segunda-feira, outubro 15, 2007

"ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode caminham numa estrada de pó e de esperança."

O último discurso

de “O Grande Ditador”

Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é esse o meu ofício. Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria de ajudar – se possível – judeus, o gentio... negros... brancos.
Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo – não para o seu infortúnio. Por que havemos de odiar e desprezar uns aos outros? Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover a todas as nossas necessidades.
O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens... levantou no mundo as muralhas do ódio... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.
A aviação e o rádio aproximaram-nos muito mais. A própria natureza dessas coisas é um apelo eloqüente à bondade do homem... um apelo à fraternidade universal... à união de todos nós. Neste mesmo instante a minha voz chega a milhares de pessoas pelo mundo afora... milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas... vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes. Aos que me podem ouvir eu digo: “Não desespereis! A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da cobiça em agonia... da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbem e o poder que do povo arrebataram há de retornar ao povo. E assim, enquanto morrem homens, a liberdade nunca perecerá.
Soldados! Não vos entregueis a esses brutais... que vos desprezam... que vos escravizam... que arregimentam as vossas vidas... que ditam os vossos atos, as vossas idéias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como gado humano e que vos utilizam como bucha de canhão! Não sois máquina! Homens é que sois! E com o amor da humanidade em vossas almas! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar... os que não se fazem amar e os inumanos!
Soldados! Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade! No décimo sétimo capítulo de São Lucas está escrito que o Reino de Deus está dentro do homem – não de um só homem ou grupo de homens, ms dos homens todos! Está em vós! Vós, o povo, tendes o poder – o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade! Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela... de faze-la uma aventura maravilhosa. Portanto – em nome da democracia – usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um mundo novo... um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice.
É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas, só mistificam! Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão! Os ditadores liberam-se, porém escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e à prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à ventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia, unamo-nos!
Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontrares, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para a luz! Vamos entrando num mundo novo – um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergue os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos, Hannah! Ergue os olhos!


Canto ao Homem do Povo - Charles Chaplin

Carlos Drummond de Andrade

I

Era preciso que um poeta brasileiro,
não dos maiores, porém dos mais expostos à galhofa,
girando um pouco em tua atmosfera ou nela aspirando a viver
como na poética e essencial atmosfera dos sonhos lúcidos,

era preciso que esse pequeno cantor teimoso,
de ritmos elementares, vindo da cidadezinha do interior
onde nem sempre se usa gravatas mas todos são extremamente polidos
e a opressão é detestada, se bem que o heroísmo se banhe em ironia,

era preciso que um antigo rapaz de vinte anos,
preso à tua pantomima por filamentos de ternura e riso dispersos no tempo,
viesse recompô-los e, homem maduro, te visitasse
para dizer-te algumas coisas, sobcolor de poema.

Para dizer-te como os brasileiros te amam
e que nisso, como em tudo mais, nossa gente se parece
com qualquer gente do mundo - inclusive os pequenos judeus
de bengalinha e chapéu-coco, sapatos compridos, olhos melancólicos,

vagabundos que o mundo repeliu, mas zombam e vivem
nos filmes, nas ruas tortas com tabuletas: Fábrica, Barbeiro, Polícia,
e vencem a fome, iludem a brutalidade, prolongam o amor
como um segredo dito no ouvido de um homem do povo caído na rua.

Bem sei que o discurso, acalanto burguês, não te envaidece,
e costumas dormir enquanto os veementes inauguram estátua,
e entre tantas palavras que como carros percorrem as ruas,
só as mais humildes, de xingamento ou beijo, te penetram.

Não é a saudação dos devotos nem dos partidários que te ofereço,
eles não existem, mas a de homens comuns, numa cidade comum,
nem faço muita questão da matéria de meu canto ora em torno de ti
como um ramo de flores absurdas mando por via postal ao inventor dos jardins.

Falam por mim os que estavam sujos de tristeza e feroz desgosto de tudo,
que entraram no cinema com a aflição de ratos fugindo da vida,
são duras horas de anestesia, ouçamos um pouco de música,
visitemos no escuro as imagens - e te descobriram e salvaram-se.

Falam por mim os abandonados da justiça, os simples de coração,
os parias, os falidos, os mutilados, os deficientes, os indecisos, os líricos, os cismarentos,
os irresponsáveis, os pueris, os cariciosos, os loucos e os patéticos.

E falam as flores que tanto amas quando pisadas,
falam os tocos de vela, que comes na extrema penúria, falam a mesa, os botões,
os instrumentos do ofício e as mil coisas aparentemente fechadas,
cada troço, cada objeto do sótão, quanto mais obscuros mais falam.
(...)
V

Uma cega te ama. Os olhos abrem-se.
Não, não te ama. Um rico, em álcool,
é teu amigo e lúcido repele
tua riqueza. A confusão é nossa, que esquecemos
o que há de água, de sopro e de inocência
no fundo de cada um de nós, terrestres. Mas, ó mitos
que cultuamos, falsos: flores pardas,
anjos desleais, cofres redondos, arquejos
poéticos acadêmicos; convenções
do branco, azul e roxo; maquinismos,
telegramas em série, e fábricas e fábricas
e fábricas de lâmpadas, proibições, auroras.
Ficaste apenas um operário
comandado pela voz colérica do megafone.
És parafuso, gesto, esgar.
Recolho teus pedaços: ainda vibram,
lagarto mutilado.

Colo teus pedaços. Unidade
estranha é a tua, em mundo assim pulverizado.
E nós, que a cada passo nos cobrimos
e nos despimos e nos mascaramos,
mal retemos em ti o mesmo homem,
aprendiz
bombeiro
caixeiro
doceiro
emigrante
forçado
maquinista
noivo
patinador
soldado
músico
peregrino
artista de circo
marquês
marinheiro
carregador de piano
apenas sempre entretanto tu mesmo,
o que não está de acordo e é meigo,
o incapaz de propriedade, o pé
errante, a estrada
fugindo, o amigo
que desejaríamos reter
na chuva, no espelho, na memória
e todavia perdemos

VI

Já não penso em ti. Penso no ofício
a que te entregas. Estranho relojoeiro
cheiras a peça desmontada: as molas unem-se,
o tempo anda. És vidraceiro.
Varres a rua. Não importa
que o desejo de partir te roa; e a esquina
faça de ti outro homem; e a lógica
te afaste de seus frios privilégios.

Há o trabalho em ti, mas caprichoso,
mas benigno,
e dele surgem artes não burguesas,
produtos de ar e lágrimas, indumentos
que nos dão asa ou pétalas, e trens
e navios sem aço, onde os amigos
fazendo roda viajam pelo tempo,
livros se animam, quadros se conversam,
e tudo libertado se resolve
numa efusão de amor sem paga, e riso, e sol.

O ofício é o ofício
que assim te põe no meio de nós todos,
vagabundo entre dois horários; mão sabida
no bater, no cortar, no fiar, no rebocar,
o pé insiste em levar-te pelo mundo,
a mão pega a ferramenta: é uma navalha,
e ao compasso de Brahms fazes a barba
neste salão desmemoriado no centro do mundo oprimido
onde ao fim de tanto silêncio e oco te recobramos.

Foi bom que te calasses.
Meditavas na sombra das chaves,
das correntes, das roupas riscadas, das cercas de arame,
juntavas palavras duras, pedras, cimento, bombas, invectivas,
anotavas com lápis secreto a morte de mil, a boca sangrenta
de mil, os braços cruzados de mil.

E nada dizias. E um bolo, um engulho
formando-se. E as palavras subindo.
Ó palavras desmoralizadas, entretanto salvas, ditas de novo.
Poder da voz humana inventando novos vocábulos e dando sopros exaustos.
Dignidade da boca, aberta em ira justa e amor profundo,
crispação do ser humano, árvore irritada, contra a miséria e a fúria dos ditadores,
ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode
caminham numa estrada de pó e de esperança.

segunda-feira, setembro 24, 2007

De profundis



É um campo de restolho, sob uma chuva negra.
É uma árvore castanha, que se eleva solitária.
É um vento sibilante, que ronda cabanas vazias –
Que triste tarde esta.

Passando pela aldeia
A terna órfã recolhe ainda a escassa espiga.
Os grandes olhos de oiro procuram no entardecer
E o seu seio aspira ao noivo celestial.

No regresso
Os pastores encontraram o doce corpo
Apodrecido entre espinheiros.

Sou uma sombra longe de ameaçadoras aldeias.
Bebi da fonte do bosque
O silêncio de Deus.

Sobre a minha fronte cai frio metal.
Aranhas procuram o meu coração.
Há uma luz que se apaga na minha boca.

À noite encontrei-me numa charneca,
Cheio de dejectos e poeira sideral.
Nas aveleiras
Voltavam a soar anjos de cristal.

(1913)

Georg Trakl
(Tradução de João Barrento)

terça-feira, setembro 18, 2007

Perguntas de um Operário Letrado



Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilónia, tantas vezes destruida,
Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
Da Lima Dourada moravam seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde
Foram os seus pedreiros? A grande Roma
Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio
Sò tinha palácios
Para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida
Na noite em que o mar a engoliu
Viu afogados gritar por seus escravos.

O jovem Alexandre conquistou as Indias
Sózinho?
César venceu os gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?
Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha
Chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a guerra dos sete anos
Quem mais a ganhou?

Em cada página uma vitòria.
Quem cozinhava os festins?
Em cada década um grande homem.
Quem pagava as despesas?

Tantas histórias
Quantas perguntas
Bertold Brecht (1898-1956)

sexta-feira, setembro 14, 2007

Discurso no Aniversário de "The People's Paper"



Proferido em Londres, a 14 de Abril de 1856

Primeira Edição: Publicado no The People's Paper de n." 207, de 19 de Abril de 1856.
Fonte: . Obras Escolhidas em três tomos, Editorial "Avante!"
Tradução: José BARATA-MOURA (Traduzido do inglês e publicado segundo o texto do jornal).
Transcrição e HTML: Fernando Antônio de Souza Araújo, março 2007.
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Editorial "Avante!" - Edições Progresso Lisboa - Moscovo, 1982.


As chamadas revoluções de 1848 não foram mais do que pobres incidentes — pequenas fracturas e fissuras na dura crosta da sociedade europeia. No entanto, elas denunciavam o abismo. Por detrás da superfície aparentemente sólida, elas revelavam oceanos de matéria líquida que apenas precisavam de expansão para fazer em bocados continentes de rocha firme. Barulhenta e confusamente, proclamaram a emancipação do proletário, isto é, o segredo do século XIX e da revolução deste século.

Esta revolução social — é certo — não foi uma novidade inventada em 1848. O vapor, a electricidade e a máquina de fiação foram revolucionários de um tipo muito mais perigoso do que mesmo os cidadãos Barbès, Raspail e Blanqui. Mas, embora a atmosfera em que vivemos pese sobre cada um de nós com uma força de 20 000 libras, senti-la vós? Não a [sentis] mais do que a sociedade europeia antes de 1848 sentia a atmosfera revolucionária que a envolvia e pressionava de todos os lados.

Há um grande facto, característico deste nosso século XIX, um facto que nenhum partido ousa negar. Por um lado, despontaram para a vida forças industriais e científicas, de que nenhuma época da história humana anterior alguma vez tinha suspeitado. Por outro lado, existem sintomas de decadência que ultrapassam de longe os horrores registados nos últimos tempos do Império Romano.

Nos nossos dias, tudo parece prenhe do seu contrário. Observamos que maquinaria dotada do maravilhoso poder de encurtar e de fazer frutificar o trabalho humano o leva à fome e a um excesso de trabalho. As novas fontes de riqueza transformam-se, por estranho e misterioso encantamento, em fontes de carência. Os triunfos da arte parecem ser comprados à custa da perda do carácter. Ao mesmo ritmo que a humanidade domina a natureza, o homem parece tornar-se escravo de outros homens ou da sua própria infâmia. Mesmo a luz pura da ciência parece incapaz de brilhar a não ser sobre o fundo escuro da ignorância. Todo o nosso engenho e progresso parecem resultar na dotação das forças materiais com vida intelectual e na redução embrutecedora da vida humana a uma força material. Este antagonismo entre a indústria e a ciência modernas, por um lado, e a miséria e a dissolução modernas, por outro; este antagonismo entre os poderes produtivos [productive powers] e as relações sociais da nossa época é um facto palpável, esmagador, e que não é para ser controvertido. Alguns partidos podem lamentar-se disso; outros podem desejar ver-se livres das artes modernas, a fim de se verem livres dos conflitos modernos. Ou podem imaginar que tão assinalável progresso na indústria requer que seja completado por uma igualmente assinalável regressão na política. Pela nossa parte, não nos engana a forma do espírito astucioso que continua a marcar todas estas contradições. Sabemos que, para trabalharem bem, as novas forças da sociedade apenas precisam de ser dominadas por novos homens — e os operários são esses [novos homens]. Eles são tanto uma invenção dos tempos modernos como a própria maquinaria. Nos sinais que desorientam a classe média, a aristocracia e os pobres profetas da regressão, reconhecemos o nosso bom amigo, Robin Goodfellow(1*), a velha toupeira que sabe trabalhar a terra tão rapidamente, esse digno sapador — a Revolução. Os operários ingleses são os primeiros filhos da indústria moderna. Certamente que não serão, então, os últimos a ajudar a revolução social produzida por essa indústria, uma revolução que significa a emancipação da sua própria classe em todo o mundo, [uma revolução] que é tão universal como a dominação do capital e a escravidão assalariada. Eu conheço as lutas heróicas por que a classe operária inglesa passou desde os meados do século passado — lutas menos celebradas, porque são amortalhadas em obscuridade e abafadas pelo historiador da classe média. Para vingar as malfeitorias da classe dominante havia na Idade Média, na Alemanha, um tribunal secreto, chamado "Vehmgericht". Se se visse uma cruz encarnada a marcar uma casa, as pessoas sabiam que o seu proprietário estava condenado pelo "Vehm". Todas as casas da Europa estão hoje marcadas com a misteriosa cruz encarnada. A História é o juiz — o seu executor, o proletário.

Karl Marx (1818-1883)


Notas de Rodapé:

(1*) Robin Goodfellow: ser lendário que, segundo a crença popular inglesa, protegia e ajudava os homens. Vêmo-lo, por exemplo, em acção como Puck na peça de Shakespeare Sonho de Uma Noite de Verão. (Notada edição portuguesa.) (retornar ao texto)

Notas de Fim de Tomo:

Em 14 de Abril de 1856, num banquete em honra do quarto aniversário do jornal cartista The People's Paper, Marx, usando do direito que lhe foi concedido de falar em primeiro lugar, pronunciou um discurso sobre o papel histórico mundial do proletariado. A participação de Marx no aniversário de The People's Paper foi um dos exemplos mais brilhantes da ligação dos fundadores do comunismo científico com os cartistas ingleses, da aspiração de Marx e Engels de exercer uma influência ideológica no proletariado inglês e de apoiar os dirigentes cartistas com o objectivo de fazer ressurgir o movimento operário na Inglaterra numa base nova, socialista.
The People's Paper (O Jornal do Povo): semanário cartista publicado de Maio de 1852 até Junho de 1858 em Londres; entre Outubro de 1852 e Dezembro de 1856 Marx e Engels colaboraram no jornal, ajudando também a redigi-lo. Em Junho de 1858 o jornal passou para as mãos de homens de negócios ingleses.

quarta-feira, setembro 12, 2007

Eu, Etiqueta



Em minha calça está grudado um nome, que não é meu de batismo ou de cartório,
Um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida que jamais pus na boca, nessa vida,
Em minha camiseta, a marca de cigarro que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto que nunca experimentei,
Mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido de alguma coisa não provada,
Por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu lençol, meu chaveiro, minha gravata e cinto e escova e pente,
Meu copo, minha xícara, minha toalha de banho e sabonete,
Meu isso, meu aquilo, desde a cabeça ao bico dos sapatos,
São mensagens, letras falantes, gritos visuais,
Ordens de uso, abuso, reincidências, costume, hábito, premência,
Indispensabilidade,
E fazem de mim homem-anúncio itinerante, escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É duro andar na moda, ainda que a moda seja negar minha identidade,
Trocá-la por mil, açambarcando todas as marcas registradas,
Todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser Eu que antes era e me sabia
Tão diverso de outros, tão mim mesmo, ser pensante sentinte e solitário
Com outros seres diversos e conscientes de sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio, ora vulgar ora bizarro
Em língua nacional ou em qualquer língua (Qualquer principalmente.)
E nisto me comprazo, tiro glória de minha anulação.
Não sou – vê-lá – anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago para anunciar, para vender em bares, festas, praias, piscinas,
E bem à vista exibo esta etiqueta global no corpo que desiste
De ser veste e sandália de uma essência tão viva, independente,
Que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora meu gosto e capacidade de escolher,
Minhas idiossincrasias tão pessoais, tão minhas que no rosto se espelhavam
E cada gesto, cada olhar, cada vinco da roupa. sou gravado de forma universal,
Seio da estamparia, não de casa, da vitrine me tiram, recolocam, objeto pulsante mas objeto
Que se oferece como signo de outros objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso de ser não eu, mas artigo industrial,
Peço que meu nome retifiquem. Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é Coisa. Eu sou a coisa, coisamente.
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

quinta-feira, setembro 06, 2007

Tecelões da Silésia


Sem lágrimas em teares que tremem
tecemos e batemos os dentes.
Alemanha, tecemos nesta ocasião
aqui a tua mortalha e a tríplice maldição
Tecemos. Tecemos.

Maldição ao Deus falso, ao qual rezamos
enquanto o frio e a fome agüentamos.
Em vão confiamos e esperamos;
tem fraudado, mentido e enganado.
Tecemos. Tecemos.

Maldição ao rei o rei dos ricos,
o monstro que traga os peixes pequenos;
que nos oprime, explora e tortura
e, como os cães, nos fuzila.
Tecemos. Tecemos.

Maldição à Pátria falsa e funesta,
que só à vergonha se presta,
que a toda flor precocemente esmaga,
e ao verme alimenta em podridão nefasta.
Tecemos. Tecemos.

Voa a lançadeira e treme o tear.
Tecemos com dedicação sem cessar.
Alemanha de ontem, nesta ocasião,
eis a tua mortalha e a tríplice maldição.
Tecemos. Tecemos.
Heinrich Heine (1797-1856)

quarta-feira, setembro 05, 2007

Cansei! – o engodo burlesco de tacanhos filisteus modernos



Nos encontramos hoje numa situação de plena calamidade social. Em nenhum outro momento da história convivemos com tamanha brutalidade absurdamente gerenciada pelos poderosos:
“Problemas ambientais; aumento significativo da violência nos grandes centros urbanos; crescimento desordenado das cidades e o inchaço das favelas e moradias precárias; constante investimento em tecnologia e armamentos pesados, visando ‘segurança’; acentuação da desigualdade a níveis alarmantes; e concentração de renda cada vez mais brutal na mão de poucos e a generalização da miséria a vastos territórios do globo terrestre” (O desenvolvimento paradoxal do progresso e a hipertrofia da razão instrumental, 2006, p.76, de minha autoria: Leonardo Domingues).
Como se não bastasse essa gélida realidade, alguns pseudodemocratas se intitulam defensores do bastião da moral e da vergonha na cara. Essa cidadela da ética e do respeito mútuo traz à tona toda a bandalheira reinante no país. São pessoas de bem; são indivíduos que se importam com a vida dos outros e, de forma merecida, ganham o reconhecimento sobre seus atos. Esses cidadãos de boa índole serram fileiras na vanguarda da decência e do decoro cívico.
Em outros momentos de nossa história humana, fenômenos parecidos se manifestaram em situações de profunda tensão política, em que a sapiência dos homens tornou-se impotente e cega, perante o assalto da insensatez e da barbárie. Abaixo do solo dos tempos, adormecidos estão esses germes da soberba inquisição a toda e qualquer forma de prudência racional. Só ficam esperando o momento certo para saírem da toca. Cito dois exemplos de acirramento ideológico em torno da “defesa” da moral e da ética: Quem não se lembra da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que preconizava quase as mesmas coisas? Pouco mais de trinta anos antes desse fato, na Alemanha estava ocorrendo um movimento de renovação nacional, apoiado, principalmente, pela classe média e pela burguesia, que culminou com a ascendência de Hitler ao cargo de Chanceler da nação. Trago esse dois exemplos para analisarmos, no que diz respeito ao movimento Cansei, quais são as reais intenções que motivam essas pessoas a agirem dessa forma. Quem está cansado? Por que motivo? Cansado de que? Como está cansado?
Assim sendo, proporciono uma pequena anátema crítica, estabelecendo um diálogo com o outro lado da moeda, com aqueles que já estão cansados há muito tempo. O manifesto seria proferido não em aeroportos ou shopping centers, mas sim, nos bolsões de miséria desse vasto e rico Brasil.

Cansei de ser invisível à sociedade, que só se lembra de mim quando a minha violência diária chega a casa dela.
Cansei de ver meus filhos sem perspectiva alguma, vítimas da dor e do flagelo, lutando a cada instante pela existência desumana e miserável que nos cabe.
Cansei de ser a força produtiva de uma produção que não me pertence, e sim ao outro, que me explora diuturnamente a troco de uma ração inumana.
Cansei de esperar e esperar pela esperança de um dia ser tratado de forma mais digna e humana.
Cansei de ser cercado pelos frios mundos da desigualdade e de viver num cárcere econômico antagônico, vil, covarde e cruel.
Cansei de perceber que é dessa contradição insensata que brota a “igualdade de condições” entre os homens. De sentir, de forma intensa, o quanto que de meu padecimento é que se eleva o prazer luxuoso do outro, do dono.
Cansei de ser escorraçado, vilipendiado e atrozmente ceifado em favor da ordem pública e do bom andamento dos processos.
Cansei de viver como animal, em pocilgas fétidas de sórdidos entulhos e ver que estou em pior condição que isso, porque o animal de estimação do outro vive em melhores condições do que a maioria de nós.
Cansei de ver que somos nós que cremos em Deus, mas são eles que são abençoados.
Cansei de repetir que “rico pede paz para continuar rico, e que pobre pede paz para continuar vivo”.
Cansei! Estou cansada!


“O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão” (...) “Com a valorização do mundo das coisas, aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz apenas mercadorias; produz-se também a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria”(...)”O trabalhador põe a sua vida no objeto; porém agora ela já não lhe pertence, mas sim ao objeto. Quanto maior a sua atividade, mais o trabalhador se encontra objeto. O que se incorporou no objeto do seu trabalho já não é seu. Assim, quanto maior é o produto, mas ele fica diminuído.”(...) “O trabalhador torna-se escravo do objeto”(..) “Não constitui a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio de satisfazer outras necessidades”(..)”ele não é o seu trabalho, mas o de outro”(...)”Chega-se à conclusão de que o homem (o trabalhador) só se sente livremente ativo nas suas funções animais – comer, beber e procriar, quando muito, na habitação, no adorno etc. – enquanto nas funções humanas se vê reduzido a animal”(..)”Esta é a auto-alienação”(...)”A vida revela-se simplesmente como meio de vida”(...)”Se a sua atividade constitui para ele um martírio, tem de ser fonte de deleite e de prazer para outro”.


Este é um texto escrito por um jovem de 26 anos, herdeiro do mais profundo pensamento humanístico. Em suas palavras ecoam as idéias de toda a tradição que o precedeu. O herético, o novo, a vontade de realizar de forma plena a existência humana: esse era o lema de toda a Filosofia Clássica Alemã, assim como, também o era do Renascimento, do Humanismo e da Grécia Antiga. Seu nome? Karl Heinrich Marx. Manuscritos econômico-filosóficos.

Que castigo tenho a temer, se mal algum eu faço? Possuís muitos escravos, que como asnos, cães e mulos tratais, e que em serviços empregais vis e abjetos, sob a escusa de os haverdes comprado. Já vos disse que os pusésseis, acaso, em liberdade? que com vossas herdeiras os casásseis? por que suam sob fardos? que lhes désseis leitos iguais aos vossos? e iguarias que como ao vosso paladar soubessem? Em resposta, decerto, me diríeis: “Os escravos são nossos”.


Essa é uma das falas de Shylock, pronunciada durante o famoso julgamento em “O mercador de Veneza”, de William Shakespeare.

Cansei de um progresso que só eterniza a desigualdade do presente. Onde está o progresso humano?

Cito mais um trecho de meu breve texto supracitado:


O triunfo dos meios sobre os fins deriva de um largo processo de promoção de um desenvolvimento desigual e desumano. Os fins essencialmente humanos, autônomos e emancipatórios foram transubstanciados em formas eminentemente modernas de produção e reprodução de miséria e de sofrimento. A tão conclamada globalização, panacéia dos novos tempos, escamoteia em seu comércio ilimitado de mercadorias quais são as verdadeiras faces desse progresso antagônico. Pelo uso instrumental de formas racionalizadas de produção e escoamento de produtos não existem mais barreiras de qualquer tipo para findar a expansão pela busca de novos mercados. Ao mesmo tempo em que as mercadorias têm trânsito livre por todos os cantos, o mesmo não acontece com a riqueza, nem com a ciência, nem com o conhecimento. Estes ficam monopolizados nos grandes centros industriais, nas universidades tecnológicas e nas grandes empresas. A liberdade que a mercadoria desfruta se converte em confinamento para o indivíduo. Se aos produtos comercializáveis tudo é permitido, para os seres humanos somam-se as segregações étnicas, religiosas, econômicas, culturais, políticas, para a sua conciliação com os outros.
Num capitalismo cada vez mais tecnológico, racionalizado, administrado e expansivo, a racionalidade instrumental é imanente aos processos de valorização de capital. Contra barreiras de dominação sofisticada, o homem padece diante de uma, cada vez mais intransponível e inexorável, “gaiola de ferro”. Se nos pressupostos weberianos tais constatações já estavam muito avançadas, na teorização frankfurtiana esse fenômeno é repensado de acordo com os novos desenvolvimentos do capitalismo tardio. Num mundo instrumentalizado, onde somente são válidas as ações que sirvam para atingir algum fim prático e útil, todas as atuações dos indivíduos tendem a se submeter a uma só lógica: seus desejos, suas vontades, seus sentimentos, sua consciência, tudo se torna um mero instrumento.

O pensamento crítico luta por conceituar o caráter irracional da racionalidade estabelecida e por definir as tendências que fazem com que essa racionalidade gere sua própria transformação. Apesar da constatação desesperançada e concreta sobre a atual complexidade da realidade, a Teoria Crítica não perdeu a esperança em torno da razão humana. “Não alimentamos dúvida nenhuma de que a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento esclarecedor” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.13). Horkheimer, em sua última frase de Eclipse da Razão, nos lembra que, “se por evolução científica e progresso intelectual queremos significar a libertação do homem [...] então a denúncia daquilo que atualmente se chama razão é o maior serviço que a razão pode prestar” (HORKHEIMER, 2003, p.187). Portanto, enquanto possibilidades efetivas de transformação objetiva e subjetiva não estão no horizonte, o espírito crítico e contestatório será o norte para a produção de um mundo mais justo e sensato.

O desenvolvimento paradoxal do progresso e a hipertrofia da razão instrumental - 2006, p.80

segunda-feira, setembro 03, 2007

Não bater à porta



A tecnificação torna, entrementes, precisos e rudes os gestos, e com isso os homens. Ela expulsa das maneiras toda hesitação, toda ponderação, toda civilidade, subordinando-as às exigências intransigentes e como que a-históricas das coisas. Desse modo, desaprende-se a fechar uma porta de maneira silenciosa, cuidadosa e, no entanto firme. As portas dos carros e das geladeiras são para serem batidas, outras têm a tendência a fechar-se por si mesmas, incentivando naqueles que entram o mau costume de não olhar para trás, de ignorar o interior da casa que o acolhe. Não se faz justiça ao novo tipo de homem, se não se tem consciência daquilo a que está incessantemente exposto pelas coisas do mundo a seu redor, até mesmo em suas mais secretas inervações. O que significa para o sujeito que não existam mais janelas que se abram como asas, mas somente vidraças de correr para serem bruscamente impelidas? Que não existam mais trincos de portas, e sim maçanetas giratórias, que não existam mais vestíbulos, nem soleiras dando para a rua, nem muros ao redor do jardim? E qual o motorista que já não foi tentado pela potência do motor de seu veículo a atropelar a piolhada da rua, pedestres, crianças e ciclistas? Nos movimentos que as máquinas exigem daqueles que delas se servem localizam-se já a violência, os espancamentos, a incessante progressão aos solavancos das brutalidades fascistas. No desaparecimento da experiência, um fato possui uma considerável responsabilidade: que as coisas, sob a lei de sua pura funcionalidade, adquirem uma forma que restringe o trato delas a um mero manejo, sem tolerar um só excedente – seja em termos de liberdade de comportamento, seja de independência da coisa - que subsista como núcleo da experiência porque não é consumido pelo instante da ação.


ADORNO, Theodor W. 19. In:______. Minima Moralia. Trad. de Luiz Eduardo Bicca, com revisão de Guido de Almeida. São Paulo: Ática, 1993.

domingo, agosto 26, 2007

Dividir é um compartilhar humano ou uma equação matemática?

A ampliação dos avanços da técnica e da racionalidade de cálculo para toda a esfera do ser, que já vem de muitas décadas, nos obrigam a investigarmos como se dá a sociabilidade nos micro-ambientes e nas pequenas relações. A vida em conjunto, em sociedade, nos impõe uma necessidade básica: para suportarmos as intempéries e as forças da natureza precisamos uns dos outros. Desta forma, construímos e produzimos socialmente tudo o que está as nossas vistas para o nosso próprio benefício, para sustentar e prolongar nossa existência. Na relação com a natureza, modificando-a e transformando-a, a base material é constituída e fundada para a elevação do edifício social ao qual residimos.
Sem me alongar sobre a gênese da divisão do trabalho e de sua incorporação perversa na lógica produtiva capitalista, quero pegar como ponto de partida algo comum nas grandes cidades: os prédios. Para exprimir esses devaneios especulativos, tomo minhas experiências pessoais como um substrato relevante para algumas conexões entre a realidade objetiva e a teoria social. No entanto, já de antemão, deixo claro que são só algumas notas marginais, esparsas, de minhas inquietações subjetivas.
Dividir, segundo alguns dicionários, quer dizer: “1. Partir, separar em duas ou mais partes. 2. Distribuir; repartir. 3. (Mat.) Efetuar a divisão em. P. 4. Separar-se; desunir-se. 5. Discordar; divergir; dissentir”. Penso que o ato de dividir, o distribuir dos recursos materiais, precede a própria noção matemática de dividir, tal qual está estabelecida no dicionário. O dividir humano estabelece-se muito antes da noção aritmética. A ciência dos números denota uma certa objetividade para o cálculo; pressupõe-se uma razão imparcial, impessoal e, profundamente, lógica. Com o desenvolvimento das forças produtivas, da ciência e da tecnologia, houve um triunfo da abstração numérica penetrando até nos campos mais recônditos da vida social.
Dentre todos esses sentidos (expressados nas definições do dicionário), como podemos pensar o que é dividido dentro de um edifício residencial? Não há um significado que chegue próximo ao compartilhar, somente verbos frios e eficientes. Dividimos tudo o que existe e cada um cuida de sua parte, ou compartilhamos o que existe para que todos possam ter o melhor usufruto coletivo? Não estamos muito distantes de pensar outras dimensões da vida social. Poderíamos repensar a noção de liberdade, por exemplo. Em todos os cantos ouvimos que “a minha liberdade vai até onde está a liberdade do próximo”. Parece que “liberdade” se tornou uma figura geométrica, um pequeno quadrado de mobilidade do indivíduo. Aos que têm muitas posses e que comandam os meios produtivos, a liberdade é plena e quase irrestrita. Torna-se um gigante quadrado que ultrapassa a área dos adjacentes não reconhecendo qualquer lei ou norma que o coíba. Para contrapor a essa concepção, evoco a noção de liberdade para Hegel, em que a minha liberdade tem que se complementar com a liberdade do outro. Livres, só somos quando temos um compartilhar coletivo e efetivo.
Em um prédio comum existem portas, escadas, janelas, elevadores entre outros. Os espaços coletivos também representam uma parte constituinte dos edifícios. A construção de habitações conjugadas foi uma necessidade devido ao inchaço das cidades e a multiplicação crescente da população urbana. Foi previamente concebida como uma imposição das leis do cálculo pela lógica produtiva em que os indivíduos não deveriam mais residir em casas espaçosas, com ampla área no entorno. Agora, eles se amontoariam em pequenas caixas de sapato, dispostas umas sobre as outras, as quais hoje chamamos de apartamentos. Eles possuem apenas aquilo que é necessário para reproduzir a força produtiva que engrena a máquina (força de trabalho). São em pequenos espaços “três por quatro” que constituímos nossas famílias e que damos o nome de lar. Parca mobília e alguns adornos amorfos decoram o ambiente. Nos sentimos indiferentes em meio ao não-pertencimento representado no local. Tudo proveio da fábrica e foi produzido em série, como toda experiência do ser.
O ápice da sociabilidade moderna é dizer “oi” e “tchau” no elevador. É um ato súbito de benevolência, ao se lembrar que, por aqueles frios corredores e escadas, residem outras pessoas. É a efêmera noção de não estar sozinho em meio a tanta solidão. Ser refém cativo de portas, grades e trancas, enquanto lá fora, brilha um sol escaldante, porém programado. Ouvir barulhos pelas paredes e pelos cantos e saber que é isso que o lembra que acima e abaixo existem barreiras. Esses sons estranhos nos recordam que temos de trancar bem as portas e fechar as janelas. E o que não dizer das cercas elétricas, das câmeras de circuito interno e de toda a “segurança” que a tecnologia pode nos dar? Por que não colocar logo minas-terrestres nos jardins da entrada? Ou mesmo, um lança-chamas no portão principal?
O fato é que dividimos tudo o que se encontra no prédio, mas é somente uma divisão aritmética. É uma coação resultante de uma determinação do sistema produtivo: temos de dividir. Já que somos obrigados, então que seja pela fria e precisa lógica do cálculo, nada mais.
Moramos anos e anos nesses edifícios e não conhecemos ninguém. Não há uma relação com o vizinho. Não há nada, apenas a clareza real de ter de cumprir com suas obrigações materiais e só. É o sair pela manhã e voltar só no fim da tarde. Morar apenas para ter um lugar para dormir e descansar bem, para produzir muito no dia seguinte.
No sistema há o imperativo categórico da divisão, dominação e produção. É como dizia Napoleão: “dividir para conquistar”.

sexta-feira, agosto 24, 2007

O Insensato


Não ouvistes falar desse louco que, em pleno dia, acendia uma lanterna e se punha a correr pela praça pública gritando incessantemente: "Procuro Deus! Procuro Deus!". Como estavam ali muitos que não acreditavam em Deus, o seu grito provocou uma grande gargalhada. Dizia um: "Então, Deus se perdeu?”. “O quê? Deus perdeu-se como uma criança?”, perguntava outro. “Ou escondeu-se? Tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou?” – assim gritavam e riam todos ao mesmo tempo. O louco precipitou-se para o meio deles e trespassou-os com o olhar: “Para onde foi Deus?” - gritou-lhe. “Eu vou dizer-vos isso. Nós o matamos, vós e eu! Todos nós somos os seus assassinos. Como pudemos fazer isso? Como fomos capazes de esvaziar todo o mar? Quem nos deu a esponja para apagar todo o horizonte? Que fizemos quando separamos esta terra de seu sol? Para onde ela se movimenta agora? Para onde nos levam seus movimentos? Para longe de todos os sóis? Não estamos caindo sem cessar? Para trás, para o lado, para a frente, para todos os lados? Existe ainda um acima e um abaixo? Não erramos como através de um nada infinito? O espaço vazio não sopra sobre nós? Não faz mais frio? Não vem a noite e cada vez mais noite? Não é preciso acender lanternas em pleno dia? Não ouvimos ainda o ruído dos coveiros que enterraram Deus? Não sentimos putrefação divina? Também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus permanece morto! E fomos nós que o matamos! Como nos consolaremos, nós, os assassinos de todos os assassinos? O que o mundo possuía de mais sagrado e mais poderoso perdeu seu sangue sob nossas lâminas – quem lavará esse sangue de nossas mãos? Com que água poderemos purificar-nos? Que expirações, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não temos de converter-nos em deuses, para parecermos dignos desse ato? Nunca houve ato mais grandioso – e quem nascer depois de nós fará parte, por causa desse ato mesmo, de uma história superior a tudo o que foi história até agora”. Aqui se calou o louco e encarou outra vez os ouvintes; também eles se calavam e o olhavam com estranheza. Por fim, atirou ao chão a lanterna, que se partiu em pedaços e se apagou. “Vim cedo demais”, disse então: “Ainda não é chegado o meu tempo. Esse enorme acontecimento ainda está a caminho e viaja – ainda não atingiu os ouvidos dos homens. O relâmpago e o trovão precisam de tempo, depois de terem sido realizados, para serem vistos e ouvidos. Esse ato está ainda mais distante dos homens que o astro mais distante – e no entanto foram eles que o reaizaram!” (Grifos meus)


NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. São Paulo: Hemus, 1981.

quinta-feira, agosto 16, 2007

A experiência em Londrina

Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a idéia de que o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é ascender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos de nosso posto
Érico Verissimo


“Trabalhadores! Trabalhadores! Vocês têm que parar! Não podemos mais agüentar essa situação! Vamos parar! Precisamos parar e apreciar a nova Mortadela Ouro Perdigão!”.
Possivelmente, se não fosse pelos anos em Londrina, essa pequena propaganda que ouvi enquanto estava dirigindo, seria meramente fagocitada e, automaticamente, expelida pelo meu cérebro em fração de segundos.
O fato retratado pelo anúncio de rádio é a simulação de uma greve de operários. Há uma encenação feita em estúdio, em que são adicionadas muitas vozes em coro para representar, de forma fidedigna, a situação interna de uma fábrica como se fosse na vida real. Num dado momento da propaganda há uma “explicação” para toda a idéia, em que “justificam” a concepção de uma greve pelo fato da mortadela ser, ou ter, alguma relação com a Itália (confesso que não entendi bem essa parte). Ou seja, para as pessoas que escutassem aquilo tudo, era como se o ato de fazer greve fosse de origem italiana ou que – o que é mais estranho, porém mais “justificado” –, a forma como concebemos essas manifestações passam, indireta ou diretamente, por um estereótipo do italiano “baderneiro”. Entendo que há uma longa associação, desde os primórdios da imigração para cá, entre italianos/europeus de uma forma geral e suas “imorais” manifestações políticas. Entretanto, tal “razão” não se auto-justifica. Resisto em continuar a falar sobre esse “fato banal”, porque seria a partir dele que pensei em traçar o que Londrina (na minha concepção particular) significou e representou em minha formação humana. Ademais, voltando a propaganda, o que de errado há em colocar numa mesma balança mortadela e uma greve de trabalhadores? Certamente alguns estudantes de marketing diriam que é uma forma original de apresentar um produto aos consumidores, outros, como a maioria, nem teriam tempo de pensar em nada, pois têm de correr atrás do ganha-pão de todo dia e não podem se dar ao luxo de reflexões, em qualquer grau que seja. Todavia, o que há de errado em fazer esse tipo de comercial? Não temos censura, a imprensa é livre e vivemos numa democracia consolidada. Entretanto, é exatamente aí que mora o problema, não temos necessidade de pensar em nada, já está tudo dado e revelado (tudo devidamente pronto. É como se um garoto chegasse à sua festa de aniversário – nesses espaços modernos feitos somente para isso – e encontrasse todos os brinquedos eletrônicos devidamente prontos e ligados, somente esperando para que ele os possua em pleno gozo primitivo). As coisas já trazem em si mesmas suas respostas e verdades. Somente cabe a nós engolirmos tudo isso, tal qual fazemos com nossas refeições fast-food. “Por que pensar, você quer é chegar rápido ao trabalho!”, esse poderia ser o lema de um anúncio de automóvel.

“Mas quantas são as mentes humanas capazes de resistir à lenta, feroz, incessante, imperceptível força de penetração dos lugares-comuns?” (Primo Levi)
COISIFICAÇÃO

Por que estou dizendo tudo isso? Porque a vida virou uma mercadoria e viver é uma grande propaganda. São só negócios. Participamos do engodo nefasto apenas como engrenagens subordinadas. Insurreições, revoltas, revoluções; hoje tudo não passa de um meio de valorizar capital. Vivemos vidas mesquinhas e pequenas que servem somente para produzir e reproduzir o monstro desigual que nos mantêm no alto de grandes construções tecnológicas, enquanto famintos e miseráveis clamam por dignidade abaixo de nossas janelas. “Não pense demais, os bandidos estão à solta e vão assaltar seu lindo lar: ponha uma cerca elétrica, dinamite os portões, esconda algumas minas terrestres pelo jardim, blinde seu honrado automóvel”. Não há mais vontade, não há mais querer, não há grito de desespero que toque no coração de nossa coerência mecânica. Instintivamente coagidos, somos mantidos em cativeiros hedonistas, para o deleite do cálculo frio e desumano. Prisioneiros de nós mesmos e da efêmera vivência programada, fazemos reverência ao açoite diuturno que nos alimenta no mais irresistível gozo primário. O mundo oferece-nos tudo o que desejamos, não há do que reclamar. É desagradavelmente brilhante como as pessoas não percebem isso, como não percebo isso, todo dia, ao caminhar pelo mundo. Vivemos para sobreviver e sobrevivemos para existir matematicamente no meio do todo. É indelével a máxima de Adorno, dizendo que não há mais vida, ou sua citação dizendo que, nesse sistema produtivo, “a vida não vive”.

“O grave é que a própria existência liberada não adquire sentido” (Adorno)

“A liberdade contraiu-se em pura negatividade (...) o fim objetivo do humanismo é apenas mais uma expressão da mesma coisa. Significa que o indivíduo como indivíduo, representando a espécie humana, perdeu a autonomia por meio da qual podia realizar a espécie” (Adorno)

“A repressão assume a forma da liberdade. A violência contra o pensamento não se manifesta mais como proibição de pensar, mas como liberdade de pensar o que, nas condições atuais de condicionamento invisível, significa a liberdade de pensar o que todos pensam” (Rouanet)

“Estamos na prisão, livres podemos apenas nos sonhar, não nos tornar” (Nietzsche)

“A vida melhor é contrabalançada pelo controle total sobre a vida” (Marcuse)
ALIENAÇÃO

“Todos somos livres para dançar e para se divertir, do mesmo modo que, desde a neutralização histórica na religião, são livres para entrar em qualquer uma das inúmeras seitas. Mas a liberdade de escolha da ideologia, que reflete sempre a coerção econômica, revela-se em todos os setores como a liberdade de escolher o que é sempre a mesma coisa” (Adorno & Horkheimer)

“A situação factual do capitalismo não é uma questão de crise econômica ou política, mas de uma catástrofe da essência humana” (Marcuse)

De que modo tudo se relaciona com a minha referida passagem? Subverti minha existência, redirecionei minha vida a partir do ponto em que me vi isolado no meio de centenas de autômatos. A pequenez que ronda nossa geração marcou-me com ferro quente um código de barra na testa. Vivi boa parte de minha vida sem viver, sem sonhar, sem pensar além da lógica infernal da produção e do consumo. Ainda vivo. Não podemos deixar de fazer parte da totalidade diabolicamente mágica e escravizante. Este é nossa sociedade, as mães carinhosas procuram nomes para os filhos observando as marcas que aparecem na Tv. Jovens querem modificar seus carros para serem respeitados e serem notados – quando é possível tê-los. Outros fazem cirurgia plástica para se parecerem com seus ídolos*. Algumas propagandas criam simulacros tão reais que confundem até os alto-escalões da burocracia parlamentar. O mais novo filão do mercado são as chamadas Cross-medias. Especificamente, elas unem vários tipos de media para pôr na cabeça do indivíduo que ele não pode viver sem a respectiva marca. É impressionante. Assisti a uma reportagem altamente apologética que destacava o potencial envolvido nesse tipo de investimento. A única empresa que até agora participou ativamente como um modelo foi o Guaraná Antártica. O que eles fizeram? Criaram um jogo misturando eventos reais com fictícios para que o consumidor fique diuturnamente entretido, tentando adivinhar os mistérios montados pela empresa. Não vou me prolongar, mas fez-se uma historinha sobre o guaraná da Amazônia e os interesses globais do capitalismo tardio. Para vocês terem uma noção, a empresa inventou tantas coisas e fatos – pessoas, organizações – que até se aproveitaram da visita do Bush para se infiltrarem e “protestarem” contra uma “empresa de brincadeirinha” que queria “roubar” a fruta exótica dos trópicos. Ou seja, é tudo mercadoria. Aproveitar-se de uma manifestação pública e política para fazer publicidade barata faz parte do jogo. Ser um manifestante é apenas mais uma das múltiplas pseudo-personalidades que são ofertadas no mercado, cabe a nós seguimos a onda. Num belo dia somos punks, no outro dia grunges, no outro dia intelectuais, outro dia engajados politicamente; fazemos isso desde que por trás tenha uma mega-estrutura que engendre e fabrique essas necessidades. A contra-cultura vira sabão em pó, como a greve de trabalhadores vira mortadela. Adorno retrata de forma esplêndida a essência desse mundo: “personalidade”, diz ele, “significa para elas [indivíduos] pouco mais do que possuir dentes deslumbrantemente brancos e estar livres de suor nas axilas”.

“Os homens podem se sentir felizes mesmo sem sê-lo de modo algum” (Marcuse)
REIFICAÇÃO

Ser reconhecido, em todos os aspectos, só se torna possível pela condição de mercadoria. Não temos mais nada que diga respeito a nós mesmo, somente aos modos de vida proporcionados pelo prazer de consumir, de adquirir novidades e de ser admirado por tal atitude. Essa última palavra também é representativa. Quantas vezes ouvimos “atitude” nos vários campos da vida mercadológica. Ter atitude é usar calça rasgada, não é? Pois então, hoje as indústrias fabricam calças já rasgadas. Em grandes lojas de departamento é quase que impossível não notar essas coisas. Os ornamentos antes usados pelos punks, hoje fazem parte da C & A por meio de figurinos prontos. Compram-se roupas com conceitos pré-formados – frases prontas – em que o único intuito é usar e descartar, tal qual fazemos com qualquer coisa no mundo. Só existimos e somos notados por meio das marcas e dos conceitos que elas representam. As mercadorias determinam nossa concepção de mundo. Um dos meios de lembrarmos as outras pessoas que existimos é colocar grandes adesivos no vidro-traseiro do carro com os dizeres: “Cuidado! Pedro a bordo!”. Quando não encontramos vários nomes diferentes, e isso tudo para lembrar o outro motorista que, ali, é transportada tal pessoa – crianças e bebês. Ou seja, para dizer que alguém existe é preciso recorrer a adesivos e carros novos. “Seu carro é uma extensão de seu corpo”, essa poderia ser outra propaganda adorável.
Um lamentável acidente aéreo nos lembra o quão perigosa é a nossa relação com o mundo. Muitos seres humanos morreram em frações de segundos, assim como muitos outros são ceifados pela fome diariamente. Mas o fato destacado nos mostra o perigo do dia-a-dia, o passeio de ônibus, a viagem de trem... A técnica tem um poder incrível de modificar tudo, principalmente nossas vidas. Como mostrar nossa indignação perante toda essa barbárie? É só clamar pelas mercadorias! Vítimas trágicas são lembradas com camisetas estilizadas – e como hoje ouvimos esse termo[1]. São empresas que vivem da desgraça humana. Colocar fotos descartáveis em camisetas brancas de algodão é um péssimo meio de nos lembrarmos dos mortos e, além do mais, é de um mau gosto louvável. Todavia, é simples, é rápido e pode ser produzido aos milhões. Já presenciei, num velório de uma pessoa próxima, como a morte se tornou um grande negócio. A empresa cuida de tudo para os familiares e ainda faz alguns banners e pequenas lembranças em homenagem ao falecido. Nada mais do que esses panfletos que algumas pessoas nos entregam nos semáforos dos grandes centros sobre peças de carros, sobre sanduíches em promoção ou sobre desconto na faculdade. Olhamos para o papel por dois segundos e, em seguida, encontramos algum lugar adequado para deixá-lo longe de nosso alcance. A empresa que é responsável pelo túmulo também deixa sua marca e logo para que a família saiba que sempre pode contar com eles. Nas grandes cidades existem lugares específicos para velórios e lá eles são feitos como que numa linha de produção. A prefeitura, para mostrar seu respeito pelo dinheiro público, ainda encontra meios para que se intensifique a produção aritmética de sepultamentos e últimas despedidas, afinal, o que “você quer é que o trabalho seja rápido, produtivo, impessoal e que ainda encontre um tempinho para o futebol na Tv”, esse poderia ser outro comercial bem criativo.

“O problema é o de modificar a própria vontade, de modo a evitar que as pessoas continuem a querer o que querem agora” (Marcuse)
MERCADORIA

Somos controlados pelo poder demiurgo que a ciência confere aos produtos. Quando estamos com fome, empanturramo-nos de comida cheia de gordura, açúcar e sal, em quantidades assombrosas. Essa obsessiva compulsão sacia nossa vontade de mundo, põe fim na carência de vida. O sexo gratuito libera Eros para um prazer frio e mecânico. Quando estamos felizes, prolongamos nossa felicidade imediata com bebidas alcoólicas e controles de televisão. Se, por outro lado, estamos tristes, como que num passe de mágica, a tristeza vai embora após uns bons e eficientes anti-depressivos. E é assim que vivemos atualmente. Quando estamos fracos, tomamos anabolizantes; se quisermos ficar magros consultamos as espantosas dietas. Bulimia, anorexia e outras podem ser requisitadas, se necessárias. Tal qual um feto na barriga da mãe vivemos em contínuo estado de letargia, mas muito bem alimentados e seguros. Você ainda quer se rebelar contra isso? Não seria melhor passar pela locadora e ver um filme? É melhor permanecermos adormecidos e emudecidos pelo feitiço das mercadorias. Como diria nossa ministra do turismo: “Relaxa e goza”; poderíamos acrescentar: por toda a vida árida e enfadonha que a felicidade programada nos proporciona.
O mundo-mercadoria tornou-se próximo aos meus empreendimentos intelectuais após sucessivas leituras de fantásticos autores alemães. É a partir de um determinado ponto de minha vida, como foi supracitado, que inquietações diversas e não-usuais passaram a ser diárias. Num determinado momento da minha vida conheci um batalhão de robustos guerreiros heréticos. Aos poucos fui me situando em meio a eles e reconhecendo e admirando a riqueza profunda habitada no corpo humano que nos une. Partilhar do desejo dos homens de criar uma existência realmente humana é dar prova da grandeza da vida. O saber que toca em nossos corações é aquele que penetra, com mais intensidade e amor, no que é mais vivo. Os guerreiros – de que falei há pouco – foram se multiplicando; ao descobrir um, parecia que este um era escoltado por outros muitos e estes por outros tantos. Marx, Hegel, Adorno, Horkheimer, Lukács, Bloch, Weber, Fromm, Benjamin, Nietzsche, Marcuse, Freud, entre outros tantos... Nunca imaginei que esses nomes ficariam tão presentes em minha existência.

“A crítica arrancou as flores imaginárias que enfeitavam as cadeias, não para que o homem use as cadeias sem qualquer fantasia ou consolação, mas para que se liberte das cadeias e apanhe a flor viva” (Marx)

O norte-paranaense trouxe-me amigos que transcendem, em idéias e sentimentos, a busca pela reprodução diária da existência. Conheci muitas mentes lucidamente autênticas por esses anos. Muita falta farão, e já fazem, em meus pensamentos. Como era bom discutir naquele campus e sob a copa das árvores. A vida passava bem devagar e isso propiciava com que pudéssemos tentar desvendá-la muito sucintamente. Em poucos metros quadrados encontrávamos tantos diálogos distintos. A crise era imanente e instigante: possibilidades múltiplas de compreender o espírito humano. A realidade crua e brutal, que a teoria nos proporcionava, era contrastante com os límpidos verdes campos que nos circundavam.
Foram tempos memoráveis que marcaram e modificaram profundamente o meu ser. Despertaram-se para mim, os mais terríveis e brilhantes tesouros da humanidade. Compreendi a força e a fecundidade que existe por detrás das gélidas e estéreis estantes das bibliotecas e dos empoeirados sebos da vida. A força de dizer ao mundo, tal qual disse Fromm, em momentos de miséria e degradação: “que o humano prevaleça!”.

“A reforma da consciência consiste exclusivamente no fato de deixar que o mundo tome conhecimento de sua consciência, de despertar o mundo do sonho que está sonhando a seu próprio respeito, de interpretar para o mundo as suas próprias ações (...) Nossa divisa deve ser: reforma da consciência, não através de dogmas, mas pela análise da consciência mística autoconfundida, seja pelo conteúdo político ou religioso. Veremos, então, que o mundo já possuía, há muito tempo, o sonho de alguma coisa, da qual só deve ter consciência para possuí-la na realidade. Veremos que não estamos tratando com um enorme hiato entre o passado e o presente, mas com a realização dos pensamentos do passado. Finalmente, veremos que a humanidade não começa nenhuma tarefa nova, mas realiza a velha tarefa conscientemente (...) isso é uma confissão, nada mais. Para ter seus pecados perdoados, a humanidade tem apenas de explicá-los tal como são” (Marx)
* Programas da Mtv. Existe um outro programa em que garotos e garotas, sem se conhecerem, tentam descobrir a personalidade alheia apenas conferindo marcas de roupas, gostos musicais e tudo mais que se precisa saber para ter a certeza se a referida pessoa está ou não está na onda, se é ou não é legal.


[1] Tudo é estilizado, mas em larga escala, é uma verdadeira reprodução em série de roupas personalizadas, feitas com sua cara, seu estilo; pensando exatamente no seu gosto; “você tem o seu estilo, a Renner tem todos!”

sexta-feira, agosto 03, 2007

Aliterações frias e cadentes

É muito estranha a sensação de escrever atualmente. Muitos não vão concordar comigo, mas existe algo de sombrio quando temos de enfrentar esse pálido complexo de plástico e micro-chips.
Há menos de vinte anos esse “estranho no nino” causa perplexidade. Como pode, um objeto tão insípido causar tanta transformação? De um dia para o outro tomou conta das casas, dos hospitais, das indústrias, das escolas, dos mercados e ainda vai invadir muitos outros ambientes. O que existe de tão especial nesse ente que ainda está adquirindo forma? Os profetas adoram esse mistério, as fábricas de dinheiro não ficam para trás. Não é somente um atavio indigesto, mas também uma miraculosa e mística “caixa mágica”, pela qual confidenciamos as mais pedantes e sórdidas intimidades. Seria a mais pura banalização da vida ou, o meio mais sensato de construir cultura? O que nossos vinte e cinco séculos de cultura diriam? Como se comportariam os grandes escritores de séculos atrás ao acordarem diante de tal objeto? Certamente nunca acreditariam que é a partir dele que nos comunicamos e trocamos informações. É plástico. Será que isso ajuda? Mais parece um instrumento de hospital, como aqueles que ajudam pacientes muito debilitados a viver. Lembra-se do “desliguem os aparelhos e deixem-no morrer em paz”? Pois é, a impressão que me toca é essa. E esse barulho estranho que sai da caixa? Muito mistério. É por aí que seres místicos conduzem nossas vidas. Silenciosamente, sem dar um só tiro ou uma ordem, sempre estamos aqui a apertar os botões. Diante de tudo o que nos é ofertado fica muito difícil resistir. É o pleno deleite. Quanta novidade, quantas horas a fio sem fazer outra coisa, a não ser, apertar os botões. Tem alguma dúvida enquanto escreve? Dê uma olhada no Wikipédia, está tudo lá. Para que procurar mais? Quer um dicionário?
Uma professora uma vez me contou o insólito episódio que sua filha protagonizou em frente ao computador. A escola pediu para que ela fizesse uma pesquisa sobre deuses gregos. E onde fazemos pesquisa atualmente? Pois então, a menina pôs-se a digitar. E onde iria procurar? No Google, é lógico! E qual foi o resultado? Ao invés de Afrodite, Atena e Eros, saíram os galãs de novelas em fotos sensuais.
O que mais pesa nessa história é que ela se passou com uma criança que ainda não dispõe de meios adequados para absorver esse tipo de coisa. Em outros tempos, nem tão distantes assim, quando a professora pedia uma pesquisa sobre qualquer assunto fazia-se necessária a presença em uma biblioteca para se interar do assunto. Quando percorremos essa trajetória temos um contato mais mediado entre as teorias e o mundo. É muito raro alguém entrar numa biblioteca procurando algo em específico e se contentar com aquilo. Lá, cada assunto remete a outro e, desta forma, as pessoas vão construindo redes de aprendizado. Não é fácil encontrar em meio a tantos livros alguma coisa específica sobre racismo, por exemplo. Para encontra-la terá de resgatar muitos outros assuntos pelo caminho, de modo que isso não se processa na busca pela internet. Neste meio tudo segue o instrumentalismo calculista; faz-se pesquisa pelo número e pelo formato dos caracteres das palavras. É seco e direto, sem metáforas, sem ambigüidades, sem contradições; ou é 0 ou é 1. O meio segue a produtividade, a economia de recursos e o maior retorno no menor tempo. Aí, é isso que dá. É só apertar botões.
As gerações mais novas estão perdendo o contato com a escrita feita à mão. É muito mais fácil decorar os caracteres prontos. Não há porque ter de contar historinhas para dizer como o “a” surgiu e que ele é uma casinha. Qualquer criança, por mais nova que seja, sabe que é o apertar de botão que faz como que surja a letra, tão simples quanto pegar um carimbo e sair imprimindo sua marca pelo mundo. Mesmo sem ter consciência daquilo, sem sentir-se pertencente, sem ter muito sentido humano, as crianças vão apreendendo, e de forma rápida, o que é mais importante.
Há um bom tempo vi uma reportagem dizer que o programa mais visto no canal Telecine era aquele que tinha uma grafia próxima da utilizada na internet pelos jovens: Naum, vc, kara, e outros são as palavras mais recorrentes. É impressionante! Perdoem-me os antropólogos que poderiam dizer que isso é uma re-significação e que tudo é cultura. Sinceramente, é uma re-significação escatológica. Temos de estreitar as relações entre cultura e capitalismo, e perceber como este último prejudica tanto o primeiro. Ou então, vamos todos fazer um culto a exacerbação do produtivismo e esperar até quando isso pode se suportar. Mas, enquanto isso e até que a morte nos separe, vamos mantendo nossa vocação de autômatos anônimos. Afinal, como para a máquina?
Não sei.
Sigo uma estranha e soturna voz que insiste em me cobrar:
Aperte os botões!!!

terça-feira, julho 24, 2007

AOS EMUDECIDOS



Oh, a loucura da cidade grande, quando ao entardecer
Árvores atrofiadas fitam inertes ao longo do muro negro
Que o espírito do mal observa com máscara prateada;
A luz, com açoite magnético, expulsa a noite pétrea.
Oh, o repicar perdido dos sinos da tarde.

A puta, em gélidos calafrios, pare uma criança morta.
A cólera de Deus chicoteia enfurecida a fronte do possesso,
Epidemia purpúrea, fome que despedaça olhos verdes.
Oh, o terrífico riso do ouro.

Mas quieta em caverna escura sangra muda a humanidade,
Constrói de duros metais a cabeça redentora.

Georg Trakl (1887 - 1914)
(tradução: Cláudia Cavalcante)

terça-feira, junho 19, 2007

Introdução


"Houve em território grego um grande debate, um debate que decidiu da direcção de toda a história do pensamento, que já não pode afastar-se do caminho do homem" (Parménides, frag. 1), mas tem de seguir pelo caminho dos homens. Devemos restituir aos primeiros heróis desta luta a Protágoras (carregador), a Górgias, a sua glória e reconhecer neles não os negadores de um critério escolástico de verdade, mas os primeiros grandes defensores de que o saber não é uma visão solitária, que o saber é comunicação, e que o não é comunicável ou exprimível não é saber. Quando Massolo dizia estas palavras no início dos anos sessenta entrava no cerne da problemática contemporânea, que de novo se interrogava sobre o significado da dialéctica, sobre o sentido da presença de Marx e de Hegel no nosso tempo. Oferecia-nos também, e de modo explícito, um guia para compreender a história da dialéctica na sua relação com a realidade e com as coisas, no seu sair para fora destas.
A dialéctica - originária da Grécia, pelo menos segundo o nosso modo de interpretar - representou imediatamente, como veremos, um novo ordenamento dos démos (aquele pouco de democracia que foi possível nos alvores da civilização ocidental) contra a ordem aristocrática, ou melhor, tribal, herdeira (ou pelo menosequivalente) daquilo a que nós damos o nome de despotismo oriental. Contra a liberdade do príncipe, de um só, nasciam as constituições livres das cidades e com elas a liberdade de muitos ou, pelo menos, de alguns. Era o fim do mundo dos heróis, dos reis-sábios, dos iluminados. É o início do discurso, da comunicação imposta pela necessidade de encontrar o consenso e o acordo geral nos debates, sobre um conceito jurídico ou político. É a dialéctica. O saber como visão é considerado não-saber, a moral aristocrática "que nasce de um consentimento consigo próprio" é também rejeitada.
Não foi por acaso que recordamos esta intervenção do começo dos anos sessenta, um dos muitos momentos de restauração política e cultural em Itália. Não era por acaso que o autor que citávamos polemiza com Heidegger e, através dele, com Nietzsche, o anti-Sócrates da cultura contemporânea. Sócrates, o dialéctico, o filho de um canteiro, aquele que arrancou a filosofia do empírico e a trouxe para o meio dos homens (como revelou logo Aristóteles, retomado e divulgado por Cícero), teria incarnado o espírito da vingança: "a dialéctica é tão-só uma forma de vingança"; "com a dialéctica a plebe domina". E Nietzsche chamava aos dialécticos, aos pregadores da igualdade, "tarântulas". "O espírito de vingança, é a melhor reflexão dos homens... O ódio da vontade contra o tempo e contra o passado". Parece crônica do nosso tempo, citação de um diário oficial ou oficioso. Aristóteles dará razão aos sofistas e a Sócrates, às "tarântulas". Com a dialética reivindicará a importância da opinião e conquistará para a filosofia o mundo do homem comum, isto é, "aquela inteligência que desejava encontrar uma explicação para tudo, explicação que todos pudessem compreender e levar ao mercado" - e tal definição, que saiu da pena de Heidegger, não soa evidentemente a aprovação ou a elogio. A figura do homem comum que se agarra à sua razão e que quer firmar as suas razões, que se desenvolve ao lado da retórica até se confundir com ela, há-de acompanhar toda a história dos homens, das comunidades humanas reunidas na cidade.
A cidade é o autêntico lugar de origem da dialéctica e este facto explica a importância que ela assume no pensamento medieval. Decerto que aqui é sobretudo técnica da disputa, retórica, mas, em todo o caso, continua a ser defesa das pretensões da razão e da ciência frente a uma ordem fundada, ou que se apresentava como tal, sobre a fé. Depois nascem, por outro lado, a ciência nova e, por outro, as técnicas de produção, como resultado do desenvolvimento da vida citadina, da multiplicação das suas exigências, exigências do homem, criadas pelo homem, que acabarão por ter razão. É a indústria, a sociedade mercantil, o mundo das coisas. À dialéctica como ciência ou técnica dos discursos sobre as coisas vai-se substituindo, precisamente numa época em que se deixou de falar de dialéctica (e isto é particularmente significativo), a dialéctica das coisas. Filosofia, política, história, sociologia e antropologia entrelaçam-se e confundem-se na era que prepara e acompanha a revolução industrial. É uma época de grandes tensões. A coroá-la aparecem, de um lado, a Revolução Francesa e do outro, Kant.
Note-se apenas que Kant redescobre a dialéctica e restitui-a à filosofia; trata-se, porém, de uma dialéctica transfigurada: é uma dialéctica da razão, é a própria razão, é uma sua obra necessária e inevitável, mas é, ao mesmo tempo, a dialéctica da realidade, o sinal da presença de um mundo que não pode deixar de ser considerado como contradição e antítese. Contradição e antítese: o mundo, real, do homem e da dua cidade, agora sociedade burguesa, do cidadão despedaçado pela propriedade. Neste sentido, de kant a Marx fecha-se e reabre-se aquele grande debate que veio à luz na Grécia: o mundo da antítese, da alienação, o único mundo em que o homem pode e deve viver e trabalhar - porque é o mundo que é, e não uma invenção dos filósofos - é verdadeiramente o mundo, a cidade do homem, para o homem? Se o homem, alienado, quiser reencontrar-se a si próprio, superar esse ser-outro, só poderá conseguí-lo transformando, destruindo a realidade histórica que torna (necessariamente) possível essa situação. A dialéctica das coisas (e também a luta de classes) impõe a transformação e a destruição das coisas: a construção de um mundo mais humano exige-o. Este o resultado, o nó histórico do pensamento entre a Revolução Francesa e Marx. A filosofia reconhece a realidade dialéctica e reconhece que esta realidade é desmanizante; tranformá-la significa exactamente fazer apelo à dialéctica e, ao mesmo tempo, suprimi-la. Não é realmente uma tese, mais ou menos paradoxal: realizar a filosofia que reconheceu que a realidade e ela própria são dialéctica, significa reconhecer que a dialéctica não é um problema meramente filosófico. Depois de Marx, outras mãos recolheram a filosofia; afirma-o Engels, ao reflectir sobre a gênese do "marxismo": "o proletariado é herdeiro da filosofia clássica alemã". É o destronamento da dialéctica, o seu afastamento.
Se nos permitem antecipar algo da conclusão da nossa história podemos dizer que, em rigor de termos, a dialéctica só existe hoje para aqueles que põem o problema da "dialéctica" como problema filosófico. Hoje, mas não apenas hoje, na sua história, a dialéctica aparece como elemento de mediação para aqueles filósofos que atacam com um interesse positivo a política e a realidade social e se deixam prender por ela. Exactamente por isto, exactamente por não ser um problema "filosófico", o debate que emergiu no e do mundo grego está ainda aberto, actualemente. É ainda o debate entre o saber como visão e o saber como comunicação, entre a escolástica, ou melhor, as escolásticas, isto é, as filosofias que filosofam sobre filosofia (um facto presente também no marxismo contemporâneo) e a intervenção do homem, político ou filósofo, que não reconhece a pretensão da consciência privada de iniciar e de conter o sentido da filosofia, entre o "idealismo" das escolásticas (e da dialéctica: mas, neste caso, se o dissemos e a história que vamos reconstruir têm um sentido, não se trata de dialéctica), das metodologias abstracas, das análises recorrentes sobre "estruturas" e a investigação, a que por tradição continuamos a dar o nome de filosofia, na medida em que ela se reconhece numa situação histórica real e procura pôr a descoberto as suas componentes (estruturais, superstruturais e ideológicas), essa investigação que só em abstracto é ou filosófica ou científica ou histórica, mas, de facto, mantém firma a unidade destas diferenças e determinações e se constrói sobre essa unidade. Marx e Engels assinalaram já o fim da "separação" entre ciências humanas e naturais, entre história do homem e história da natureza, entre dialéctica, como método para compreender a realidade a partir de dentro, e filosofia como sistema, como construção ideológica ou itinerário pessoal posto como fim.
Mas sejamos sinceros, que sabemos nós hoje deles, imersos nas ecolásticas, incapazes de nos opormos às restaurações que se processam? O debate contemporâneo, a que nos referimos brevemente, demonstra, por outro lado, a verdade, e, por outro, o não-sentido das nossas preocupações, das nossas incapacidades. Mas aponta-nos também o caminho que temos a percorrer. Então, e só neste sentido, podemos afirmar que continua vivo o espírito da dialéctica, isto é, a necessidade a que Sócrates se referia de viver na cidade, de não bastar a contemplação dos campos e das àrvores. A filosofia tem necessidade de realidade. Só neste sentido poderemos reafirmar a lição do grande debate que teve o seu início na Grécia: no princípio era a dialéctica, porque no princípio era a cidade.
SICHIROLLO, Lívio. Introdução. In: ______. Dialéctica. Lisboa: Presença, 1973.

segunda-feira, junho 18, 2007

O Pensamento


Crer que a verdade de uma teoria é a mesma coisa que sua fecundidade é um erro. Muitas pessoas parecem, no entanto, admitir o contrário disso. Elas acham que a teoria tem tão pouca necessidade de encontrar aplicação no pensamento, que ela deveria antes dispensá-lo pura e simplesmente. Elas interpretam toda declaração equivocadamente no sentido de uma definitiva profissão de fé, imperativo ou tabu. Elas querem submeter-se à Idéia como se fora um Deus, ou atacá-la como se fora um ídolo. O que lhes falta, em face dela, é a liberdade. Mas é próprio da verdade o fato de que participamos dela enquanto sujeitos ativos. Uma pessoa pode ouvir frases que são em si mesmas verdadeiras, mas só perceberá sua verdade na medida em que está pensando e continua a pensar, ao ouvi-las.

Hoje em dia, esse fetichismo exprime-se sob a forma drástica. Pedem-se prestações de contas pelo pensamento expresso, como se ele fosse a própria práxis. Justamente por isso toda palavra é intolerável: não apenas a palavra que pretende atingir o poder, mas também a palavra que se move tateando, experimentando, jogando com a possibilidade do erro. Mas: não estar pronto e acabado e saber que não está é o traço característico daquele pensamento e precisamente daquele pensamento com o qual vale a pena morrer. A proposição segundo a qual a verdade é o todo revela-se idêntica à proposição contrária, segundo a qual ela só existe em cada caso como parte. Dentre as desculpas que os intelectuais encontraram para os carrascos - e, na última década, eles não ficaram de braços cruzados com relação a isso - a mais deplorável é a desculpa de que o pensamento da vítima, responsável por seu assassinato, fora um erro.


ADORNO, Th; HORKHEIMER, M. O Pensamento. In: ______. Dialética do Esclarecimento. tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

terça-feira, abril 17, 2007

Qual a atualidade em Adorno?

O que não se diz é que o terreno no qual a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesma. Os automóveis, as bombas e o cinema mantêm coeso o todo e chega o momento em que seu elemento nivelador mostra sua força na própria injustiça à qual servia”.
Adorno e Horkheimer, Dialética do esclarecimento

Na dedicatória de Minima Moralia, livro escrito entre o período de 1944 até 1947, Adorno (1993) propõe uma compreensão partindo de “reflexões a partir da vida danificada”, de um mundo fragmentado em que houve a “dissolução do sujeito”, no qual o todo se tornou reificado e o indivíduo foi reduzido ao caráter de coisa, meio, objeto, instrumento, um “acessório de maquinaria” ocultado da verdade de que “não há mais vida” (ADORNO, 1993, p.7). A dura constatação do filósofo frankfurtiano reflete uma vida cada vez mais empobrecida dos indivíduos em experiências coletivas e em promover relações mais humanas. A vida fácil, segura e agradável que se origina com os acúmulos técnicos dos avanços tecnológicos provém e é sustentada pela base desigual das relações de produção, na qual muitos são submetidos a uma vida penosa e sacrificante “desce[ndo] até o nível de mercadoria, e de miserabilíssima mercadoria” (MARX, 2004, p.110) para a benesse de alguns poucos[1]. O indivíduo vira coisa porque “ele não é o seu trabalho, mas o de outro” (MARX, 2204, p.114) e, desse modo, “a vida revela-se simplesmente como meio de vida” (MARX, 2004, p.116, grifo do autor). Nesse mundo, podemos verificar que não só os homens viraram mercadoria, como tudo que deles provêm[2], até mesmo as idéias (ADORNO, 1970a, p.180).
Adorno averiguou, então, que este era um mundo onde todas as mediações do homem estavam pautadas em relações de troca, em relações de consumo, as quais seriam reguladas pela ganância do mercado. “Se a estrutura dominante da sociedade reside na forma de troca, então a racionalidade desta constitui os homens; o que estes são para si mesmos, o que pretendem ser, é secundário” (ADORNO, 1970b, p.147). O importante é fomentar a valorização do capital, portanto, a ninguém ocorre que poderiam existir tarefas que não se deixassem expressar no valor de troca (ADORNO, 1993, p.171). “Com a valorização do mundo das coisas, aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens” (MARX, 2004, p.111, grifos do autor), ou seja, a técnica não é só usada como uma útil ferramenta na produção de bens, como também, uma mais útil ainda forma de manipulação e de dominação dos anseios humanos. Há implicações extremamente importantes nesses apontamentos que direcionam para uma vida cada vez mais mecânica e homogênea.
É a partir dessa verificação que Adorno chega à conclusão de que “no interior da sociedade coisificada, nada tem chance de sobreviver que por sua vez não seja coisificado” (ADORNO, 2005a, p.116). Assim sendo, “o sujeito retraído sobre si, separado de seu outro por um abismo, é incapaz de ação” (ADORNO, 1970a, p.160). Sem ação devido ao seu pouco grau de união com os outros e sem reflexão e compreensão à altura das contradições imanentes a uma realidade cada vez mais complexa, o homem agora se vê numa desilusão permanente no interior da ordem capitalista.

Não só o espírito se orienta segundo a sua venalidade mercadológica e, com isso, reproduz as categorias sociais preponderantes, mas se assemelha, objetivamente, ao status quo, mesmo onde, subjetivamente, não se converteu em mercadoria. As malhas do tecido social vão sendo atadas cada vez mais de acordo com o modelo de ato de troca. Permite à consciência individual cada vez menos espaço de manobra, passa a preformá-la de um modo cada vez mais radical, como que lhe cortando, a priori, a possibilidade da diferença, que passa a se reduzir à mera nuance dentro da homogeneidade da oferta (ADORNO, 1986, p.78).




Nesta sociedade, partindo do pressuposto da relação de troca capitalista empreendida pela moeda, os indivíduos são forçados a manter relações que não denotam qualquer caráter eminentemente humano. Trata-se de relações frias, impessoais, muitas vezes mediadas por máquinas (MARCUSE, 1999, p.81; ADORNO, 1970c, p.92). Desse modo, as pessoas podem viver nesta sociedade sem ter qualquer obrigação com o próximo, sem qualquer companheirismo, ou mesmo, sem qualquer dever para com o coletivo. “O homem médio dificilmente se importa com outro ser vivo com a intensidade e persistência que demonstra por seu automóvel” (MARCUSE, 1999, p.81). No entanto, os direitos à posse e a uma competição desleal são mantidos e assegurados por uma cortina ideológica que escamoteia as desigualdades das relações de produção da vida material.
[1] “Se a sua atividade constitui para ele um martírio, tem de ser fonte de deleite e de prazer para outro” (MARX, 2004, p.119).
[2] “O trabalho não produz apenas mercadorias; produz-se também a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria” (MARX, 2004, p.111).

Trecho de um trabalho meu: O Desenvolvimento Paradoxal do Progresso e a Hipertrofia da Razão Instrumental

segunda-feira, abril 16, 2007

Investigações sobre emancipação, cinema e a "gaiola de ferro"


























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Curta-metragem "A Vida Não Vive" (Diretores Amarildo Pessoa e Kátia Jacarandá)




Ensaio audiovisual, com música de Villa-Lobos, a partir dos conceitos de Adorno e do pensamento crítico da Escola de Frankfurt, realizado pelo professor de filosofia Amarildo Pessoa e pela conceituada artista plástica goiana Kátia Jacarandá.




Reprodução autorizada mediante citação da TV Câmara


segunda-feira, abril 02, 2007

Editora UFMG lança em língua portuguesa obra-prima de Walter Benjamin








Obra-prima de Walter Benjamin, Passagens (1927-1940) acaba de ser traduzida, pela primeira vez, para a língua portuguesa. A edição inédita do livro é fruto de parceria entre a Editora UFMG e a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.
Representativos da burguesia européia do século 19, que então se desenvolve e se consolida, o flanêur, a prostituta, o jogador ou o colecionador - e seu cotidiano moderno - são analisados, ao longo de vários anos, pelo olhar crítico de Walter Benjamin. A partir de Paris, onde freqüenta as tradicionais galerias cobertas, o pensador alemão transforma suas observações na monumental obra agora traduzida para o português.

O livro do filósofo alemão reúne fragmentos por ele compilados ao longo dos anos em que promoveu pesquisas na Biblioteca Nacional de Paris. Na inédita edição em língua portuguesa, "a obra em progresso" de Benjamin foi publicada com 1.168 páginas. Os olhos críticas do autor percorrem a movimentação nas galerias cobertas que passaram a povoar Paris na virada do século 18 para o 19, como a do Cairo, de l'Opera, Vivienne ou Véro-Dodat. Nelas, o escritor percebe os principais elementos da nova ordem de socialibilidade implementada pela burguesia.

Equipe de especialistas
A tradução de Das Passagen-Werk, título original da obra do filósofo alemão, reuniu equipe de especialistas que, durante anos, dedicou-se a percorrer as passagens benjaminianas para que o leitor de língua portuguesa pudesse também realizar essa travessia. À proposta pioneira da Editora UFMG, somou-se o trabalho da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, que colaborou com a excelência gráfica exigida para trabalho de tal natureza. O projeto contou com apoio da Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa (Fundep) e subvenção do Goethe-Institut.

Confira os dados técnicos da tradução inédita da obra-prima de Benjamin:

Edição alemã
Rolf Tiedemann

Edição brasileira
Willi Bolle (Organização)
Olgária Chain Féres Matos (Colaboração)

Tradução do alemão
Irene Aron

Tradução do francês
Cleonice Paes Barreto Mourão

Revisão técnica
Patrícia de Freitas Camargo

Pósfácios
Willi Bolle e Olgária Chain Féres Matos

Revisão de textos e normalização
Ana Maria de Moraes

Revisão de Provas
Lílian de Oliveira, Lourdes da Silva do Nascimento e Sayonara Gontijo

Formatação
Cássio Ribeiro e Paulo Schmidt

Design Gráfico e capa
Paulo Schmidt

Produção Gráfica
Paulo Schmidt e Warren Marilac