quinta-feira, agosto 16, 2007

A experiência em Londrina

Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a idéia de que o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é ascender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos de nosso posto
Érico Verissimo


“Trabalhadores! Trabalhadores! Vocês têm que parar! Não podemos mais agüentar essa situação! Vamos parar! Precisamos parar e apreciar a nova Mortadela Ouro Perdigão!”.
Possivelmente, se não fosse pelos anos em Londrina, essa pequena propaganda que ouvi enquanto estava dirigindo, seria meramente fagocitada e, automaticamente, expelida pelo meu cérebro em fração de segundos.
O fato retratado pelo anúncio de rádio é a simulação de uma greve de operários. Há uma encenação feita em estúdio, em que são adicionadas muitas vozes em coro para representar, de forma fidedigna, a situação interna de uma fábrica como se fosse na vida real. Num dado momento da propaganda há uma “explicação” para toda a idéia, em que “justificam” a concepção de uma greve pelo fato da mortadela ser, ou ter, alguma relação com a Itália (confesso que não entendi bem essa parte). Ou seja, para as pessoas que escutassem aquilo tudo, era como se o ato de fazer greve fosse de origem italiana ou que – o que é mais estranho, porém mais “justificado” –, a forma como concebemos essas manifestações passam, indireta ou diretamente, por um estereótipo do italiano “baderneiro”. Entendo que há uma longa associação, desde os primórdios da imigração para cá, entre italianos/europeus de uma forma geral e suas “imorais” manifestações políticas. Entretanto, tal “razão” não se auto-justifica. Resisto em continuar a falar sobre esse “fato banal”, porque seria a partir dele que pensei em traçar o que Londrina (na minha concepção particular) significou e representou em minha formação humana. Ademais, voltando a propaganda, o que de errado há em colocar numa mesma balança mortadela e uma greve de trabalhadores? Certamente alguns estudantes de marketing diriam que é uma forma original de apresentar um produto aos consumidores, outros, como a maioria, nem teriam tempo de pensar em nada, pois têm de correr atrás do ganha-pão de todo dia e não podem se dar ao luxo de reflexões, em qualquer grau que seja. Todavia, o que há de errado em fazer esse tipo de comercial? Não temos censura, a imprensa é livre e vivemos numa democracia consolidada. Entretanto, é exatamente aí que mora o problema, não temos necessidade de pensar em nada, já está tudo dado e revelado (tudo devidamente pronto. É como se um garoto chegasse à sua festa de aniversário – nesses espaços modernos feitos somente para isso – e encontrasse todos os brinquedos eletrônicos devidamente prontos e ligados, somente esperando para que ele os possua em pleno gozo primitivo). As coisas já trazem em si mesmas suas respostas e verdades. Somente cabe a nós engolirmos tudo isso, tal qual fazemos com nossas refeições fast-food. “Por que pensar, você quer é chegar rápido ao trabalho!”, esse poderia ser o lema de um anúncio de automóvel.

“Mas quantas são as mentes humanas capazes de resistir à lenta, feroz, incessante, imperceptível força de penetração dos lugares-comuns?” (Primo Levi)
COISIFICAÇÃO

Por que estou dizendo tudo isso? Porque a vida virou uma mercadoria e viver é uma grande propaganda. São só negócios. Participamos do engodo nefasto apenas como engrenagens subordinadas. Insurreições, revoltas, revoluções; hoje tudo não passa de um meio de valorizar capital. Vivemos vidas mesquinhas e pequenas que servem somente para produzir e reproduzir o monstro desigual que nos mantêm no alto de grandes construções tecnológicas, enquanto famintos e miseráveis clamam por dignidade abaixo de nossas janelas. “Não pense demais, os bandidos estão à solta e vão assaltar seu lindo lar: ponha uma cerca elétrica, dinamite os portões, esconda algumas minas terrestres pelo jardim, blinde seu honrado automóvel”. Não há mais vontade, não há mais querer, não há grito de desespero que toque no coração de nossa coerência mecânica. Instintivamente coagidos, somos mantidos em cativeiros hedonistas, para o deleite do cálculo frio e desumano. Prisioneiros de nós mesmos e da efêmera vivência programada, fazemos reverência ao açoite diuturno que nos alimenta no mais irresistível gozo primário. O mundo oferece-nos tudo o que desejamos, não há do que reclamar. É desagradavelmente brilhante como as pessoas não percebem isso, como não percebo isso, todo dia, ao caminhar pelo mundo. Vivemos para sobreviver e sobrevivemos para existir matematicamente no meio do todo. É indelével a máxima de Adorno, dizendo que não há mais vida, ou sua citação dizendo que, nesse sistema produtivo, “a vida não vive”.

“O grave é que a própria existência liberada não adquire sentido” (Adorno)

“A liberdade contraiu-se em pura negatividade (...) o fim objetivo do humanismo é apenas mais uma expressão da mesma coisa. Significa que o indivíduo como indivíduo, representando a espécie humana, perdeu a autonomia por meio da qual podia realizar a espécie” (Adorno)

“A repressão assume a forma da liberdade. A violência contra o pensamento não se manifesta mais como proibição de pensar, mas como liberdade de pensar o que, nas condições atuais de condicionamento invisível, significa a liberdade de pensar o que todos pensam” (Rouanet)

“Estamos na prisão, livres podemos apenas nos sonhar, não nos tornar” (Nietzsche)

“A vida melhor é contrabalançada pelo controle total sobre a vida” (Marcuse)
ALIENAÇÃO

“Todos somos livres para dançar e para se divertir, do mesmo modo que, desde a neutralização histórica na religião, são livres para entrar em qualquer uma das inúmeras seitas. Mas a liberdade de escolha da ideologia, que reflete sempre a coerção econômica, revela-se em todos os setores como a liberdade de escolher o que é sempre a mesma coisa” (Adorno & Horkheimer)

“A situação factual do capitalismo não é uma questão de crise econômica ou política, mas de uma catástrofe da essência humana” (Marcuse)

De que modo tudo se relaciona com a minha referida passagem? Subverti minha existência, redirecionei minha vida a partir do ponto em que me vi isolado no meio de centenas de autômatos. A pequenez que ronda nossa geração marcou-me com ferro quente um código de barra na testa. Vivi boa parte de minha vida sem viver, sem sonhar, sem pensar além da lógica infernal da produção e do consumo. Ainda vivo. Não podemos deixar de fazer parte da totalidade diabolicamente mágica e escravizante. Este é nossa sociedade, as mães carinhosas procuram nomes para os filhos observando as marcas que aparecem na Tv. Jovens querem modificar seus carros para serem respeitados e serem notados – quando é possível tê-los. Outros fazem cirurgia plástica para se parecerem com seus ídolos*. Algumas propagandas criam simulacros tão reais que confundem até os alto-escalões da burocracia parlamentar. O mais novo filão do mercado são as chamadas Cross-medias. Especificamente, elas unem vários tipos de media para pôr na cabeça do indivíduo que ele não pode viver sem a respectiva marca. É impressionante. Assisti a uma reportagem altamente apologética que destacava o potencial envolvido nesse tipo de investimento. A única empresa que até agora participou ativamente como um modelo foi o Guaraná Antártica. O que eles fizeram? Criaram um jogo misturando eventos reais com fictícios para que o consumidor fique diuturnamente entretido, tentando adivinhar os mistérios montados pela empresa. Não vou me prolongar, mas fez-se uma historinha sobre o guaraná da Amazônia e os interesses globais do capitalismo tardio. Para vocês terem uma noção, a empresa inventou tantas coisas e fatos – pessoas, organizações – que até se aproveitaram da visita do Bush para se infiltrarem e “protestarem” contra uma “empresa de brincadeirinha” que queria “roubar” a fruta exótica dos trópicos. Ou seja, é tudo mercadoria. Aproveitar-se de uma manifestação pública e política para fazer publicidade barata faz parte do jogo. Ser um manifestante é apenas mais uma das múltiplas pseudo-personalidades que são ofertadas no mercado, cabe a nós seguimos a onda. Num belo dia somos punks, no outro dia grunges, no outro dia intelectuais, outro dia engajados politicamente; fazemos isso desde que por trás tenha uma mega-estrutura que engendre e fabrique essas necessidades. A contra-cultura vira sabão em pó, como a greve de trabalhadores vira mortadela. Adorno retrata de forma esplêndida a essência desse mundo: “personalidade”, diz ele, “significa para elas [indivíduos] pouco mais do que possuir dentes deslumbrantemente brancos e estar livres de suor nas axilas”.

“Os homens podem se sentir felizes mesmo sem sê-lo de modo algum” (Marcuse)
REIFICAÇÃO

Ser reconhecido, em todos os aspectos, só se torna possível pela condição de mercadoria. Não temos mais nada que diga respeito a nós mesmo, somente aos modos de vida proporcionados pelo prazer de consumir, de adquirir novidades e de ser admirado por tal atitude. Essa última palavra também é representativa. Quantas vezes ouvimos “atitude” nos vários campos da vida mercadológica. Ter atitude é usar calça rasgada, não é? Pois então, hoje as indústrias fabricam calças já rasgadas. Em grandes lojas de departamento é quase que impossível não notar essas coisas. Os ornamentos antes usados pelos punks, hoje fazem parte da C & A por meio de figurinos prontos. Compram-se roupas com conceitos pré-formados – frases prontas – em que o único intuito é usar e descartar, tal qual fazemos com qualquer coisa no mundo. Só existimos e somos notados por meio das marcas e dos conceitos que elas representam. As mercadorias determinam nossa concepção de mundo. Um dos meios de lembrarmos as outras pessoas que existimos é colocar grandes adesivos no vidro-traseiro do carro com os dizeres: “Cuidado! Pedro a bordo!”. Quando não encontramos vários nomes diferentes, e isso tudo para lembrar o outro motorista que, ali, é transportada tal pessoa – crianças e bebês. Ou seja, para dizer que alguém existe é preciso recorrer a adesivos e carros novos. “Seu carro é uma extensão de seu corpo”, essa poderia ser outra propaganda adorável.
Um lamentável acidente aéreo nos lembra o quão perigosa é a nossa relação com o mundo. Muitos seres humanos morreram em frações de segundos, assim como muitos outros são ceifados pela fome diariamente. Mas o fato destacado nos mostra o perigo do dia-a-dia, o passeio de ônibus, a viagem de trem... A técnica tem um poder incrível de modificar tudo, principalmente nossas vidas. Como mostrar nossa indignação perante toda essa barbárie? É só clamar pelas mercadorias! Vítimas trágicas são lembradas com camisetas estilizadas – e como hoje ouvimos esse termo[1]. São empresas que vivem da desgraça humana. Colocar fotos descartáveis em camisetas brancas de algodão é um péssimo meio de nos lembrarmos dos mortos e, além do mais, é de um mau gosto louvável. Todavia, é simples, é rápido e pode ser produzido aos milhões. Já presenciei, num velório de uma pessoa próxima, como a morte se tornou um grande negócio. A empresa cuida de tudo para os familiares e ainda faz alguns banners e pequenas lembranças em homenagem ao falecido. Nada mais do que esses panfletos que algumas pessoas nos entregam nos semáforos dos grandes centros sobre peças de carros, sobre sanduíches em promoção ou sobre desconto na faculdade. Olhamos para o papel por dois segundos e, em seguida, encontramos algum lugar adequado para deixá-lo longe de nosso alcance. A empresa que é responsável pelo túmulo também deixa sua marca e logo para que a família saiba que sempre pode contar com eles. Nas grandes cidades existem lugares específicos para velórios e lá eles são feitos como que numa linha de produção. A prefeitura, para mostrar seu respeito pelo dinheiro público, ainda encontra meios para que se intensifique a produção aritmética de sepultamentos e últimas despedidas, afinal, o que “você quer é que o trabalho seja rápido, produtivo, impessoal e que ainda encontre um tempinho para o futebol na Tv”, esse poderia ser outro comercial bem criativo.

“O problema é o de modificar a própria vontade, de modo a evitar que as pessoas continuem a querer o que querem agora” (Marcuse)
MERCADORIA

Somos controlados pelo poder demiurgo que a ciência confere aos produtos. Quando estamos com fome, empanturramo-nos de comida cheia de gordura, açúcar e sal, em quantidades assombrosas. Essa obsessiva compulsão sacia nossa vontade de mundo, põe fim na carência de vida. O sexo gratuito libera Eros para um prazer frio e mecânico. Quando estamos felizes, prolongamos nossa felicidade imediata com bebidas alcoólicas e controles de televisão. Se, por outro lado, estamos tristes, como que num passe de mágica, a tristeza vai embora após uns bons e eficientes anti-depressivos. E é assim que vivemos atualmente. Quando estamos fracos, tomamos anabolizantes; se quisermos ficar magros consultamos as espantosas dietas. Bulimia, anorexia e outras podem ser requisitadas, se necessárias. Tal qual um feto na barriga da mãe vivemos em contínuo estado de letargia, mas muito bem alimentados e seguros. Você ainda quer se rebelar contra isso? Não seria melhor passar pela locadora e ver um filme? É melhor permanecermos adormecidos e emudecidos pelo feitiço das mercadorias. Como diria nossa ministra do turismo: “Relaxa e goza”; poderíamos acrescentar: por toda a vida árida e enfadonha que a felicidade programada nos proporciona.
O mundo-mercadoria tornou-se próximo aos meus empreendimentos intelectuais após sucessivas leituras de fantásticos autores alemães. É a partir de um determinado ponto de minha vida, como foi supracitado, que inquietações diversas e não-usuais passaram a ser diárias. Num determinado momento da minha vida conheci um batalhão de robustos guerreiros heréticos. Aos poucos fui me situando em meio a eles e reconhecendo e admirando a riqueza profunda habitada no corpo humano que nos une. Partilhar do desejo dos homens de criar uma existência realmente humana é dar prova da grandeza da vida. O saber que toca em nossos corações é aquele que penetra, com mais intensidade e amor, no que é mais vivo. Os guerreiros – de que falei há pouco – foram se multiplicando; ao descobrir um, parecia que este um era escoltado por outros muitos e estes por outros tantos. Marx, Hegel, Adorno, Horkheimer, Lukács, Bloch, Weber, Fromm, Benjamin, Nietzsche, Marcuse, Freud, entre outros tantos... Nunca imaginei que esses nomes ficariam tão presentes em minha existência.

“A crítica arrancou as flores imaginárias que enfeitavam as cadeias, não para que o homem use as cadeias sem qualquer fantasia ou consolação, mas para que se liberte das cadeias e apanhe a flor viva” (Marx)

O norte-paranaense trouxe-me amigos que transcendem, em idéias e sentimentos, a busca pela reprodução diária da existência. Conheci muitas mentes lucidamente autênticas por esses anos. Muita falta farão, e já fazem, em meus pensamentos. Como era bom discutir naquele campus e sob a copa das árvores. A vida passava bem devagar e isso propiciava com que pudéssemos tentar desvendá-la muito sucintamente. Em poucos metros quadrados encontrávamos tantos diálogos distintos. A crise era imanente e instigante: possibilidades múltiplas de compreender o espírito humano. A realidade crua e brutal, que a teoria nos proporcionava, era contrastante com os límpidos verdes campos que nos circundavam.
Foram tempos memoráveis que marcaram e modificaram profundamente o meu ser. Despertaram-se para mim, os mais terríveis e brilhantes tesouros da humanidade. Compreendi a força e a fecundidade que existe por detrás das gélidas e estéreis estantes das bibliotecas e dos empoeirados sebos da vida. A força de dizer ao mundo, tal qual disse Fromm, em momentos de miséria e degradação: “que o humano prevaleça!”.

“A reforma da consciência consiste exclusivamente no fato de deixar que o mundo tome conhecimento de sua consciência, de despertar o mundo do sonho que está sonhando a seu próprio respeito, de interpretar para o mundo as suas próprias ações (...) Nossa divisa deve ser: reforma da consciência, não através de dogmas, mas pela análise da consciência mística autoconfundida, seja pelo conteúdo político ou religioso. Veremos, então, que o mundo já possuía, há muito tempo, o sonho de alguma coisa, da qual só deve ter consciência para possuí-la na realidade. Veremos que não estamos tratando com um enorme hiato entre o passado e o presente, mas com a realização dos pensamentos do passado. Finalmente, veremos que a humanidade não começa nenhuma tarefa nova, mas realiza a velha tarefa conscientemente (...) isso é uma confissão, nada mais. Para ter seus pecados perdoados, a humanidade tem apenas de explicá-los tal como são” (Marx)
* Programas da Mtv. Existe um outro programa em que garotos e garotas, sem se conhecerem, tentam descobrir a personalidade alheia apenas conferindo marcas de roupas, gostos musicais e tudo mais que se precisa saber para ter a certeza se a referida pessoa está ou não está na onda, se é ou não é legal.


[1] Tudo é estilizado, mas em larga escala, é uma verdadeira reprodução em série de roupas personalizadas, feitas com sua cara, seu estilo; pensando exatamente no seu gosto; “você tem o seu estilo, a Renner tem todos!”

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