sexta-feira, agosto 24, 2007

O Insensato


Não ouvistes falar desse louco que, em pleno dia, acendia uma lanterna e se punha a correr pela praça pública gritando incessantemente: "Procuro Deus! Procuro Deus!". Como estavam ali muitos que não acreditavam em Deus, o seu grito provocou uma grande gargalhada. Dizia um: "Então, Deus se perdeu?”. “O quê? Deus perdeu-se como uma criança?”, perguntava outro. “Ou escondeu-se? Tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou?” – assim gritavam e riam todos ao mesmo tempo. O louco precipitou-se para o meio deles e trespassou-os com o olhar: “Para onde foi Deus?” - gritou-lhe. “Eu vou dizer-vos isso. Nós o matamos, vós e eu! Todos nós somos os seus assassinos. Como pudemos fazer isso? Como fomos capazes de esvaziar todo o mar? Quem nos deu a esponja para apagar todo o horizonte? Que fizemos quando separamos esta terra de seu sol? Para onde ela se movimenta agora? Para onde nos levam seus movimentos? Para longe de todos os sóis? Não estamos caindo sem cessar? Para trás, para o lado, para a frente, para todos os lados? Existe ainda um acima e um abaixo? Não erramos como através de um nada infinito? O espaço vazio não sopra sobre nós? Não faz mais frio? Não vem a noite e cada vez mais noite? Não é preciso acender lanternas em pleno dia? Não ouvimos ainda o ruído dos coveiros que enterraram Deus? Não sentimos putrefação divina? Também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus permanece morto! E fomos nós que o matamos! Como nos consolaremos, nós, os assassinos de todos os assassinos? O que o mundo possuía de mais sagrado e mais poderoso perdeu seu sangue sob nossas lâminas – quem lavará esse sangue de nossas mãos? Com que água poderemos purificar-nos? Que expirações, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não temos de converter-nos em deuses, para parecermos dignos desse ato? Nunca houve ato mais grandioso – e quem nascer depois de nós fará parte, por causa desse ato mesmo, de uma história superior a tudo o que foi história até agora”. Aqui se calou o louco e encarou outra vez os ouvintes; também eles se calavam e o olhavam com estranheza. Por fim, atirou ao chão a lanterna, que se partiu em pedaços e se apagou. “Vim cedo demais”, disse então: “Ainda não é chegado o meu tempo. Esse enorme acontecimento ainda está a caminho e viaja – ainda não atingiu os ouvidos dos homens. O relâmpago e o trovão precisam de tempo, depois de terem sido realizados, para serem vistos e ouvidos. Esse ato está ainda mais distante dos homens que o astro mais distante – e no entanto foram eles que o reaizaram!” (Grifos meus)


NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. São Paulo: Hemus, 1981.

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