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terça-feira, junho 17, 2014

Tecnofilia

A tecnologia liberta ao mesmo tempo em que escraviza. A mudança que ela provoca altera profundamente o equilíbrio do ambiente.
Até há pouco tempo, as ferramentas utilizadas (uma chave de fenda, por exemplo) tinham pouca ou nenhuma interferência na sociedade. Hoje, elas desempenham papel central, atacando os pilares tradicionais à medida que propõem nova cultura cuja única meta parece ser a eficiência dos processos.
Família, trabalho, governo, escola, todos os antigos pilares sociais vêm sendo questionados. Em seu lugar, se propõe uma espécie de imperativo estatístico, que subordina as reivindicações da natureza, da biologia e das emoções, sem se responsabilizar pelo impacto humano.
O "como" de cada nova invenção ofusca seu "porquê". Objetividade, eficiência, especialização, padronização e mensuração tornaram-se os únicos objetivos –naturais, esperados e inquestionáveis.
A ênfase na eficiência disfarça a questão óbvia: que processo a tecnologia torna mais eficiente? Os antigos objetivos parecem ter ficado em segundo plano. O importante é se acomodar a novas exigências. A pesquisa de mercado se torna mais importante do que a de produto. Não há mais pessoas, só consumidores.
Quando a tecnologia se transforma na maior conquista da humanidade, o resultado é uma espécie de idolatria, em que cada elemento social busca validação e encontra satisfação na técnica que deveria servi-lo. Tecnófilos contemplam a tecnologia como uma musa, perfeita.
Não há dúvida de que a tecnologia traz progresso, mas é uma aliada que demanda fidelidade e obediência. Quem a segue sem questionar cria uma cultura sem fundamento moral, que se sobrepõe a processos mentais e a relações sociais.
À medida que nos acomodamos ao mundo em que o progresso tecnológico se torna objetivo central, esquecemos que ele diminui a convivência, aumenta o individualismo e submete dados pessoais ao escrutínio de instituições. Cada pessoa é mais facilmente monitorada, classificada, reduzida a número, perplexa com decisões aparentemente irracionais feitas em seu nome.
O computador é uma tecnologia de comando e controle. Seu domínio mostra a perda de confiança no julgamento humano e na subjetividade das dimensões morais. Só fatos importam, não há incentivo ao pensamento crítico. Palavras relevantes, como "liberdade", "verdade", "inteligência" e "memória", são redefinidas discretamente.
O "perfeito", em tempos descartáveis, já não é tão importante quanto a performance. É mais importante fazer rapidamente do que bem. A regra da indústria se tornou "lance antes, conquiste mercado, corrija depois". A quantidade de versões beta e "recalls" não deixa dúvidas.
Toda cultura precisa negociar com a tecnologia. A oposição não deve ser à técnica, mas à sua idolatria, que descarta críticas. A engenhosidade tecnológica é digna de admiração. Mas não é mais importante do que as artes, a música, a arquitetura, a literatura e a ciência.
É preciso cultivar uma ambivalência digital. Não se pode aceitar a eficiência como principal objetivo das relações. A tecnologia não é parte da ordem natural das coisas.
Essa postura crítica tende a devolver a tecnologia ao seu devido lugar e, no processo, torná-la melhor. 

Texto de Luli Radfahrer publicado na Folha de São Paulo do dia 16/062014

quarta-feira, setembro 12, 2007

Eu, Etiqueta



Em minha calça está grudado um nome, que não é meu de batismo ou de cartório,
Um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida que jamais pus na boca, nessa vida,
Em minha camiseta, a marca de cigarro que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto que nunca experimentei,
Mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido de alguma coisa não provada,
Por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu lençol, meu chaveiro, minha gravata e cinto e escova e pente,
Meu copo, minha xícara, minha toalha de banho e sabonete,
Meu isso, meu aquilo, desde a cabeça ao bico dos sapatos,
São mensagens, letras falantes, gritos visuais,
Ordens de uso, abuso, reincidências, costume, hábito, premência,
Indispensabilidade,
E fazem de mim homem-anúncio itinerante, escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É duro andar na moda, ainda que a moda seja negar minha identidade,
Trocá-la por mil, açambarcando todas as marcas registradas,
Todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser Eu que antes era e me sabia
Tão diverso de outros, tão mim mesmo, ser pensante sentinte e solitário
Com outros seres diversos e conscientes de sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio, ora vulgar ora bizarro
Em língua nacional ou em qualquer língua (Qualquer principalmente.)
E nisto me comprazo, tiro glória de minha anulação.
Não sou – vê-lá – anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago para anunciar, para vender em bares, festas, praias, piscinas,
E bem à vista exibo esta etiqueta global no corpo que desiste
De ser veste e sandália de uma essência tão viva, independente,
Que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora meu gosto e capacidade de escolher,
Minhas idiossincrasias tão pessoais, tão minhas que no rosto se espelhavam
E cada gesto, cada olhar, cada vinco da roupa. sou gravado de forma universal,
Seio da estamparia, não de casa, da vitrine me tiram, recolocam, objeto pulsante mas objeto
Que se oferece como signo de outros objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso de ser não eu, mas artigo industrial,
Peço que meu nome retifiquem. Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é Coisa. Eu sou a coisa, coisamente.
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

domingo, outubro 17, 2004

TV dominical merece, mas não é desligada

BIA ABRAMO COLUNISTA DA FOLHA

Apesar de ser um apelo razoável, hoje, entre 15h e 16h, dá para prever que não serão muitas as TVs desligadas em sinal de protesto. A idéia, da campanha Quem Financia a Baixaria é Contra a Cidadania, de usar o boicote como forma de pressão até que é boa, mas o domingo parece ser o dia menos adequado para uma mobilização desse tipo.De certa maneira, a programação de domingo é das mais representativas daquilo que se costuma classificar como baixaria, por que é quando a TV regride a seu estágio mais primitivo. A caixa preta a um canto da sala tem que mostrar movimento, som, luzes, cores. Tem que oferecer distração, em seu sentido mais concreto. Mas não é que, então, se reserva o melhor da TV para o domingo.Parece ser o contrário: é o dia da letargia televisiva mais profunda, em que o imperativo é inventar a ilusão do movimento, de maneira que o telespectador fique o mais quieto possível diante da tela. O que não parece ser fácil. Os executivos da TV arrancam os cabelos para acertar na ilusão mais capaz de iludir o telespectador de que aquilo que ele vê é divertido, interessante etc.Não é à toa que os principais programas dominicais precisam de animadores. Cabe ao (à) apresentador(a) criar uma atmosfera de histeria que dê a impressão de que está acontecendo ali alguma coisa de fato. Para o tempo escorrer lento do outro lado da tela, o (a) apresentador(a) tem que imprimir sempre um tom de urgência, de exclusividade.Domingo, apesar de dia do descanso no mundo real, é também o dia da disputa mais acirrada por audiência. A concorrência entre os programas é coisa que se leva a sério, tão a sério que se faz de tudo para ganhá-la. Está aí o Gugu respondendo a processo por ter levado ao ar uma entrevista falsa com um membro do PCC mais falso ainda.Por mais que a TV no domingo seja realmente o fim da picada e que, portanto, mereça ser calada, talvez seja o dia do telespectador mais passivo. Provavelmente, quem está hoje diante da TV é porque não tem ou não se interessa por outras alternativas de lazer. Em ambos os casos, é difícil renunciar ao barulho e animação, ainda que artificial, da TV para preencher esse vazio.De qualquer maneira, desligar a TV, seja hoje ou em qualquer outro dia, é dos poucos instrumentos de pressão do telespectador. Esse tipo de campanha tem efeitos mais simbólicos do que efetivos, está claro, mas é nisso, por outro lado, que reside a sua importância. Afinal, é com isso mesmo que a mídia, e a TV, portanto, trabalha, com representações.Um dos símbolos mais plásticos e essenciais da TV é o telespectador que engole tudo o que lhe é destinado, sem abrir o bico. Se se dissemina a idéia de que o telespectador não deve engolir tudo o que lhe destinam -mesmo que os resultados numéricos não sejam lá muito eloqüentes e ainda que seja aos poucos -, alguma coisa sempre acontece.