quinta-feira, setembro 08, 2011

Cotidiano insosso: corte de cabelo

Quando os primatas passaram a se parecer com o que somos hoje, homo sapiens, as noções de higiene e os cuidados com o corpo tornaram-se, aos poucos, marcas do nosso processo civilizatório. Não seriamos mais animais, a partir desse momento, mas, sim, homens limpos e bem tratados.

Nossa inimiga declarada: a natureza. Criamos meios para que ela não pudesse mais correr livremente por meio de nossos corpos (pelo menos no que diz respeito a aparência física). Os cheiros não são agradáveis, a pele fica suja com a oleosidade, as unhas crescem e os pêlos tomam conta de tudo. Em um determinado momento histórico-social, essas questões começaram a fazer sentido para a sociedade ou para a parte dela que podia se dar ao luxo de pensar sobre isso. Diante disso tudo, a necessidade social de cortar o cabelo tomou forma material no salão de beleza.
Cortar o cabelo. Para os homens, em geral, é uma ação básica para mantê-lo curtinho (pelo menos entre os países ocidentais). Já para as mulheres o importante é aparar as pontas. Mas não importa, essa prática é inevitável em nossa sociedade, a não ser que você viva em alguma seita religiosa ou coisa do tipo.
Não sei quanto a outros homens, mas eu detesto cortar o cabelo. Reluto até o último minuto antes de me decidir a entrar em um salão de cabeleireiro. Não tenho uma explicação lógica para isso, só sei que algumas atividades do dia-a-dia são de difícil execução para as minhas limitadas capacidades práticas.
Fora alguns salões nos quais encontramos senhores de idade que são agradáveis e que têm uma boa conversa, na maior parte das vezes o que sobra é a rotina incômoda de uma operação meramente mecânica (quase como aparar o pêlo). Não culpo os trabalhadores por isso. Atualmente, mesmo esse pequeno ramo do comércio já se encontra muito bem inserido na grande teia da produção de valor. Poucos são os salões que ainda operam nas características de prestação de serviços feitas pelos chamados autônomos.
O que vejo, principalmente nas cidades de grande e médio porte, são salões que mais parecem indústrias de produção em série de cortes de cabelo. Envolto nesse processo, há uma diversa mescla de produtos e atividades correlatas que acredito renderem muito mais do que o simples corte de cabelo. Esse universo da beleza tornou-se muito atrativo para os negócios. Em poucos anos, uma verdadeira mania por cosméticos de todo tipo e por processos dos mais estranhos para fazer com que as pessoas se sintam mais atraentes e mais jovens tomou a forma imprescindível de um dever austero e inegável.
A pessoa que corta o cabelo, cabeleireiro, já não é mais dona de seu negócio; não é dona de seus meios de produção. Por isso creio que esse hábito está se tornando cada vez mais a sua pura execução. Tudo se reduziu ao corte. É semelhante a tirar fotos naquelas caixas em que as fotos prontas saem logo em seguida, em sequência. Você entra, passa algum tempo, e a coisa está pronta.
Não há muito o que fazer: na tv passa novela, nas revistas só imagens de pessoas sorrindo e poucos textos, nas conversas o que é impera são os produtos de beleza e os problemas de família. Não consigo entender como as mulheres de hoje gostam tanto desse ambiente. O único salão que gostei foi um que o cabeleireiro trazia revistas antigas de futebol para a leitura dos clientes (e ele contava muitas histórias interessantes). Isso fazia algum sentido para mim. Não pelo fato do assunto ser o futebol, mas por ser um convite criativo a imaginação.
Apesar de todas essas questões, um momento do corte de cabelo me põe a refletir, aquele em que nos olhamos no espelho. Naquele instante você é forçado a olhar para você mesmo, quer queira ou quer não. De repente, pode-se notar o passar do tempo nos traços que não reparamos do dia-a-dia. Outros aspectos também se mostram visíveis...você se avalia, se redescobre, se vê por um ângulo diferente...
Depois da percepção da aparência surgem as questões, a investigação dos fatos, o balanço de seu passado recente. Diante dos problemas enfrentados, que soluções encontrou? Foram as melhores?.... O momento do espelho pode ser uma inquisição psicológica: confesse para si mesmo, agora que não tem como fugir!
É interessante pensar que nesse templo da aparência (em todos os sentidos) haja esse pequeno portal intimista de sinceridade e autenticidade. Você vê que a despeito da maravilha ofertada pelo mundo da mercadoria, você sofre e perece. Talvez até note a desilusão das pessoas que buscam nesses produtos e nos estereótipos lançados pela mídia uma felicidade que não está inscrita nos objetos. As pessoas se frustram por terem criado uma falsa expectativa que foi movida por um falso desejo.
A esterilidade da beleza atual esconde os pontos de conexão com a nossa existência. Essa mutação estética nos transforma em seres que não somos. Ela anula a aparência autêntica e a substitui por uma aparência programada.... Narizes amorfos são a maior prova de uma vida que se move para uma essência oca e plasticamente fria. Esses indivíduos genéricos fisicamente se anulam diante de um rótulo preestabelecido...
Quando vejo esses programas que enfatizam essa perfeição estética, arrepio-me pelo culto aos grandes aparelhos brancos que mais parecem terem saído de uma UTI. Ninguém quer compreender como eles funcionam, muito menos quer refletir sobre o porquê de sua construção. Todo o negócio nefasto é consubstanciado em mágica. Um ar místico gravita em torno das gigantes engenhocas milagrosas.
No salão de cabeleireiro, entre uma tesourada e outra, algo me diz que a beleza não é dotada plenamente de sentido; não creio que haja uma essência para o belo. Se houver, certamente não está tão alheia a nós a ponto de negarmos nossa humanidade para alcançá-la.
Uma banda inglesa disse isso um tempo atrás:
She looks like the real thing
She tastes like the real thing
My fake plastic love

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