terça-feira, maio 28, 2013

Pessimista inquieto?! Sim, obrigado.


Para combater o totalitarismo, basta compreender uma única coisa: o totalitarismo é a negação mais radical da liberdade. No entanto, a negação da liberdade é comum a todas as tiranias e não é de importância fundamental para compreender a natureza peculiar do totalitarismo. Contudo, quem não se mobiliza quando a liberdade está sob ameaça jamais se mobilizará por coisa alguma. Mesmo as admoestações morais, os protestos contra crimes sem precedentes na história, e não previstos nos Dez Mandamentos, serão de pouca valia. A própria existência de movimentos totalitários no mundo não totalitário, isto é, o apelo que o totalitarismo exerce sobre as pessoas que dispõem de todas as informações e que são alertadas diariamente contra ele, dá provas eloquentes da falência de toda a estrutura da moralidade, de todo o corpo de mandamentos e proibições que tradicionalmente traduziam e encarnavam as ideias fundamentais de liberdade e justiça em termos de relações sociais e instituições políticas. 
Mesmo assim, muitos duvidam que essa falência seja real. Essas pessoas costumam achar que aconteceu algum acidente e que agora o dever é restaurar a ordem antiga, apelar ao antigo conhecimento do certo e do errado, mobilizar os velhos instintos de ordem e segurança. Rotulam quem fala e pensa de outra maneira de "profeta da catástrofe", cuja sombra ameaça toldar o sol que se levanta sobre o bem e o mal por toda a eternidade. 
O cerne da questão é que os "profetas da catástrofe", os pessimistas históricos do final do século XIX e começo do século XX, de Burckhardt a Splengler, foram ultrapassados pela concretude de catástrofes de dimensões e horrores jamais previstos. No entanto, alguns desdobramentos poderiam ser e foram previstos. Embora pouco se tenham feito ouvir no século XIX, essas previsões se encontram no século XVIII, e foram negligenciadas porque nada poderia justificá-las. Vale a pena saber, por exemplo, o que Kant tinha a dizer, em 1793, sobre o "equilíbrio de poder" como solução para os conflitos do sistema do Estado nacional europeu: "O chamado equilíbrio dos poderes na Europa é como a casa de Swift, que foi construída numa harmonia tão perfeita com todas as leis do equilíbrio que, quando um pássaro pousou sobre ela, ruiu imediatamente − um simples fantasma". O equilíbrio alcançado pelo sistema de Estados nacionais não foi um mero fantasma, mas ruiu exatamente conforme as previsões de Kant.
Hannah Arendt (1906-1975). Sobre a natureza do totalitarismo: uma tentativa de compreensão.

terça-feira, maio 07, 2013

Autobiografia de Bertrand Russell


Prólogo


Três paixões, simples, mas irresistivelmente fortes, governaram-me a vida: o anseio de amor, a busca do conhecimento e a dolorosa piedade pelo sofrimento da humanidade. Tais paixões, como grandes vendavais, impeliram-me para aqui e acolá, em curso instável, por sobre profundo oceano de angústia, chegando às raias do desespero.

Busquei, primeiro, o amor, porque ele produz êxtase - um êxtase tão grande que, não raro, eu sacrificava todo o resto da minha vida por umas poucas horas dessa alegria. Ambicionava-o, ainda, porque o amor nos liberta da solidão - essa solidão terrível através da qual a nossa trêmule percepção observa, além dos limites do mundo, esse abismo frio e exânime. Busquei-o, finalmente, porque vi na união do amor, numa miniatura mística, algo que prefigurava a visão que os santos e os poetas imaginavam. Eis o que busquei e, embora isso possa parecer demasiado bom para a vida humana, foi isso que - afinal - encontrei.

Com paixão igual, busquei o conhecimento. Eu queria compreender o coração dos homens. Gostaria de saber porque cintilam as estrelas. E procurei apreender a força pitagórica pela qual o número permanece acima do fluxo dos acontecimentos. Um pouco disto, mas não muito, eu o consegui.

Amor e conhecimento, até ao ponto em que são possíveis, conduzem para o alto, rumo ao céu. Mas a piedade sempre me trazia de volta à terra. Ecos de gritos de dor ecoavam em meu coração. Crianças famintas, vítimas torturadas por opressores, velhos desvalidos a constituir um fardo para seus filhos, e todo o mundo de solidão, pobreza e sofrimentos, convertem numa irrisão o que deveria ser a vida humana. Anseio por aliviar o mal, mas não posso, e também sofro.

Eis o que tem sido a minha vida. Tenho-a considerado digna de ser vivida e, de bom grado, tornaria a vivê-la, se me fosse dada tal oportunidade.

Bertrand Russell (1872-1970)