quarta-feira, abril 13, 2005

A SUBVERSÃO E O PODER


Papa e Castro

A idéia de Cristo, crucificada no Calvário, não sobreviveu com a Igreja, tampouco com João Paulo II
por Mino Carta

Quem esteve na praça de São Pedro na noite de quinta-feira, 31 de março, e viu o povo de joelhos a orar pelo papa em agonia, viveu um momento excepcional, algo assim como o clímax da cultura de massa. Bem mais intensamente do que quem se postava diante do vídeo na poltrona da sala de estar. Igual a ir ao estádio para entregar-se às emoções do futebol.
Na imensa arena cercada pela colunata de Bernini e invadida pela noite úmida da chuva recente, apinhava-se a representação fervorosa e dorida da humanidade, massificada na dor. Sincera, decerto, e mesmo assim induzida. Programada.
Nunca foi tão fácil convocar as multidões e uni-las em torno de um sentimento comum. Nunca o homem se entregou tão maciçamente a enganos e ilusões. Os antigos, que fizeram cidades como Atenas e Roma, criaram o mito como metáfora do insondável, como figuração do mistério. O homem em oração na praça de São Pedro invoca o mito como verdade terrena.
A imponência da personalidade de João Paulo II é inegável, bem como da missão que se atribuiu e perseguiu até os limites da obsessão. Mas, conforme a aguda observação de Eugenio Scalfari, um dos maiores jornalistas italianos, falhou no seu intento.
Seria possível apontar nele o modernizador da Igreja? Aceitou avanços da ciência, mas resistiu a outros e pregou interesseiramente a privatização do ensino. E seria possível enxergar o Bom Pastor em quem leva o fiel ao pecado ao condenar o anticoncepcional?
Karol Wojtyla foi símbolo eficaz da luta anticomunista, na qual se engajou movido, antes de mais nada, pelo patriotismo polaco. Nem por isso foi o demolidor do Muro de Berlim. O regime soviético esvaiu-se em seus próprios desmandos e prepotências. Era uma estrutura podre, e ruiu.
Na última fase do seu pontificado, João Paulo II manifestou-se contra os abusos capitalistas e o neoliberalismo. O que não impediu que santificasse José María Escrivá, fundador da Opus Dei, organização umbilicalmente ligada ao mundo dos negócios. Nem sempre límpidos. Muito pelo contrário.
Não falta quem estranhe a profundidade do relacionamento do papa com a Opus Dei, bem representada no Vaticano pelo próprio porta-voz papal, Navarro Valls. De resto, não é de somenos recordar que as finanças da Santa Sé, fim dos anos 70, começo dos 80, ficaram aos cuidados de um certo monsenhor Marcinkus, de quem se descobriu posteriormente o envolvimento em escândalos cabeludos, e que terminou sua carreira, de início fulminante, como bispo de uma remota cidadezinha do interior dos Estados Unidos.
Escreve Scalfari que, pior de tudo, foi a chance perdida de um retorno às lições do cristianismo. O jornalista é ateu, respeita, porém, a palavra de Jesus e, corretamente, a interpreta de um ponto de vista político. Não há como negar que a Igreja, ao longo dos séculos, apossou-se dela e a transformou em instrumento a seu talante.
Falta a Cristo a dimensão histórica, o indispensável, preciso registro que coloca a personagem no tempo e no espaço. A idéia, contudo, aí está, e sobrevive dois mil anos depois. A idéia da igualdade a partir da valorização da individualidade. E ela é que foi crucificada.
O Calvário, está claro, foi obra do Império Romano, e não do Sinédrio. Cristo era a subversão, e foi até que a Igreja não se tornasse, ela própria, um poder dentro do poder, ao recomendar a resignação como garantia do prêmio no além.
João Paulo II não se constituiu, definitivamente, em antipoder, donde a duríssima repressão, exercida com ímpeto igual à do combate ao comunismo, em relação a quantos defendessem a opção preferencial pelos pobres, pelos desvalidos do mundo. Sobre as esperanças de resgate dos povos latino-americanos e africanos, o papa falecido passou como um furacão.
No fim da peça Santa Joana, Bernard Shaw coloca a heroína de Donrémy na ribalta, ela ergue os olhos ao céu, e pergunta: “Quando, ó Deus, esta terra estará preparada para receber os teus santos?” Se Cristo estivesse hoje em Roma, talvez repetisse a frase do Calvário: “Perdoai-os, meu Pai, eles não sabem o que fazem”.

Tirado da Carta Capital que está essa semana nas bancas com o título e Ele, quem escolheria? - Uma Igreja cada vez mais midiática se prepara para sagrar o sucessor de João Paulo II

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