segunda-feira, abril 25, 2005

A DESILUSÃO DA AMÉRICA LATINA

Ratzinger, o Torquemada de Wojtyla, executou todos os expurgos que visavam erradicar a Teologia da Libertação
Por Maurizio Matteuzzi*

O Espírito Santo pode não ter desejado, mas desta vez aprontou uma grande surpresa. A nomeação do Torquemada de Wojtyla é um tapa na cara da América Latina. Para os católicos (e não somente eles), mas também para a hierarquia católica. Que esperava que tivesse chegado o tempo do primeiro papa latino-americano, que fizesse da guerra contra a pobreza a sua cruzada – como o papa polonês havia feito contra o comunismo.
Muito se falava, depois da morte de Wojtyla, das fortes chances dos papabili da América Latina. Candidatos com os favores do prognóstico, como o brasileiro Hummes, o hondurenho Maradiaga, o argentino Bergoglio, o mexicano Rivera Carrera, os colombianos Castrillon e López Trujillo. Outsiders como o chileno Errazuriz, o dominicano Lopez Rodriguez, o cubano Ortega. Gente segura para o chefe, sem laços com a Teologia da Libertação. Todos nomeados por Wojtyla no curso da impiedosa limpeza da América Latina. Todos conservadores em matéria de doutrina e de dogmas, mesmo se sensíveis, quase todos, em matéria social.
Não foi assim. Foi Ratzinger a escolher o título de Bento XVI. O homem da restauração doutrinal e autoritária, o guardião do dogma que afastou os espíritos inquietos e heterodoxos – aqueles mais evangélicos e próximos às temáticas da justiça social – do catolicismo latino-americano.
A começar pelo teólogo brasileiro Leonardo Boff, que em 1985 foi interrogado – felizmente para ele apenas intelectualmente – por Ratzinger em sua qualidade de responsável pelo Santo Ofício e depois condenado ao “obsequioso silêncio” e constrito a deixar a congregação dos franciscanos. Ou o teólogo peruano Gustavo Gutierrez, que ficou na Igreja, mas ao preço – semelhante ao silêncio – de passar seus escritos pelo crivo hostil do arcebispo de Lima, Luis Cipriani, homem da Opus Dei nomeado cardeal por Wojtyla em uma das últimas fornadas.
Ratzinger sempre foi o braço direito do papa polonês em todos os expurgos e purificações lentamente feitas para erradicar a erva daninha da Teologia da Libertação, que florescia na América Latina quando João Paulo II a visitou pela primeira vez no fim de 1978, em Puebla, México.
Todos bateram de frente, eventualmente, com a gélida ortodoxia de Ratzinger: o bispo de Chiapas, Samuel Ruiz, o bispo de Olinda, Hélder Câmara, o cardeal brasileiro Paulo Evaristo Arns, o padre e ministro sandinista Ernesto Cardenal, o bispo catalão-brasileiro Pedro Casaldáliga, e muitos jesuítas.
Naqueles anos de fogo, quando Wojtyla havia feito uma aliança informal, mas estreita, com o presidente Ronald Reagan para combater também na América Central a “ameaça comunista”, outros padres – e freiras – pagaram ainda mais caro. Com a tortura e com a vida. Como o monsenhor Arnulfo Romero, o bispo (conservador, mas não cego nem demoníaco) de San Salvador, assassinado pelos esquadrões da morte nos anos 80. Ou os cinco sacerdotes de El Salvador assassinados entre 1977 e 1979, pelos quais Romero foi a Roma, pouco antes de ser morto, para pedir uma intervenção explícita do papa (que não foi). Ou as quatro freiras americanas mortas naquele ano. Os 23 sacerdotes assassinados na Guatemala entre 1980 e 1985. Os seis jesuítas da Universidade de El Salvador mortos em 1989. Entre as centenas de santos e beatos proclamados por Wojtyla e o seu guardião da fé Ratzinger não encontramos entre os padres mártires dos “vermelhos” na guerra da Espanha ou dos “comunistas” no Leste Europeu nenhum dos latino-americanos.
Wojtyla e Ratzinger dividiram a Igreja Católica na América Latina em duas igrejas cada vez menos conciliáveis: a igreja oficial e a igreja popular.
Na verdade, o papa polonês e seu pastor alemão, privilegiando os problemas da evangelização sobre aqueles sociais, castigando as comunidades pastorais de base e mirando os movimentos carismáticos de renovação, golpeando os jesuítas e dando carta-branca para a Opus Dei e os Legionários de Cristo (e em alguns casos à Comunhão e Libertação), acabaram por provocar um gravíssimo dano à igreja do continente e da esperança.
O descrédito e o vazio deixados pela igreja dos pobres foram preenchidos rapidamente pela arma mais poderosa de que dispõem os Estados da América Latina: as igrejas chamadas pentecostais, que hoje atraem uma fatia substancial de católicos – um milhão por ano só no Brasil – e difundem uma ideologia individualista-fundamentalista com fundo milagroso. Mesmo que a América Latina ainda conte com a metade do bilhão de católicos no mundo, é fato que há 50 anos mais de 90% de latino-americanos se diziam católicos e hoje de 15% a 20% passaram para as pentecostais. Fora um golpe do Espírito Santo, será difícil para Bento XVI interromper esse movimento.
*Texto publicado no diário italiano Il Manifesto na edição de 20 de abril.

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