esse sistema de compartilhamento sem atrito for plenamente operacional, é provável todas as notícias sejam lidas no Facebook, sem que seja preciso sair dos domínios do site para visitar o restante da rede. Vários veículos jornalísticos, como Guardian e Washington Post, já têm aplicativos s que permitem aos usuários ler artigos sem precisar visitar as páginas do veículo.
Como explicou o popular blogueiro Robert Scoble, que escreve sobre tecnologia, num texto recente a respeito do compartilhamento sem atrito, “neste novo mundo, basta abrir o Facebook e tudo o que lhe interessa será exibido sequencialmente na tela”.
É justamente isso que está matando o flanar online: o traço que marca o passeio do flâneur é o fato de ele não saber o que é que lhe interessa mais. Nas palavras do autor alemão Franz Hessel, que colaborava ocasionalmente com Walter Benjamin, “para flanar, é preciso que não haja nada muito definido na cabeça”. Comparado ao universo determinista do Facebook, até o pouco criativo slogan da Microsoft nos anos 90 – “Where do you want to go today?”, ou “Aonde você quer ir hoje?” – soa subversivo e emocionante.
Quem faria essa pergunta tola na era do Facebook? De acordo com Benjamin, a triste figura do homem-sanduíche foi a última encarnação do flâneur. Num certo sentido, todos nós viramos homens-sanduíche, caminhando pelas ruas do Facebook com anúncios invisíveis pendendo de nossas identidades eletrônicas. A única diferença é que a natureza digital da informação permitiu que consumíssemos alegremente canções, filmes e livros ao mesmo tempo em que os anunciamos, desavisados. /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Evgeny Morozov é autor do livro The Net Delusion: The Dark Side of Internet Freedom (A desilusão da rede: o lado obscuro da liberdade online)