terça-feira, fevereiro 15, 2005

Estou postando um artigo do Ferréz, não sei por quê. Ele escreve para a Caros Amigos. E, como muitos que escrevem para esta revista, ele não sabe muito bem se expressar. Não que eu saiba e tal, mas há uma arrogância de alguns escritores quando se trata de sua origem social. Eles se acham os “da favela”, e escrevem com se tivéssemos culpa disso. A gente tem culpa sim, mas nós queremos o que os grandes não querem, a mudança. Outra que eu também coloco nesta categoria é a jornalista Marilene Felinto. Ela só escreve para criticar, descer o pau, literalmente. Não há um embasamento preciso daquilo que ela escreve. E, não há muita teoria em toda a revista, salvo exceções como: José Arbex Jr., Gershon Knispel, Emir Sader, Gilebrto Felisberto Vasconcellos... O caso é que, Ferréz resolveu escreveu sobre algo que penso muito nestes últimos dias. Sobre a subserviência de antigos “rebeldes” da música para o marketing e a propaganda. Acho que ele foi bem direto naquilo que está questionando.

Esses dias parei pra pensar

por Ferréz
Diminuí o ritmo, cancelei os compromissos, parei de pensar na grande mudança, comecei a ver os detalhes de tudo novamente, aumentei a observação, abaixei a cabeça e fiquei só de boa, por horas e horas.
Esses dias parei pra pensar, porque as pessoas sinceras não têm mais vez nesse nosso mundo.
E, enquanto eu mudava de canal, pulei de um comercial do Marcelo D2 junto com o Seu Jorge e o Zeca Pagodinho (que já é experiente nisso), todos doutrinando a mesma cerveja. Sabe, eu não espero mais nada de ninguém, mas, usar o hip-hop como pano de fundo, aí já é demais.
Pisamos em tanto barro pra chegar até aqui, passamos por tantas salas de aula, por tantos salões, por tantos campos de futebol, todos eles lotados de meninos e meninas que chamamos de manos e manas, e tentamos convencer que um caminho melhor é possível, tentando provar através de nossas próprias vidas que há um caminho lá fora pra todos, e ele não está ligado com os vícios e com as armadilhas do sistema.
Tudo isso é jogado fora quando se fecha um contrato de um comercial desse tipo.
E o hip-hop que tanto amamos se torna um detalhe, uma parte de trás do figurino, escondido lá atrás do Nã, Nã, Nã.
Quem é às vezes num comenta, fica só na espreita, pronto para dar o bote, tudo tem uma conseqüência, nêgo.
Assisti um filme chamado Riddick, é feito por uma ator chamado Vin Diesel, o filme é de ficção cientifica, e além do mais é estadunidense, mas nele eu vi algo que está realmente acontecendo, a grande organização que faz a lavagem cerebral, que quer a qualquer custo todos idolatrando somente um.
A unidade total.
Notícias quentes, os Estados Unidos estudam atacar o Irã, e todo mundo comentando sobre o Big Brother.
Eu não sei o que é pior, maldita hora que tomei a pílula da verdade, maldita hora que me tornei um “diferente”.
Vejo meninos todos os dias, não olho mais para os adultos, eles me dão nojo, olho para as crianças, vejo eles todos os dias, repito o gesto que faziam comigo quando era pequeno, toda vez passo a mão na cabeça de um, lhe dou um pequeno afago.
Passo pela viela e escuto:– E aí, rapaz!
E de todos que me cumprimentam sinto mais verdade nos pequenos, eles me olham como um cara legal, não como o cara que viram na TV, nem como o cara que fez um livro e saiu no jornal, eles não, eles são um dos meus.
Na minha mesa tem alguns brinquedos, todos eles ganhados, quando um menino que não tem quase nada te dá um brinquedo de presente é porque você conquistou algo, e isso é muito melhor do que um contrato, eu sei que ele apanha do pai, eu sei que a mãe dele também apanha do pai, e eu sei que o pai dele bebe pinga e cerveja.
Grupos que se diziam politizados, como o Rappa, que tem na linha de frente o vocalista Falcão, dançando e cantando com uma latinha na mão, aí vai tudo por água abaixo, e tiozão ninguém tá julgando ninguém, mas as coisas passam batido, não desapercebido.
Porque aqui na minha quebrada isso é pecado, porque aqui a conseqüência do marketing atinge seu nível mais nojento e grotesco.
Eu curti o final de ano na laje do meu amigo Cacá, dentro da favela Santiago, os fogos eu vi de pertinho, aí tinha o Dinoitinha, um menino de 6 anos, ele não sobe nessa laje por medo da mãe do Cacá, ele ficou me chamando, eu desci, e pensei que ele tava querendo beber alguma coisa, então levei um guaraná pra ele, quando estendi a mão para dar ele disse:
– Isso não, eu quero cerveja.
Acabou, não querendo ser moralista, mas acabou, tá faltando algo aqui, tá faltando reajustar as coisas, eu caminho o dia inteiro, e tento não ver os erros, mas não consigo, tentar evitar não se parece comigo, os sofredores que são amigos se parecem comigo.
Os pagamentos da prefeitura foram cortados, o Terminal Capelinha tá podre, dá nojo tomar ônibus lá, e eu lembro da fala de uma conhecida minha daqui que gritou:– Votar na Marta? Cê tá loco, vou votar no Serra que é mais gostoso, que é homem.
Esses dias, uma outra mulher daqui parou ela e perguntou como ela se sentia vendo o Serra já entrando assim, ela disse:
– Deixa o povo se fuder, eu num vou me fuder sozinha mesmo.
E assim vai indo, a corrida pelo material escolar começou, ninguém acredita que ele vai dar continuidade nos projetos e a Folha me ligou:
– O que você acha da Marta ter tirado dez dias para passar férias em Paris?
Eu respondi na lata:
– É bom, para o povo se acostumar a ficar sem prefeito, pois isso será por quatro anos.
A pena disso tudo? Os muleques. Eles vão pagar também, embora não saibam nada de política, mas Carnaval tá chegando, né? Pra que se preocupá cum essas coisas.
E tem madame ajudando as vítimas do maremoto.
– Num tenho dinheiro, não, menino, num precisa olhar o carro, que tem seguro.
– Senhor guarda, olha aquele menino ali, eu vim fazer um depósito para as vítimas do maremoto, e acho que ele está me esperando para efetuar um assalto.
“É apenas uma criança, minha tia”, foi o que passou pela cabeça do guarda, mas ele foi lá e mandou o muleque sair fora.
É tanta fita que você nem acredita, apreenderam o documento do carro do Bolha, e lhe deram uma pá de multa, motivo? Acharam a Literatura Marginal 1 no porta-malas dele, eles folhearam e viram o desenho onde tem um PM com chifre e rabo, aí já viu, né, inventaram de tudo para multar.
É tanta coisa contra, mas na real a atitude dos verdadeiros não se compra, meu manifesto NÃO é com a lata na boca.
Ferréz é escritor, autor de Capão Pecado (Labortexto) e Manual do Ódio (Objetiva).

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