segunda-feira, agosto 29, 2011

Reflexões sobre o cotidiano I

De grande mistério a fonte de saber, de lócus da sociabilidade a reino da alienação. Como uma junção de antíteses, o cotidiano, ou melhor, a sua representação, constitui-se ao sabor do tempo e ao gosto de seu avaliador (daquele que o observa).
Na história humana, inúmeras teorias já sondaram o tema e produziram explicações. É amplo o espectro de olhares e de pontos de referência encontrados nos detalhes, nas miudezas e nos sentidos dispersos desse complexo objeto de estudo.
Diante das transformações histórico-sociais que fizeram brotar das entranhas de um não-objeto – a vida diária do povo – essa rica fonte de fenômenos, o que resta ao pensamento é unicamente interagir com os tormentos da matéria, contradizendo, ao longo das décadas, suas próprias idéias e suas previsões lógicas.
“Cotidiano”, essa simples palavrinha é uma construção social, e como tal, é reflexo não só da quimera ideológica que nos rodeia, mas, também, da inevitável base material que nos constitui. O cotidiano está para nós, antes de estar para ele mesmo. Ou será que existe um espaço demarcado no interior da sociedade em que possamos dizer: “Aqui começa e ali termina o cotidiano”.
Poderia se dizer: “é esse dia-a-dia que nos rodeia”. Sim, mas e daí? Rodeia a quem? Que tipo de dia-a-dia é esse? É constituído a partir de qual visão de mundo? É construído por toda a sociedade ou por um grupo específico? Que interesses há por traz dessa convencional noção de cotidiano? A quem é conveniente que ele continue a ser o que é?
Portanto, o cotidiano é amplo. Apenas um estudo sobre a transformação de suas representações e sobre as condições histórico-sociais que o fizeram surgir na condição de objeto de estudo já daria para encher muitos livros de ciências sociais. Isso sem considerar as diversas abordagens existentes que também ampliariam o leque de reflexões teóricas a respeito da questão.
Não se trata aqui de percorrer as linhagens do pensamento que se debruçaram sobre o assunto, nem de revirar questões epistemológicas, levantando as relações e os interesses encobertos pela racionalidade da ciência sociológica. O autor não tem a mínima legitimidade para discorrer análises profundas, muito menos de pretensamente exaurir a realidade objetiva por meio de dados ou de sistematizações persuasivas. O que daqui vier, nas linhas que seguem, é um despretensioso ensaio, e nada mais.
Os argumentos são movidos unicamente pela vontade de escrevê-los. Não há aqui nem uma ponderação sobre os termos usados. As idéias emergem pelo contato sensível do autor e pelo pouco que ele leu sobre o tema. Isso aqui é mais um esboço (ou uma tentativa) para alguma questão mais séria que possa surgir mais a frente.
Esse movimento de entendimento e de compreensão se inicia com a constatação, seja reflexiva, seja crítica ou sei lá o que queira de que o cotidiano compõe esse amplo universo de ações e de relações que os seres humanos constituem em sociedade.
Não é preciso ser sociólogo para perceber que esse mundinho diário existe e que se tem de conviver com ele. Não se pode negá-lo, isso é fato. Mas, do ponto de vista da reflexão filosófica e sociológica, por que o cotidiano é mais um inimigo do que um aliado na reflexão e nos processos transformação? Qual a relação senso comum / cotidiano, alienação / cotidiano?
Desde que comecei a estudar sociologia tive a impressão de que o cotidiano era um mal somente necessário à reprodução do sistema (e aos que se beneficiam dele). Reprodução, aqui, mais no sentido ideológico, como sendo o cimento que cobre as ranhuras e rachaduras e que dá firmeza ao processo produtivo do todo desigual.
Não que isso representasse uma visão negativa sobre o fenômeno. Para mim, havia uma compreensão teórica até certo ponto limitada sobre a riqueza recôndita nesse dia-a-dia pretensamente inócuo.
Há toda uma tradição de pensamento, que nos leva aos antigos filósofos gregos e que se espalhou pelo ocidente, de negar o que está próximo, de não levar a sério o que os sentidos nos dizem, enfim, de evitar as ilusões que o mundo corriqueiro nos traz (uma aparência espiritual e material). É preciso distancia para enxergar melhor aquilo nos aparece como natural e óbvio dentro da lógica de organização social.
Dá para fazer uma analogia com a visão de uma obra de arte num museu, de um quadro, por exemplo. Quando vemos uma pintura expressionista, só conseguimos notar a grandeza do trabalho do autor ao chegarmos próximos da tela. Dali, podemos ver as cores e as pinceladas, que mais parecem borrões sem sentido.
Com relação ao cotidiano a situação se inverte, de perto vemos harmonia, sentido, naturalidade. Mas ao tomarmos distância, podemos ver como estávamos equivocados. Com uma visão melhor de todo o quadro, vemos as contradições e os conflitos de interesses que antes não se faziam presentes. A luz vem a nós, quando observamos sob o enfoque da ciência.
O cotidiano se torna o vilão da história quando entra no grande balaio de saberes do senso comum. É quase uma ação mecânica. Pensou em cotidiano, pensou em senso comum; pensou em senso comum, pensou em cotidiano. E, pensou em qualquer um dos dois, a associação imediata é: ilusão, alienação, não-científico, mentira, falsidade, fantasia... O senso comum, então, é um mal que deve ser extirpado pela raiz.
Não quero com essa argumentação fazer crer que defendo o senso comum ou o cotidiano. Não estou advogando uma sociologia do senso comum ou do cotidiano. Não sei se esse binômio ciência/senso comum ainda tem sentido (prefiro sair dele). Mas também, não quero negar veementemente um ou outro. Não defendo nem a ciência, nem o cotidiano. O importante é avaliar criticamente e dialeticamente cada um desses processos.
Assim como a idéia de ciência não é fechada e pronta, também a de cotidiano não é. Foi isso o que eu quis dizer até agora. Como podemos descartar alguma coisa sem conhecê-la de perto? Tomar como base essa dicotomia simples de oposição entre falso/verdadeiro, claro/escuro, ciência/mito não é deixar tudo no reino exclusivo das idéias? Alguns fenômenos necessitam de processos compreensivos que a lógica abstrata não consegue oferecer.
Tá certo, você pode dizer, o cotidiano não é lá esse mau-caráter que acreditávamos, mas o que ele é de fato? Ele é essa complexidade que se materializa a nossa frente; essa substância que se modifica à medida que o mundo muda. Por isso devemos criticar os conceitos. Estes seguem uma racionalidade própria e não se conectam com o universo humano de maneira dinâmica. E o que isso tem a ver com o cotidiano, ora bolas? A meu ver, tudo.
Penso que deveríamos perder esse preconceito arcaico. Isso não quer dizer aceitá-lo como ele é, nem submeter-se a ele como fonte de uma explicação mais ampla e profunda. Falo sobre o cotidiano num sentido mais global. Não só como objeto de estudo. O cotidiano deve fazer parte do nosso processo de reflexão diário. O contato com esse quebra-cabeças múltiplo enriquece muito a pesquisa social.
Alguns teóricos estão desbravando esse território desconhecido, mas ainda são poucos e a duras penas. Muitas pesquisas empíricas destacam aspectos que poderiam ser menosprezados por outras abordagens mais lógicas.
Mesmo no campo do trabalho, que é reduto de um pensamento fortemente crítico ao cotidiano, boas pesquisas foram feitas por historiadores que trouxeram, nos dados coletados, as minúcias e os detalhes de um universo diário em transformação. O cotidiano teve papel fundamental nessas reflexões.
É lógico que também há muita pesquisa que não leva a nada e que só acrescenta dados insignificantes. Mas, mesmo nesses, devemos não ser tão prepotentes. As pesquisas têm que correr livres como a fértil imaginação humana.
Não há objeto de estudo melhor ou pior que o outro. Criar não-objetos só estimula o pensamento narcisista a seguir seu próprio caminho sem encontrar obstáculos.
O pensamento não quer pensar em outra coisa, a não ser, nele mesmo.
Os pensamentos devem ser nossos, antes de serem deles mesmos.

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