quarta-feira, janeiro 23, 2013

Wissenschaf: ein Glaube (?)


Na ciência as convicções não têm nenhum direito de cidadania, assim se diz com bom fundamento: somente quando elas se resolvem a rebaixar-se à modéstia de uma hipótese, de um ponto de vista provisório de ensaio, de uma ficção regulativa, pode ser-lhes concedida a entrada e até mesmo um certo valor dentro do reino do conhecimento — sempre com a restrição de permanecerem sob vigilância policial, sob a polícia da desconfiança. — Mas isso, visto com mais precisão, não quer dizer: somente quando a convicção deixa de ser convicção, ela pode ter acesso à ciência? A disciplina do espírito científico não começa com o não mais se permitir convicções?... Assim é, provavelmente: só resta perguntar se, para essa disciplina poder começar, já não tem de haver uma convicção,e aliás tão imperiosa e incondicional, que sacrifica a si mesma todas as outras convicções? Vê-se que também a ciência repousa sobre uma crença, não há nenhuma ciência ‘sem pressupostos’. A questão, se é preciso verdade, não só já tem de estar de antemão respondida afirmativamente, mas afirmada em tal grau que nela alcança a expressão esta proposição, esta crença, esta convicção: ‘Nada é mais necessário do que a verdade, e em proporção a ela todo o resto só tem um valor de segunda ordem’. — Essa incondicionada vontade de verdade: o que é ela? É a vontade de não se deixar enganar? É a vontade de não enganar? Pois também desta última maneira poderia ser interpretada a vontade de verdade: pressuposto que sob a generalização ‘eu não quero enganar’ esteja incluído também o caso particular ‘eu não quero me enganar’. Mas por que não enganar? Mas por que não se deixar enganar? — Note-se que os fundamentos do primeiro caso ficam em um domínio totalmente outro do que os do segundo caso: não se quer deixar-se enganar, sob a hipótese de que é pernicioso, perigoso, fatal ser enganado — nesse sentido, ciência seria uma longa prudência, uma cautela, uma utilidade, contra a qual, porém, se poderia, com justiça, objetar: como? o não-querer-se-deixar-enganar é efetivamente menos pernicioso, menos perigoso, menos fatal? O que sabeis de antemão do caráter da existência, para poder decidir se a maior vantagem está do lado do desconfiado incondicional ou do confiante incondicional? Mas, caso ambas forem necessárias, muita confiança e muita desconfiança: de onde então poderia tirar a ciência sua crença incondicionada, e sua convicção, que repousa sobre ela, de que verdade é mais importante do que qualquer outra coisa, do que qualquer outra convicção? Justamente essa convicção não poderia ter surgido, se verdade e inverdade se mostrassem ambas constantemente como úteis: como é o caso. Portanto — a crença na ciência, que agora está aí incontestavelmente, não pode ter tirado sua origem de um tal cálculo utilitário, mas, antes, a despeito de lhe ter sido constantemente demonstrada a inutilidade e periculosidade da ‘vontade de verdade’, da ‘verdade a todo preço’. ‘A todo preço’: oh, nós o entendemos bastante bem, depois que oferecemos e trucidamos uma crença depois da outra sobre esse altar! — Conseqüentemente, ‘vontade de verdade’ não quer dizer ‘eu não quero me deixar enganar’, mas sim — não há nenhuma escolha — ‘eu não quero enganar, nem sequer a mim mesmo’: e com isso estamos no terreno da moral. Pois basta perguntar-se fundamentalmente: ‘Por que não queres enganar?’, especialmente se houvesse a aparência — e há essa aparência — de que a vida depende de aparência, quero dizer, de erro, impostura, disfarce, cegamento, autocegamento, e se, por outro lado, a grande forma da vida sempre se tivesse mostrado, de fato, do lado dos mais inescrupulosos polytropoi. Um tal propósito poderia, talvez, interpretado brandamente, ser um quixotismo, um pequeno desatino entusiasta; mas poderia também ser algo ainda pior, ou seja, um princípio destrutivo, hostil à vida... ‘Vontade de verdade’ — isso poderia ser uma velada vontade de morte. — Dessa forma a questão: por que ciência? reconduz ao problema moral: para que em geral moral, se vida, natureza, história, são ‘imorais’? Sem dúvida nenhuma, o verídico, naquele sentido temerário e último, como o pressupõe a crença na ciência, afirma com isso um outro mundo do que o da vida, da natureza e da história; e, na medida em que afirma esse ‘outro mundo’, como? não precisa, justamente com isso, de... negar seu reverso, este mundo, o nosso mundo?... No entanto, já se terá compreendido aonde quero chegar, ou seja, que é sempre ainda sobre uma crença metafísica que repousa nossa crença na ciência — que também nós, conhecedores de hoje, nós os sem-Deus e os antimetafísicos, também nosso fogo, nós o tiramos ainda da fogueira que uma crença milenar acendeu, aquela crença cristã, que era também a crença de Platão, de que Deus é a verdade, de que a verdade é divina... Mas, e se precisamente isso se tornar cada vez mais desacreditado, se nada mais se demonstrar como divino, que não seja o erro, a cegueira, a mentira — se Deus mesmo se demonstrar como nossa mais longa mentira?
Friedrich Nietzsche (1844-1900), A Gaia Ciência, § 344.