domingo, agosto 26, 2007

Dividir é um compartilhar humano ou uma equação matemática?

A ampliação dos avanços da técnica e da racionalidade de cálculo para toda a esfera do ser, que já vem de muitas décadas, nos obrigam a investigarmos como se dá a sociabilidade nos micro-ambientes e nas pequenas relações. A vida em conjunto, em sociedade, nos impõe uma necessidade básica: para suportarmos as intempéries e as forças da natureza precisamos uns dos outros. Desta forma, construímos e produzimos socialmente tudo o que está as nossas vistas para o nosso próprio benefício, para sustentar e prolongar nossa existência. Na relação com a natureza, modificando-a e transformando-a, a base material é constituída e fundada para a elevação do edifício social ao qual residimos.
Sem me alongar sobre a gênese da divisão do trabalho e de sua incorporação perversa na lógica produtiva capitalista, quero pegar como ponto de partida algo comum nas grandes cidades: os prédios. Para exprimir esses devaneios especulativos, tomo minhas experiências pessoais como um substrato relevante para algumas conexões entre a realidade objetiva e a teoria social. No entanto, já de antemão, deixo claro que são só algumas notas marginais, esparsas, de minhas inquietações subjetivas.
Dividir, segundo alguns dicionários, quer dizer: “1. Partir, separar em duas ou mais partes. 2. Distribuir; repartir. 3. (Mat.) Efetuar a divisão em. P. 4. Separar-se; desunir-se. 5. Discordar; divergir; dissentir”. Penso que o ato de dividir, o distribuir dos recursos materiais, precede a própria noção matemática de dividir, tal qual está estabelecida no dicionário. O dividir humano estabelece-se muito antes da noção aritmética. A ciência dos números denota uma certa objetividade para o cálculo; pressupõe-se uma razão imparcial, impessoal e, profundamente, lógica. Com o desenvolvimento das forças produtivas, da ciência e da tecnologia, houve um triunfo da abstração numérica penetrando até nos campos mais recônditos da vida social.
Dentre todos esses sentidos (expressados nas definições do dicionário), como podemos pensar o que é dividido dentro de um edifício residencial? Não há um significado que chegue próximo ao compartilhar, somente verbos frios e eficientes. Dividimos tudo o que existe e cada um cuida de sua parte, ou compartilhamos o que existe para que todos possam ter o melhor usufruto coletivo? Não estamos muito distantes de pensar outras dimensões da vida social. Poderíamos repensar a noção de liberdade, por exemplo. Em todos os cantos ouvimos que “a minha liberdade vai até onde está a liberdade do próximo”. Parece que “liberdade” se tornou uma figura geométrica, um pequeno quadrado de mobilidade do indivíduo. Aos que têm muitas posses e que comandam os meios produtivos, a liberdade é plena e quase irrestrita. Torna-se um gigante quadrado que ultrapassa a área dos adjacentes não reconhecendo qualquer lei ou norma que o coíba. Para contrapor a essa concepção, evoco a noção de liberdade para Hegel, em que a minha liberdade tem que se complementar com a liberdade do outro. Livres, só somos quando temos um compartilhar coletivo e efetivo.
Em um prédio comum existem portas, escadas, janelas, elevadores entre outros. Os espaços coletivos também representam uma parte constituinte dos edifícios. A construção de habitações conjugadas foi uma necessidade devido ao inchaço das cidades e a multiplicação crescente da população urbana. Foi previamente concebida como uma imposição das leis do cálculo pela lógica produtiva em que os indivíduos não deveriam mais residir em casas espaçosas, com ampla área no entorno. Agora, eles se amontoariam em pequenas caixas de sapato, dispostas umas sobre as outras, as quais hoje chamamos de apartamentos. Eles possuem apenas aquilo que é necessário para reproduzir a força produtiva que engrena a máquina (força de trabalho). São em pequenos espaços “três por quatro” que constituímos nossas famílias e que damos o nome de lar. Parca mobília e alguns adornos amorfos decoram o ambiente. Nos sentimos indiferentes em meio ao não-pertencimento representado no local. Tudo proveio da fábrica e foi produzido em série, como toda experiência do ser.
O ápice da sociabilidade moderna é dizer “oi” e “tchau” no elevador. É um ato súbito de benevolência, ao se lembrar que, por aqueles frios corredores e escadas, residem outras pessoas. É a efêmera noção de não estar sozinho em meio a tanta solidão. Ser refém cativo de portas, grades e trancas, enquanto lá fora, brilha um sol escaldante, porém programado. Ouvir barulhos pelas paredes e pelos cantos e saber que é isso que o lembra que acima e abaixo existem barreiras. Esses sons estranhos nos recordam que temos de trancar bem as portas e fechar as janelas. E o que não dizer das cercas elétricas, das câmeras de circuito interno e de toda a “segurança” que a tecnologia pode nos dar? Por que não colocar logo minas-terrestres nos jardins da entrada? Ou mesmo, um lança-chamas no portão principal?
O fato é que dividimos tudo o que se encontra no prédio, mas é somente uma divisão aritmética. É uma coação resultante de uma determinação do sistema produtivo: temos de dividir. Já que somos obrigados, então que seja pela fria e precisa lógica do cálculo, nada mais.
Moramos anos e anos nesses edifícios e não conhecemos ninguém. Não há uma relação com o vizinho. Não há nada, apenas a clareza real de ter de cumprir com suas obrigações materiais e só. É o sair pela manhã e voltar só no fim da tarde. Morar apenas para ter um lugar para dormir e descansar bem, para produzir muito no dia seguinte.
No sistema há o imperativo categórico da divisão, dominação e produção. É como dizia Napoleão: “dividir para conquistar”.

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