quarta-feira, setembro 07, 2011

O Homem de Davos (na terra da Montanha Mágica)

E ali, nas encostas de esqui da Suíça, vestidos como para praticar esportes, estão os vencedores. Aprendi uma coisa do meu passado: seria fatal tratá-los como apenas pérfidos. Enquanto os de minha espécie se tornaram adeptos de uma espécie de desconfiança passiva da realidade existente, a corte de Davos estua de energia. Defende as grandes mudanças que assinalaram nossa época: novas tecnologias, ataque às burocracias rígidas, economia transnacional. Poucas das pessoas que conheci em Davos começaram a vida ricas ou poderosas como se tornaram depois. É um reino de conquistadores, e devem muitas de suas conquistas à prática da flexibilidade.
O Homem de Davos está mais publicamente encarnado no Bill Gates, o ubíquo presidente do conselho da Microsoft Corporation. Ele apareceu há pouco; como fazem muitos oradores na reunião, tanto em pessoa quanto ampliado numa imensa tela de televisão. Ouviram-se murmúrios de alguns maníacos da tecnologia na sala, quando a cabeça gigante falou; acham medíocre a qualidade dos produtos da Microsoft. Mas para a maioria dos executivos ele é uma figura heróica, e não só porque ergueu uma empresa enorme do nada. É o próprio epítome do magnata flexível, como ficou demonstrado mais recentemente quando descobriu que não tinha previsto as possibilidades da Internet. Gates volveu suas imensas operações num minuto, reorganizando seu foco empresarial em busca da nova oportunidade de mercado.
Quando eu era criança, tinha uma coleção de livros intitulada Pequena Biblioteca Lênin, que mostrava em detalhes gráficos o caráter do capitalista que se faz a si mesmo. Uma ilustração particularmente espantosa mostrava o velho John D. Rockefeller como um elefante, esmagando infelizes operários sob as patas enormes, a tromba agarrando máquinas de trem e perfuradoras de petroléo. O Homem de Davos pode ser implacável e ganancioso, mas só essas qualidades animais não bastam para explicar os traços de caráter dos magnatas da tecnologia, dos capitalistas de risco e dos expertos em reengenharia empresarial ali reunidos.
Gates, por exemplo, parece não ter a obsessão de se apegar às coisas. Seus produtos surgem numa fúria e desaparecem com a mesma rapidez, enquanto Rockefeller queria ser dono de perfuradoras de petróleo, prédios, máquinas ou estradas de ferro, a longo prazo. A falta de apego a longo prazo parece assinalar a atitude de Gates em relação ao trabalho: ele falou mais de alguém tomar posição numa rede de possibilidades do que ficar paralisado num determinado emprego. Em todos os aspectos, é um competidor brutal, e a prova de sua ganância é do conhecimento público; dedicou apenas uma minúscula fatia de seus bilhões à beneficiência ou ao bem público. Mas sua disposição a dobrar-se é evidenciada por estar pronto para destruir o que fez, diante das demandas do momento imediato - tem a capacidade de largar, embora não de dar.
Essa ausência de apego temporal está ligada a um segundo traço de flexibilidade de caráter, a tolerância com a fragmentação. Quando Gates conferenciou no ano passado, deu um determinado conselho. Disse-nos que o crescimento das empresas tecnológicas é um caos, assinalado por algumas experiências, erros e contradições. Outros tecnocratas americanos disseram a mesma coisa aos colegas reno-europeus, que, aparentemente presos em velhos modos formalistas, querem criar uma "política tecnológica" coerente para suas empresas ou países. O crescimento, disseram os americanos, não se dá dessa forma clara, burocraticamente planejada.
Talvez o que leva o capitalista hoje a buscar muitas possibilidades ao mesmo tempo não seja mais que a necessidade econômica. Tais realidades práticas exigem no entanto uma determinada força de caráter - a de alguém que tem a confiança de permanecer na desordem, alguém que prospera em meio ao deslocamento. Rico [personagem do livro], como vimos, sofria emocionalmente com os deslocamentos sociais que acompanharam o seu sucesso. Os verdadeiros vencedores não sofrem com a fragmentação. Ao contrário, são estimulados por trabalhar em muitas frentes diferentes ao mesmo tempo; é parte da energia da mudança irreversível.
Capacidade de desprender-se do próprio passado, confiança para aceitar a fragmentação: estes são dois traços de caráter que aparecem em Davos entre pessoas realmente à vontade no novo capitalismo. São traços que encorajam a espontaneidade, mas ali na montanha essa espontaneidade é, na melhor das hipóteses, neutra. Esses mesmos traços de caráter que geram a espontaneidade se tornam mais autodestrutivos para os que trabalham mais embaixo no regime flexível. Os três elementos do sistema de poder flexível corroem o caráter de empregados mais comuns que tentam jogar segundo as mesmas regras. Ou pelo menos foi o que constatei descendo da montanha mágica e voltando a Boston.
Richard Sennett (1943- ). A corrosão do caráter.

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