quarta-feira, agosto 17, 2005

Artigo publicado no Boletim n°48 Revista da Área de Humanas

“Os suspeitos de sempre”: o anticomunismo brasileiro em dois momentos

Francisco César Alves Ferraz e Leonardo de Lucas da Silva Domingues


A cena do filme é bem conhecida. Numa cidade do Marrocos francês, encontravam-se, durante a Segunda Guerra Mundial, todos os tipos de refugiados do nazismo, aguardando na cidade uma forma, legal ou ilegal, de fugir para os Estados Unidos. Enquanto aguardavam a oportunidade, essas pessoas se envolviam com os escroques locais e/ou aderiam à clandestina seção local da resistência antifascista. Sua vida não era nada fácil. A cada pequena alteração da ordem pública, o corrupto chefe de polícia da cidade dava a ordem básica aos seus subordinados: “prendam os suspeitos de sempre”. E dezenas de pessoas eram levadas aos cárceres locais.

Toda sociedade possui seus “suspeitos de sempre”. Mas no Ocidente, e particularmente no Brasil, os “suspeitos de sempre” possuíam opiniões políticas geralmente bem definidas: eram os comunistas e aqueles que, segundo as autoridades de repressão política, inadvertidamente favoreciam com suas atitudes ou omissões, sua expansão. O objetivo deste artigo é fazer uma reflexão, a partir da obra de Rodrigo Patto de Sá Motta , sobre algumas das estruturas e práticas das políticas anticomunistas no Brasil.

As bases para o anticomunismo no país são anteriores aos impactos da revolução russa de 1917. Numa sociedade recém emergida da escravidão, patronato e autoridades sempre encaravam os protestos e manifestações políticas das classes trabalhadoras de maneira semelhante: a questão social deveria ser tratada como questão de polícia, e com a violência de praxe dispensada aos tumultuadores da ordem social. Idéias socialistas, anarquistas e comunistas encontraram inicialmente dificuldades para disseminar-se nas massas proletárias urbanas brasileiras, marcadas por séculos de latifúndio, patriarcalismo e escravidão. “Isso é coisa de imigrante”, acusavam as autoridades. E tome perseguições aos elementos “nocivos”, “movidos por ideologias alienígenas”, que visavam corromper o povo honesto, ordeiro e trabalhador.

Assim, enquanto o anticomunismo nos principais centros capitalistas enfrentava trabalhadores alfabetizados e com tradições de luta que perpassavam gerações, a versão brasileira do anticomunismo combinava a violência senhorial da ordem social extinta com a violência patronal da nova ordem. Direitos que já eram desfrutados por trabalhadores europeus e norte-americanos eram negados aos trabalhadores brasileiros. Protestos proletários aceitos ou tolerados nos centros capitalistas eram considerados, pela elite brasileira, grave subversão à ordem. É sobre estas bases que o anticomunismo no país ganha força, a partir do sucesso da revolução russa de 1917.

A imagem era apocalíptica. O mal que assolava o Oriente estava prestes a desembarcar em costas brasileiras. O cheiro da ameaça vermelha pairava no ar. Seres imorais, malignos e dotados de patologias malévolas estavam se infiltrando, se alastrando, trazendo consigo a doutrina satânica do império do poder das trevas. Esses malfeitores covardes iriam escravizar nosso povo, promovendo estupros, assassinatos e a destruição da ordem. Sem piedade e humanidade, os bestiais traiçoeiros levariam o pecado em suas insígnias e, indo contra nossos bons costumes, iriam incentivar o divórcio, o amor livre e o aborto. A evocação da foice e o martelo, por fim, traria uma nuvem carregada de pesadelos transubstanciados na forma de um dragão vermelho, de um monstro alado de sete cabeças que pretendia destruir o bem, a pureza e a verdade.

O apocalipse estava anunciado e os heréticos inimigos da religião estavam preparados para a guerra. Do outro lado da batalha estava a união sagrada: uma aliança entre integralistas, liberalistas e católicos (munidos de rosários e imagens de Nossa Senhora de Fátima) que, apesar de suas divergências, tinham um inimigo em comum: o comunismo.

Este é o cenário apresentado por Motta, no seu livro sobre a história do anticomunismo no Brasil. O anticomunismo é aqui tratado como um dos fatores primordiais que refletiriam duas épocas de potencial centralização do poder, 1935-1937 e 1961-1964, duas conjunturas de exaltação social e acirramento ideológico intensos. E não por mera coincidência, a “ameaça vermelha” foi utilizada como pretexto para instaurar e legitimar dois períodos de dramática ruptura institucional: o Estado Novo e o Golpe Militar.

O autor faz sua análise partindo dos primórdios do anticomunismo no Brasil, período que ele sinaliza entre 1917-1935. O primeiro grande fato e o maior deles é a Revolução bolchevique. Seria dentro desse contexto que o comunismo se concretizaria e tomaria dimensão mundial, o que marcaria uma época de profundas crises, algumas delas devido ao fim da guerra e outras oriundas da crise de 1929.

Nesse momento (até 1930), a ameaça comunista era considerada bem remota, tinha mais a ver com o velho mundo a qual pertencia. Para os brasileiros, não se passava de uma realidade distante, apesar da ocorrência de muitas greves, certas agitações políticas e também do crescimento, na estrutura organizacional e na influência na organização política de alguns setores da sociedade, do Partido Comunista do Brasil (PCB).

A preocupação das autoridades de plantão aumentou quando os comunistas começaram a exibir sua capacidade de articulação com outros grupos políticos, como os socialistas, alguns liberais antifascistas e os militares, principalmente no Exército, culminando com a liderança comunista na Aliança Nacional Libertadora (ANL). Conseqüentemente, os grupos políticos à direita não tiveram outra escolha a não ser propagar uma ofensiva aos “vermelhos”. O levante comunista frustrado, em novembro de 1935, “facilitou” seu trabalho, e proporcionou uma “caça às bruxas” sem precedentes . Um Tribunal de Segurança Nacional foi instituído e os direitos civis das democracias liberais foram desprezados. Prisões arbitrárias, torturas, assassinatos e deportações de militantes comunistas estrangeiros constituíram o efeito mais imediato do levante fracassado. Mas o pior estava por vir. Sob o signo do perigo vermelho, o Exército toma para si a bandeira anticomunista, apelando para a imagem forjada de dupla traição dos militares “vermelhos”: à pátria (estariam a serviço de uma potência estrangeira) e aos companheiros (os teriam assassinado desarmados, enquanto estavam adormecidos em suas camas). Cria-se o mito da “Intentona Comunista”. Não importa que os processos levados a cabo pelos próprios tribunais militares tivessem desmentido essa versão. O mito institucionalizou-se e foi rememorado pela instituição militar até o fim da década de 80.

Mitos, contudo, somente se enraízam se contarem com participação das sociedades nas quais eles se inscrevem. E o terreno para a satanização do comunismo era fértil, no país. Para as representações acerca da “ameaça vermelha”, uniram-se três matrizes ideológicas básicas e tradicionais: o catolicismo, o nacionalismo e o liberalismo. A Igreja Católica assumiu o embate como uma luta entre o bem e o mal, Cristo versus Anticristo, Roma versus Moscou, o poder da fé contra o comunismo ateu. Com certeza era a mais dedicada, a mais influente e melhor estruturada forma de ataque. Objetivava renovar a confiança e hegemonia no quadro político-social brasileiro que detinha em outras épocas. Muito abalada desde a Proclamação da República e seu distanciamento com o Estado, na luta anticomunista a Igreja correu atrás do prejuízo e mostrou a reafirmação do poder eclesiástico. Outra matriz importante foi o nacionalismo: centralizador e tradicional, foi originário de modelos conservadores do séc XIX. Enfatizava a defesa da ordem e a integração nacional, repudiava as posições internacionalistas dos comunistas (“o bolchevismo apátrida”) e, dentre seus membros, participavam militares das Forças Armadas e militantes da Ação Integralista Brasileira (AIB). O Liberalismo, por fim, acenava com a defesa dos princípios a propriedade privada e a democracia. Conseguiu contribuir com a propaganda anticomunista através de críticas ao intervencionismo estatal e a supressão de liberdades individuais. Como as liberdades individuais e coletivas costumam ser as primeiras vítimas dos regimes autoritários baseados no anticomunismo , a crítica liberal ao comunismo mostra claramente seus limites, e usualmente, constitui o menos significativo movimento contra o “mal vermelho”.

Esses são os alicerces da complexa construção de representações que potencializaram os soviéticos como os seres mais perversos do planeta. Para isso, a fértil imaginação humana os apresentou como demônios, como agentes patológicos, como uma terrível ameaça estrangeira que nos levaria à imoralidade. Menções de natureza diversa como “o polvo vermelho e seus tentáculos”, “lobo moscovita”, “filhos das trevas”, “carrapatos vermelhos”, “micróbio comunista” começam a ser cotidianas. E vem ainda a temática da moral com o mais sensacional arsenal de alusões a comunistas, responsabilizando-os por orgias, estupros, incestos e até pela “socialização de mulheres”. Isso, sem falar nas representações depreciativas que foram construídas em relação à União Soviética, à “Intentona Comunista” e a Luiz Carlos Prestes.

Poucas fontes poderiam documentar tão bem essas construções como a iconografia anticomunista. Motta interpreta um variado acervo de imagens anticomunistas e as divide em temas que vão desde o comunismo satânico até representações menos metafísicas, como a influência internacional e as disputas eleitorais. São imagens de forte apelação, com mensagens de grande impacto. Profanação de igrejas, rituais satânicos, destruição de crucifixos, assassinos sanguinários e estupradores fazem parte dessa seleção.

O público não recebe tais imagens e mensagens passivamente. A sociedade civil organizada entra neste contexto como aliada fiel aos órgãos de repressão do Estado. Dezenas de grupos surgem, com as mais variadas atuações possíveis: da formação da Cruzada Brasileira Anticomunista (CBA), ligada à Marinha, à adesão a organismos internacionais, com a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), composta por militantes católicos de extrema direita. Juntos, a CBA (militares) e a TFP (religiosos) formam o tronco do anticomunismo brasileiro. Quanto à parte mais “suja” do combate aos esquerdistas, os responsáveis são as organizações terroristas. Por isso, Motta se vê na necessidade de fazer um apanhado geral sobre elas, trazendo principalmente as ações do Movimento Anticomunista (MAC) e do Comando de Caça aos Comunistas (CCC).

Para dar legitimidade a todas essas ações, foi montada uma verdadeira “indústria” do anticomunismo, tentando manipular a população e tirar proveito do terror implantado. Muitos desejavam auferir vantagens com a “ameaça”: órgãos da imprensa, grupos e líderes políticos, a igreja, os órgãos de repressão. É claro que havia sólidas convicções individuais na maioria dos anticomunistas brasileiros. No entanto, é inegável que as vantagens de ser anticomunista, em termos de conquista de poder sobre outros grupos de pessoas e mesmo em termos materiais, fazia da militância anticomunista algo bastante atraente . O oportunismo político era prática comum entre alguns líderes e somente o fato de se acusar alguém de subversão, já bastava para assegurar ambições conquistadas através de penalidades impostas a muitos desafetos ou concorrentes .

Em Motta, dois grandes momentos históricos têm uma análise mais detalhada. O período compreendido entre 1935-1937 é caracterizador da primeira grande “onda” anticomunista. Do levante de 35 até o Estado Novo, a ideologia marxista foi o pretexto chave para a centralização do poder, a repressão e as torturas. Tudo foi legitimado em nome do combate ao inimigo ateu. Motta destaca ainda, nesse contexto, o papel dos órgãos de propaganda e a “descoberta” do Plano Cohen, cuja falsidade é tão grotesca quanto sua aceitação pelas elites políticas brasileiras, veladamente ansiosas pelo fechamento institucional.

A segunda conjuntura destacada é a de 1961-1964, período marcado por um anticomunismo mais refinado e por uma época de profunda agitação político-sociocultural. A politização e mobilização mais aprofundada das classes trabalhadoras urbanas, bem como a crescente organização dos trabalhadores rurais, exigiam estratégias de enfrentamento ao perigo vermelho mais complexas. A crise da renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, ofereceu à esquerda e aos anticomunistas um ensaio de enfrentamento. A partir de então, não haveria mais espaços para amadorismos. Financiados por generosas contribuições de empresariais nacionais e multinacionais, aglutinados em instituições aparentemente sem finalidades golpistas, como o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPÊS) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), elites políticas, empresariais, intelectuais e militares preparavam e executavam suas estratégias de ação de classe . A campanha ideológica avançou em jornais, revistas, rádios, televisão, cinejornais, etc. Títulos como “UNE: instrumento de subversão”, “Cuba: nação independente ou satélite?”, “Como os vermelhos preparam uma arruaça”, “Governo: empreendedores de comunismo”, “Do comunismo de Karl Marx ao Muro de Berlim”, ganharam as livrarias e bancas de jornais e revistas, em edições acessíveis a todos os bolsos . A Igreja ofereceu de bom grado sua colaboração, em aliança com várias entidades anticomunistas femininas, culminando com a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, em março de 1964.
Golpes, porém, não se fazem apenas com palavras. Setores estratégicos das forças armadas, principalmente no Exército, estavam articulados com as forças golpistas supra citadas, mas não ousavam avançar contra o governo Goulart, temendo uma divisão irremediável na instituição militar, que poderia ter como conseqüência uma guerra civil. Reconheciam que, apesar de toda a doutrinação anticomunista nos quartéis, havia ainda oficiais e praças “vermelhos” espalhados pelas unidades do país. A revolta dos marinheiros e a condução titubeante que o presidente João Goulart deu à crise militar que se seguiu contribuiu para o desfecho final: golpe de Estado, início do regime militar, perseguição implacável aos “suspeitos de sempre”.

No processo de institucionalização do regime, o anticomunismo foi erigido em política de Estado. Dentro das forças armadas, a “limpeza” interna de oficiais e praças comunistas ou mesmo vagamente suspeitos foi realizada com mão de ferro. Futuros oficiais aprendiam na academia militar que deveriam preparar-se prioritariamente para combater o inimigo interno, enquanto que a defesa do país a ataques externos era deixada em segundo plano. Instituições civis, como universidades, órgãos de imprensa e a Igreja sofreram perseguições sistemáticas e vários de seus membros foram presos e torturados. Alguns, mais afortunados, ainda puderam exilar-se no exterior. Espionagem e polícia política conquistaram autonomia para ação, e a “tigrada” – denominação que Delfim Neto, então ministro da ditadura, dava aos membros dos órgãos de repressão – podia agir sem obstáculos .

Nesses dois momentos cruciais da vida política brasileira – a crise que levaria ao Estado Novo e a crise que desencadeou o golpe de Estado contra João Goulart e instaurou o regime militar – o anticomunismo inspirou o percurso que terminaria em duas ditaduras. A escolha de Motta por estes dois momentos, no entanto, não deve desviar a atenção dos interessados na história recente do país da existência de uma continuidade do anticomunismo em outros momentos, nos quais alguns dos apelos contra o “perigo vermelho” reapareceram e até mesmo se adaptaram aos novos tempos, como por exemplo, o processo de cassação do PCB e de seus parlamentares, em 1947, ou mesmo na campanha presidencial de Fernando Collor de Mello, em 1989, quando todos os elementos imagéticos do anticomunismo foram explorados à exaustão, contra o então candidato Luis Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores.

A crise dos regimes socialistas no final da década de 80 e a construção de uma nova ordem mundial pós guerra fria forneceu a ilusão de que o anticomunismo já era um fenômeno histórico datado, um ideal de combate a um inimigo que não oferecia mais resistência. Contudo, seus princípios e práticas continuam, embora atenuados, na gestão neoliberal da sociedade. Para definir esses novos tempos, poucas vezes foi tão oportuno retomar a palavra “Imperialismo”, em todas suas acepções. As resistências ao pensamento macroeconômico único, à geopolítica unipolar norte americana, às práticas de sociabilidade baseadas no consumo individualista voraz e fugaz de mercadorias e serviços, às políticas governamentais de um mal disfarçado neodarwinismo social, à insensibilidade frente à miséria absoluta de milhões em países e regiões inteiras do planeta, ainda movem centenas de milhares de pessoas no mundo inteiro. Para estes, as práticas renovadas do anticomunismo oferecem suas duas estratégias preferidas: uma é escarnecer dos “neobobos” utópicos, atrelando-os a pecha do “atraso”. Quando esta não funciona, quando a hegemonia do pensamento único não se efetiva completamente pelo convencimento, os meios de coerção estão sempre à mão. Seguindo o princípio já enunciado pelo chefe de polícia de “Casablanca”, nessas horas, é sempre bom ter “os suspeitos de sempre” para perseguir: esquerdistas, islâmicos, “radicais”, enfim, os diferentes, aqueles que sempre desafinaram o coro dos contentes.