quinta-feira, fevereiro 03, 2005

O melhor e o mais político dos Fóruns

GILBERTO MARINGONI
31/1/2005 (tirado do site Carta Maior, para maiores informações sobre como foi o Fórum eu recomendo a visita ao site www.cartamaior.com.br )

Este foi o melhor de todos os Fóruns. Não pelos debates, ou mesas redondas apenas, mas pelo roteiro não previsto que o encontro acabou seguindo nesses seis dias de calor abrasador às margens do Guaíba. Em meio a toda dispersão que uma atividade desse tipo inevitavelmente apresenta, pode-se também, por mais estranho que possa parecer, dizer que esta foi a menos fragmentada de todas as suas cinco edições. Como? É preciso atentar sobre a maneira como se dá esta partição entre as várias atividades.
Horizontalmente há de fato divisões e subdivisões de temas, organizações e propostas localizadas, que se traduzem num cipoal de mais de quatro mil atividades paralelas. Mas verticalmente, este foi o grande momento das articulações entre entidades, redes, associações, ONGs e agremiações políticas de todo o mundo. Cada um veio procurar sua turma. Foi aqui que os partidos de esquerda reuniram centenas de militantes, em que facções do PT lançaram manifestos, em que redes de mulheres, jovens, camponeses, gays, lésbicas etc. etc. buscaram agendas comuns para o curto e o médio prazo. Foi o encontro dos encontros.

Divã
Foi também um Fórum no divã, o primeiro em que a iniciativa pôs-se a pensar sobre si mesma, a “discutir a relação” com o período inter-fóruns e com a realidade objetiva. Quem somos, de onde viemos, para onde vamos? Não se trata de centenas de assembléias que se diluem numa vaga concepção de que “tudo é tudo”, de o que vale é o “espaço plural”, mas de uma fragmentação tensa, para voltar à palavra mais ouvida nesses dias por aqui. Fragmentação tensa por não se conformar com este estado da arte em pedaços, mas por ser uma situação em permanente movimento e em constante vir a ser.
Irrompe nesta reflexão o fato de este FSM se realizar sob o signo da derrota do PT em Porto Alegre, o que coloca limitações e possibilidades para suas futuras repaginações. Saber se os futuros encontros serão aqui, ou não, se serão um ou quatro, descentralizados, se acontecerão uma vez por ano, ou em períodos maiores, importa menos pelo sentido puramente geográfico e mais pelo aspecto da potencialização das ações concretas do movimento “altermundista”, neologismo cabeça criado nos últimos anos. A derrota impõe necessidades práticas e políticas para entendê-la e superá-la. A derrota em Porto Alegre repercute no mundo e confronta a todos com indagações cortantes: afinal, se é um encontro da chamada “sociedade civil”, para que se necessita do Estado a apoiá-lo, entidade exorcizada na carta de princípios inicial do Fórum?

Eixos e autogestão
A decisão de se acabar com os grandes eixos de conferências e testemunhos, espinha dorsal das edições anteriores do FSM, em favor de atividades auto-geridas, acabou se mostrando positiva. A presença dos partidos políticos, também limitada pelos princípios originais do Fórum, foi inevitável e acabou incrementando os debates por alternativas. Se cada um se responsabilizava por suas atividades, não há como impedir a participação de quem quer que seja.
Nos encontros partidários, aconteceu um riquíssimo embate de idéias sobre o que fazer diante do que julgam ser uma rota continuísta do governo Lula. Estamos ou não no limiar de uma nova diáspora entre a esquerda, a exemplo do que aconteceu após 1964, com as sucessivas crises e cisões desastrosas do Partido Comunista Brasileiro? A criação de novas agremiações, facções, rachas, manifestos nos levará a que escalas nessas incertas rotas em direção à transformação social?

Utopias e simpatias
O FSM também não é mais apenas um encontro de ONGs, com sua miríade de pequenas utopias, focadas em realizações parciais. A realidade do “mundo lá fora” se impõe, na busca por vontades e saídas mais gerais. A declaração de José Saramago, de que não é utópico, mas quer mudar o mundo já, pautou a semana. Popularmente, poderia-se traduzir suas palavras na expressão “chega de muito corococó e pouco ovo”. Vamos à luta, vamos ao concreto!
Pode-se mudar o mundo sem tomar o poder?, é a pergunta que rendeu acalorados seminários nesses dias. É possível limitar nossos esquadros em se pensar globalmente e agir localmente?, indagam-se outros. Por trás dessas questões, diferentes nuances de concepções de mundo se agitam. O Fórum acontece hoje apenas em Porto Alegre, ou também onde há resistência real à globalização neoliberal, como no Iraque, na Palestina, ou na Venezuela?, para citarmos os casos mais evidentes. Estas alternativas foram clarificadas pelo manifesto lançado por alguns intelectuais participantes da própria gênese dos Fóruns Sociais Mundiais, e que reflete o denso choque de opiniões externados no verão gaúcho, pedindo bandeiras e ações mais definidas.
Alguns mais céticos se recordam do terceiro Fórum, animado pelas gigantescas manifestações contra a guerra, para lamentar a falta de uma bandeira mais clara. É preciso ir ao detalhe e verificar que aquela iniciativa tinha a nitidez do contraste a balizar suas discussões, o contraste com o ataque ao Iraque, contra um império não apenas política e militarmente agressivo, mas moralmente repugnante, pelo morticínio que causa. É uma necessidade bater-se contra tal inimigo! Mas dois anos depois é preciso afinar a sintonia do que fazer.

Novo ícone
Pode-se, sem medo de errar, afirmar que os participantes do Fórum são majoritariamente anticapitalistas e quase que unanimemente antiimperialistas. Não é à toa que, tendo se iniciado com a presença de Lula cercada por um cuidado para se evitarem hostilidades, o encontro termine com a sagração do presidente venezuelano Hugo Chávez como novo ícone das esquerdas globais. A ida do mandatário brasileiro a Davos não causa mais surpresa, dada a senda escolhida pela administração federal. Mas a apoteose que cercou Chávez é uma novidade.
O líder venezuelano, lembrou Ignácio Ramonet, ao apresentá-lo no domingo, para cerca de 30 mil pessoas que se dirigiram ao ginásio do Gigantinho, suscitou muitas dúvidas ao ser eleito, em 1998. Isso, por se tratar de um militar que tentara um golpe, “num continente escaldado por vários golpes militares”. As palavras, e principalmente as ações de Chávez em sua peleja contra as oligarquias locais e a Casa Branca, paulatinamente foram evidenciando surgira ali um “dirigente de novo tipo”, para valer-nos mais uma vez das palavras de Ramonet.
Ao longo de uma hora e trinta e cinco minutos, Chávez exibiu sua pauta: poder aos pobres, democracia, combate aos privilégios e ataque ao império. E, banhado pela legitimidade incontestável conquistada no referendo revogatório de agosto último, resolveu avançar o sinal. Até aqui, sempre que perguntado sobre seu projeto, o ex-militar afirmava não ser nem o capitalismo e nem o socialismo, mas o “bolivarianismo”, vago coquetel de concepções nacionalistas. Em Porto Alegre, não titubeou: “nosso projeto e nosso caminho é o socialismo”, exlamou com voz de barítono para as telas de todo o mundo. A declaração lembra a de Fidel castro, em 1961, quando definiu cristalinamente o caráter socialista da Revolução Cubana.
Que isso tudo tenha acontecido em Porto Alegre, sob o manto do Fórum Social Mundial, lhe dá outra qualidade. Entre 26 e 30 de janeiro de 2005, algo se move não apenas no FSM, mas em grande parte das esquerdas planetárias. O quê, exatamente, os próximos meses dirão. Mas se estivesse aqui, sob o sol do sul, James Carville, o hábil e grossísimo marqueteiro de Bill Clinton, ele poderia atualizar a frase que o consagrou:
- É a política, estúpido!

Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista da Agência Carta Maior, é autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo) e observador, a convite do CNE, no processo do referendo revogatório na Venezuela.

Nenhum comentário: