terça-feira, março 08, 2005

A fábula do tucano e do sapo barbudo


Sapo barbudo e o príncipe

Texto publicado em 1 de março de 2005 na coluna semanal escrita por Arnaldo Jabor no jornal O Globo.

Por que me odeias, ó, sapo barbudo? — perguntou o tucano. — Achas que eu sujo a água que bebes no rio do Poder? Talvez porque, enquanto tu trabalhas como formiga no governo, eu canto e danço como cigarra na oposição? Por que me odeias, sapo barbudo?
O sapo barbudo respondeu:
— Eu é que pergunto por que você me despreza, do alto de seus galhos, com seu bico de doutor nefelibata? Só porque eu vim da caatinga, porque não pude estudar e vendi picolé no cais do porto?
O tucano replicou:
— Não, caro sapo, eu não te desprezo, eu até te invejava quando surgistes, um súbito símbolo irrompendo no mundo universitário. A tua figura de jovem sindicalista com a barba negra, teus gestos épicos diante da massa de metalúrgicos nas greves me deram muita inveja. Nós da USP nunca tínhamos visto um operário real. Conhecíamos alguns encanadores, faxineiros de nossas casas, entregadores de pizzas, mas tu surgistes como uma estátua leninista, e viestes preencher os sonhos infantis de intelectuais paulistas. Nós, trêmulos professores, te amamos como uma alegoria viva, foice e martelo na mão com o dedo decepado, pois tua eras a primeira novidade da esquerda pós-64. Tu fostes o primeiro operário do Brasil. Algumas professoras nos desprezaram na gincana sexual da USP e foram “dar” para ti, esperando um elixir ideológico que as vivificasse...
Esse diálogo do sapo com o tucano, na beira do rio, era ouvido por toda a “baixa bicharada” da floresta: toupeiras, cachorros do mato, ratões de campos, cobras criadas, aranhas fisiológicas, baratas leprosas, botos tucuxis, vermes evangélicos, todos os bichos atrasados do mato seguiam a conversa dos dois. Havia entre eles uma animação nunca vista nos últimos anos, entre brejos e tocos queimados por grileiros.
Eles vão brigar de vez! Está chegando nossa hora! — grunhiu uma toupeira para uma barata leprosa.
— Estamos diante de um alvorecer! — concluiu um rato de campos.
O sapo barbudo insistiu:
— Não; você me despreza, sim...
— Não! — redarguiu o outro. — Nós tucanos até criamos um partido por tua inspiração. Vimos que tu tinhas dado um “corte epistemológico” na política do país, que deveria ser negocial e prática, sem bandeiras utópicas. Aprendemos com tua ignorância sábia e fundamos o tucanário do PSDB. Infelizmente, surgiram os urubus leninistas, nostálgicos de revolução...
Um murmúrio percorreu a “baixa-bicharada” que ouvia em suspense:
— Isso! Benditos sejam nossos aliados, os marxo-urubus , que transformam toda carne nova em carniça, que apodrecem as inteligências progressistas! — ganiu um cachorro do mato.
— Essas toupeiras de esquerda — inflamou-se o tucano — foram transformando tua sabedoria instintiva em babaquices ideológicas, tu virastes aos poucos o líder das mulas da revolução imaginária, e tua toca abrigou todos os asnos da utopia. Nos últimos 20 anos, tu fostes o símbolo de um futuro impossível. Mas, com na floresta do Brasil tudo acontece por acaso, um bichinho estranho mudou nosso destino, sapo amigo, quando o Tancredo, a sutil raposa mineira, foi eleita nas “indiretas”, depois dos anos-gorilas. Um microbinho enfiou-se em sua barriga e matou-o na hora da posse. Quem o substituiu foi outra raposa, nordestina, bigoduda, que levou o país até 80 por cento de inflação ao mês... lembras-te? Depois dele, veio um lobo com pele de cordeiro, ou melhor, um abutre com cara de águia cercado de carcarás e calangos da caatinga, que fez tanta maracutaia que acabou expulso. Em seu lugar, entrou um jeca-tatu que teve, por acaso, o mérito de me lançar para presidir a zorra da floresta — enfunou-se o tucanão.
— E você me derrotou, eu que queria reinar há duas décadas...
— Sim, venci; mas esperava ter o teu apoio, sapinho, pois éramos parecidos, sabíamos que nossa dupla podia ser um sucesso. Mas teus urubus leninistas me massacraram por oito anos, se aliando até com os vermes mais sujos para me infernizar...
— É que “sapo não pula por boniteza, mas por precisão”, senhor tucano. E meu conselheiro, o urubu-rei Dirceu, mandou eu te atacar...
— E agora... estás pagando caro, amigo sapo; castigo anda a cavalo... Eu sempre te admirei pela tua inteligência prática, mas agora tu estás me xingando em público, me culpando por um passado que conheces, dando ouvido a antas rancorosas. Tu preferes te aliar com a pior das lacraias que a mim. Queres que eu morra com a boca cheia de formigas, esquecendo, ingrato, do tempo em que distribuíamos panfletos na porta da Volks... Devíamos ser irmãos.
O sapo sufocou um soluço emocionado.
— Tem razão; vamos nos unir então, companheiro tucano, seremos invencíveis!
Houve um frêmito de pavor na “baixa bicharada” suja. Gemiam: “se eles se unirem estamos campados!” — disse um ratão de Belém. Alguns bicharocos começaram a rezar.
— Vamos à luta, irmão sapo! Nós dois somos uma exceção nessa floresta suja. Unidos, consertaremos essa bosta. Não precisaríamos nos aliar com essa minhocas e baratas descascadas, chefiadas por esse bicho-severino, bicho feio, que já tomou a Câmara. Unidos venceremos!!!
Neste momento, uma hiena salvou tudo. Começou a gargalhar, uivando de ironia, interrompendo o interlúdio afetivo que despontava. O tucano deixou cair a bicanca tristemente e soluçou:
— Infelizmente, ambos queremos ser “hegemônicos”, companheiro sapo...
— Queremos ser... o quê?
— Ahh... ahh... nós dois queremos mandar sozinhos. Mas os terroristas do Hamas do PT não vão permitir nossa união...
(Ao longe, uns poucos veados românticos começaram a chorar...)
— Nosso reinado será breve, sapinho... As lacraias já estão tomando o poder...
— Que sempre foi nosso! — berrou um macaco-prego em coro com porcos, javalis, aranhas e piranhas. E o tropel da bicharada suja, com urros, zurros, ganidos, vagidos, arrotos, ronqueiras, “coaxos”, encheu os céus do país.
E, aí, o tucano voou e o sapo ficou “cururu”, na beira do rio. E a arraia miúda, a escória da floresta, invadiu para sempre o “pudê”.

Moral: Em terra de lacraia, tucano não “avoa” e sapo morre afogado.

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