quinta-feira, julho 14, 2011

Um relato memorável de um tempo não tão distante



Não será tanto a minha vida que narrarei, mas sim a de uma geração inteira, a da nossa geração que como quase nenhuma outra no curso da História foi cheia de vicissitudes. Cada um de nós, mesmo o mais instigante, em sua existência íntima foi revolvido pelos tremores vulcânicos quase ininterruptos do nosso solo europeu. E eu entre os inúmeros indivíduos dessa geração não sei atribuir a mim outra preeminência senão esta: a de como austríaco, como judeu, como escritor, como humanista e pacifista achar-me sempre precisamente no lugar em que esses abalos de terra se manifestaram com mais violência. Três vezes eles me derribaram a casa e a existência, desligaram-me de todo o passado e com sua veemência dramática arremessaram-me no vácuo, no já bem conhecido "não sei para onde ir". [...] o indivíduo sem pátria [...]. Desprendido de todas as raízes e do solo que as nutria, em verdade estou como raramente alguém esteve ou está. [...] Por isso já não pertenço a lugar algum, em toda parte sou estrangeiro [...]. Contra minha vontade tornei-me testemunha da mais terrível derrota da razão e do mais bárbaro triunfo da brutalidade que se encontram na crônica dos tempos; nunca - não é absolutamente com orgulho e sim com vergonha que registro este fato - uma geração sofreu, como a nossa, tamanha queda de tão elevado nível do espírito. No pequeno lapso de tempo decorrido desde que a barba me começou a aparecer até que começou a ficar grisalha, nesse meio século, operaram-se mais mudanças e transformações radicais do que de ordinário no período de dez gerações humanas [...]. Toda vez que em conversa narro a amigos mais moços episódios da época anterior à primeira grande guerra, por suas perguntas admirativas vejo quanta coisa para mim ainda é realidade e para eles se tornou histórica ou inimaginável [...] entre o nosso hoje, o nosso ontem e o nosso anteontem destruíram-se todas as partes [...]. Lemos o catálogo de todas as catástrofes que se possam imaginar, mais ainda não estamos na última página. [...] Todos os sinistros ginetes do Apocalipse passaram impetuosamente pela minha vida, a revolução e a fome, a desvalorização do dinheiro e o terror, as epidemias e a emigração, vi crescerem e propagarem-se sob as minhas vistas as grandes ideologias das massas, o fascismo na Itália, o socialismo nacional na Alemanha, o bolchevismo na Rússia e sobretudo essa arquipeste, o nacionalismo, que aniquilou a florescência da nossa civilização européia. Tive de ser testemunha indefesa e impotente do mais inimaginável retrocesso da humanidade para uma barbárie, havia muito julgada esquecida, com seu dogma consciente e programático de anti-humanitarismo. A nós estava reservado vermos novamente, após séculos, guerras sem declarações de guerra, campos de concentração, torturas, pilhagens de populações e lançamento de bombas sobre cidades indefesas, todas essas brutalidades que as últimas cinqüenta gerações não mais conheciam e as futuras, como é de esperar, não mais suportarão. Mas, paradoxalmente, na mesmíssima época em que na moral o nosso mundo precipitadamente retrocedia um milênio, vi a mesma humanidade no terreno da técnica e no intelectual elevar-se a feitos imprevistos, sobrepujando com um surto tudo o que fora produzido em milhares de anos: a conquista do éter pelo avião, a transmissão da palavra humana, em segundos, por todo o globo terrestre e, com isso, o triunfo sobre o espaço, a divisão do átomo, o triunfo sobre as mais traiçoeiras doenças, a quase diária possibilitação do que ainda na véspera era impossível. Nunca até a hora presente a humanidade como um todo se mostrou mais diabólica e nunca produziu de maneira tão semelhante a Deus. [...] por toda parte a mão do destino nos agarrava e puxava à força para seu giro interminável. Constantemente tínhamos de nos submeter às exigências do Estado, servir de presas para a mais estúpida política, de nos adaptar às mais fantásticas alterações. Por mais que resistíssemos indignados, sempre estávamos acorrentados à totalidade, éramos inevitavelmente arrastados. [...] daquela época que nos plasmou e educou [...]. Não tenho à mão nenhum exemplar dos meus livros, notas, cartas de amigos, no meu quarto de hotel. Em nenhuma parte posso pedir informações, pois no mundo inteiro o correio está interrompido de um país para outro ou sujeito à censura. Vivemos tão separados uns dos outros como em séculos passados, antes da invenção do correio, do navio a vapor, da estrada de ferro e do avião. De todo o meu passado não tenho comigo senão o que trago no cérebro.

Stefan Zweig (1881-1942). O mundo que eu vi.

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