segunda-feira, novembro 07, 2011

Os "dez bons livros" de Freud

Em 1° de novembro de 1906, Sigmund Freud respondeu a uma carta do editor e livreiro Hugo Heller. Heller (1870-1923) era proprietário de uma livraria vienense, ponto de encontro de artistas e intelectuais. Em sua carta, enviada a diversos escritores, artistas e cientistas, Heller solicitava que o destinatário indicasse “dez bons livros”.
Freud respondeu o seguinte:
“O sr. deseja que eu lhe indique “dez bons livros”, e recusa-se a acrescentar uma palavra de explicações. Com isso, o sr. me encarrega não apenas de escolher os livros, mas de interpretar seu pedido. Habituado a prestar atenção a pequenos indícios, devo ater-me à formulação literal de sua enigmática pergunta. O sr. não disse “as dez maiores obras da literatura mundial”, caso em que, como tanto outros, eu teria que responder com Homero, com as tragédias de Sófocles, com o Fausto de Goethe, com o Hamlet de Shakespeare, com MacBeth etc. Não se trata, tampouco, dos dez livros mais significativos, entre os quais teriam que figurar os trabalhos científicos de Copérnico, do velho médico Johann Weier, sobre a feitiçaria, de Darwin, sobre a origem do homem, e muitos outros. O sr. não indagou sequer sobre os meus livros favoritos, entre os quais eu não teria esquecido o Paradise Lost de Milton e o Lazarus de Heine. A meu ver, seu texto põe um acento especial na palavra bons, e com esse predicado o sr. quer caracterizar os livros com que nos relacionamos do mesmo modo que com bons amigos, aos quais devemos algo do nosso conhecimento da vida e da nossa concepção do mundo, cujo contato nos proporcionou prazer, e que elogiamos diante de outros, sem que essa relação suscite um temor reverencial, uma sensação da própria insignificância diante da grandeza alheia. Indico-lhe portanto esses “bons livros”, que me vieram à mente sem muita reflexão.

Multatuli: Cartas e obras
Kipling: O livro da jângal
Anatole France: Sobre a pedra branca
Zola: Fecundidade
Merejkovski: Leonardo da Vinci
Gottfried Keller: A gente de Seldwyla
Conrad Ferdinand Meyer: Os últimos dias de Hutten
Macauley: Ensaios
Gomperz: Pensadores gregos
Mark Twain: Esboços


Não sei o que o sr. pensa fazer com essa lista. A mim mesmo, ela me parece estranha, a tal ponto que não posso abandoná-la sem acrescentar meus comentários. Não quero examinar por que esses e não outros “bons” livros, mas apenas esclarecer a relação entre o autor e sua obra. Nem sempre essa relação é tão óbvia como a que existe entre Kipling e Jungle Books, por exemplo. Na maioria dos casos, eu teria podido selecionar outra obra do mesmo autor, como por exemplo o Docteur Pascal, de Zola. O mesmo homem que nos presenteou com um bom livro muitas vezes nos deu também de presente vários bons livros. No caso de Multatuli, sinto-me impossibilitado de dar preferência a Cartas de amor em detrimento das cartas particulares, ou vice-versa, e por isso escrevi: Cartas e obras. Excluíram-se obras essencialmente literárias, de valor puramente poético, talvez porque seu pedido – bons livros – não parecesse referir-se diretamente a tais obras. Assim, no caso de Hutten, de C.F. Meyer, o “bom” prevaleceu sobre o “belo”, a “edificação” sobre o prazer estético.
Ao solicitar-me que indicasse “dez bons livros”, o sr. tocou num ponto sobre o qual muitíssimas coisas poderiam ser ditas. Termino, pois, para não ficar ainda mais loquaz.


Sigmund Freud”

Extraído do livro Os dez amigos de Freud, de Sergio Paulo Rouanet - Companhia das Letras - São Paulo, 2003.

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