sexta-feira, março 16, 2012

Utopia e engajamento

Entrevista de Susan Buck-Morss a Willi Bolle, Elvis Cesar Bonassa e Fernanda Pitta
No encerramento do último “International Walter Benjamin Congress”, em Amsterdã (de 24 a 26 de julho de 1997), Susan Buck-Morss provocou polêmica entre os participantes ao concluir sua conferência “Revolutionary time: the Vanguard and the Avantgarde” com um ataque à falta de compromissos políticos dos intelectuais na universidade. Professora da Cornell University (EUA), é autora de, entre outros, Origin of negative dialectics (1977) e Dialectics of seeing (1989). Ao lado de Martin Jay, Buck- Morss é considerada uma das principais especialistas norte-americanas na obra dos autores da assim chamada Escola de Frankfurt. Na entrevista a seguir, ela retoma temas apresentados em sua conferência, fala sobre seu projeto de releitura de Hegel e comenta a obra de Adorno e Benjamin.

Sua recente pesquisa sobre Hegel pretende investigar o significado político de alguns de seus conceitos filosóficos para a época em que foram concebidos, com ênfase na dialética senhor-escravo. Você poderia explicar melhor essa abordagem?
Estou tentando pensar seriamente o fato de virmos estudando o passado com antolhos eurocêntricos e disciplinares, e também o fato de que os atores históricos desse passado não eram, eles mesmos, tão cegos quanto somos. Hegel era um ávido leitor de jornais, atualizado com a imprensa inglesa tanto quanto com a alemã, além de vivamente interessado pela Revolução Francesa e pelos acontecimentos políticos que eclodiam nas outras nações. É pouco provável que ele, ao conceber a dialética senhor-escravo, não tivesse em mente a existência de escravos reais em países reais (como, por exemplo, nas colônias caribenhas) ou que esses escravos, como o seu escravo filosófico, não fossem capazes de se rebelar. 1803 é a data da revolução haitiana e é também quando a temática do senhor-escravo aparece pela primeira vez nos escritos de Hegel. Minha abordagem lança mão do princípio da montagem, justapondo retalhos da história – normalmente mantidos separados no modo em que o passado nos aparece – a fim de ter uma imagem diferente das origens do presente. É um modo de libertar os fatos do passado para que possam ser usados em outras constelações no presente.
De que maneira a nova aproximação de Hegel proposta por você muda a interpretação tradicional da filosofia hegeliana?
“Hegel” é entendido como uma filosofia, não como um filósofo (um ser vivo, uma personagem histórica). Com isso, é dada à sua palavra uma autoridade que hoje em dia traz consigo toda hegemonia eurocêntrica por detrás. Ao percebermos que Hegel está descrevendo condições históricas reais (não somente a escravidão na América Latina ou a decretação do fim da escravidão durante a Revolução Francesa – com o seu reestabelecimento, por Napoleão, nas colônias –, mas também a libertação dos servos na Europa Oriental e mesmo a servidão contratada, típica das colônias britânicas), sua filosofia torna- se legível como um comentário da época. E, entretanto, a simultaneidade desses acontecimentos históricos não se adequa à narrativa hegeliana da História Universal – que era seu próximo projeto filosófico depois da Fenomenologia do espírito e que é um documento fundador do pensamento eurocêntrico. A atual importância política dessa leitura é que ela contribui para minar o discurso do “desenvolvimento”, do “progresso” ou “atraso” histórico. Todas as partes do planeta estão no tempo presente – do mesmo modo que, em 1800, a escravidão no Caribe era um fato da história européia, não algum resíduo “pré-histórico” africano, como Hegel tentou argumentar na Filosofia da História, para tornar convincente sua teoria do Weltgeist.
Você afirma que Hegel não falava tão abstratamente quanto os intérpretes contemporâneos tentam mostrar. Isso quer dizer que esses conceitos filosóficos são também escolhas políticas? Ao dirigir seus estudos atuais para o pensamento político na América Latina, que relação você estabelece com sua leitura de Hegel? A dialética senhor-escravo pode ser usada como metáfora para a política latino-americana?
É curioso notar que a “libertação” da servidão como metáfora básica para o pensamento político moderno europeu torna-se hegemônica precisamente no momento em que a escravidão real transforma-se no fundamento da produção de um novo modo de capitalismo (exploração do trabalho em função de lucros teoricamente infinitos). Não é que Hegel “escolheu” uma metáfora da escravidão, mas que nós esquecemos a realidade que estava por detrás dela. Se alguém hoje falasse em revolução nos termos de uma explosão nuclear, imediatamente saberíamos que a metáfora se refere a uma certa realidade, e que essa realidade deveria ser discutida ao consideramos o significado do termo.

O interesse de sua pesquisa parece ter se deslocado da ex-União Soviética para a América Latina. Qual o significado dessa mudança?
Com a dissolução do bloco soviético – e isso não pode ser encarado como uma metáfora, mas sim como um fato –, um certo discurso também se desfez. A distância entre ricos e pobres, por exemplo, nunca foi tão grande; mas a única linguagem de que dispúnhamos para falar a respeito está em ruínas. Daí a necessidade de pegar os fragmentos, alguns fragmentos, e tentar reuni-los em novas constelações. Esse é o propósito de passar da União Soviética para Hegel e o Haiti. Realmente não importa para onde olhamos ou com quais fragmentos trabalhamos – há sempre algo a ser salvaguardado, e um novo modo de reorientarmos a linguagem e a política. Não me parece de grande ajuda dizer: está bem, tivemos a “modernidade” e ela está acabada, agora estamos “na” pós-modernidade – como se a história se movesse numa progressão ao longo dessas épocas... Isso não passa de um resíduo da fantasia hegeliana da História Universal, do qual devemos abrir mão. Em outras palavras: temos ainda o passado cheio de “fatos” e acontecimentos e tudo o mais, e somos obrigados a lidar com ele sem a ajuda de uma narrativa filosófica da história que o explique como um processo total.
Recolher os fragmentos, fazer novas constelações. Essa é uma tarefa política para os intelectuais?
Sim, já que quase todo trabalho intelectual é, de alguma maneira, relacionado com o passado, e já que é inegável que a maneira pela qual os fragmentos do passado têm sido organizados a fim de produzir a ilusão de um progresso contínuo foi criticada devastadoramente pelos próprios fatos da história. Estamos sentados, como a Melancolia de Dürer, rodeados por todos esses fragmentos de conhecimento, e precisamos juntá-los de alguma maneira, de um modo que tornem possível a prática política. Redimir o passado não deve ser entendido como uma tarefa demasiadamente mística ou nostálgica (não estou tentando mimetizar o lado nostálgico de Benjamin aqui), mas simplesmente aceitar que o passado está em ruínas e que, entretanto, não temos nada além do passado para “ler”, se quisermos nos orientar no presente – pois não existe nenhum “futuro” no sentido cosmológico-temporal em que Hegel (e também Marx e Lenin) acreditava. Tais critérios benjaminianos de reordenação do passado se distinguem também dos da Ecole des Annales, por exemplo. Esta se via fazendo história, ao passo que Benjamin estava fazendo política/filosofia (ele não as separava) por meio da história, ao ler os fragmentos históricos de uma nova maneira. Há ainda muito da atitude do historiador profissional na Escola dos Annales – em demasia, eu diria, não no sentido de que as fontes sejam importantes (elas realmente o são), mas na filosofia da verdade que opera nos escritos da Escola. Descobrir como o passado “realmente foi” é uma busca historicista. Benjamin, pelo contrário, estava interessado em como o passado pode fornecer uma experiência no presente, ou melhor, como o passado pode se tornar uma fonte de iluminação para o presente, abrindo espaço para a transformação política.
Diante da atual cena intelectual presente na Universidade, sua proposta não corre o risco de ecoar no vazio? Não é crescente o número de intelectuais sem quaisquer interesses políticos?
Dizer que os intelectuais de hoje não têm preocupações políticas não quer dizer que eles não se importam. É como dizer que alguém não está amando no momento e que, por conseguinte, ele não se importa com amor, ou que não haveria uma mudança radical naquilo com que ele se importa caso se apaixonasse amanhã. Peguem como exemplo o fenômeno da morte da princesa Diana (independentemente do que se possa dizer cinicamente sobre ela ou a monarquia, ou mesmo sobre a mídia) e compare com a morte da Irmã Teresa. Chegou-se a comentar que essa pobre freira era na verdade uma oportunista querendo ser beatificada. Não deixa de ser interessante que uma aura de santidade possa ser construída ao redor de uma celebridade e uma motivação egoísta de realização pessoal possa ser atribuída a uma freira. Mas a mistura de santidade e de oportunismo cínico indica que ambos, pensamento crítico e pensamento utópico, estão vivos e passam bem. Não importa o quanto sua expressão seja distorcida pela mídia cultural: há uma enorme quantidade de fantasia utópica à espera de um meio de expressão político e progressista – o que me faz otimista. O “passado”, como vocês sabem, está cheio de todos os tipos de munições que podem ser usadas contra estruturas de exploração no presente – estruturas que também podem ser intelectuais. Devemos ter em mente o seguinte raciocínio (e Max Weber é um exemplo disso): tentar evitar a exploração intelectual por meio da transformação da política em tabu pode ser um tiro pela culatra...
 
A fantasia utópica, como esta ao redor da morte da princesa Diana, não pode ser apenas um fenômeno de mídia, sem nenhum conteúdo emancipatório para o presente? A Dialética do esclarecimento de Adorno e Horkheimer fez críticas severas à fantasia utópica promovida pela indústria cultural, já que seu contéudo é incapaz até mesmo de manter as recusas que se encontram nas ambigüidades das “promessas de felicidade” feitas pela arte.
As críticas de Adorno e Horkheimer são muito válidas. Entretanto, o problema não reside na fantasia utópica propriamente, mas nos abusos feitos quando ela é manipulada segundo certos fins. Como o próprio Adorno disse, precisamos de mais razão esclarecida, e não menos. Benjamin observou que nem todos os textos são legíveis em todos os tempos, mas é possível que um texto que tenha se tornado impenetrável subitamente se abra para uma nova leitura – por meio da justaposição de Hegel e Haiti, por exemplo.
Utilizar conceitos benjaminianos, extrapolar a partir deles – e com eles – para constelações do mundo atual – por que isso foi considerado um tabu durante as discussões sobre sua conferência no Congresso Internacional Walter Benjamin, em Amsterdã?
É um problema de adequação a fronteiras – o tabu contra a transformação do trabalho acadêmico em algo realmente relevante, em termos políticos, para o que se passa do lado de fora da Academia nos dias de hoje... Mas fronteiras são muito preocupantes porque elas nos fazem pensar nas coisas como contidas em si mesmas, quando elas de fato não o são. Não acho que o trabalho filológico não seja valioso, mas gostaria de voltar ao ponto: é uma insensatez proibir a discussão acerca do mundo atual, para além das conferências e salas de aula, quando discutimos Benjamin ou quem quer que seja. Mas deixem-me perguntar: o que vocês acham que está em jogo em uma Associação Internacional Walter Benjamin?

Um dos propósitos de reunir intelectuais para o estudo da obra de Walter Benjamin deveria ser o de fornecer leituras acuradas de seus textos, leituras que atentem para o que ele efetivamente escreveu e também para a diferença histórica existente entre seus textos e a realidade histórica que nos cerca e que tentamos decifrar.
Sim, decifrar. A tarefa é decifrar tanto o passado quanto o presente; ao traduzir o passado no presente, revivemos seu conteúdo. A justaposição entre passado e presente muda seus contornos. Ambas são tarefas de decifração.

É possível que Benjamin pensasse a fantasia utópica de maneira diferente da de Adorno e Horkheimer? Se pensarmos em seus escritos sobre Fourier, por exemplo, ou mesmo sobre o cinema, a aparência é de que realmente são concepções diferentes.
Eu considero que os três pensadores afirmavam a fantasia utópica, e também os três estavam tremendamente conscientes dos modos pelos quais essa fantasia pode ser manipulada pelo poder.
 
Mas não há diferenças significativas entre eles precisamente quanto a esse ponto? As diferentes concepções sobre o papel utópico do cinema, por exemplo, e seu uso para a politização das massas – para Adorno, a fantasia utópica seria somente uma utopia negativa, que se converte em seu contrário quando se tenta usá-la para dar base a qualquer prática coletiva. Por outro lado, Benjamin, influenciado talvez por Brecht, defendia os conteúdos emancipatórios do cinema, pois eles poderiam trazer às massas uma sensibilidade diferente, revolucionária, reordenando os elementos postos em um dado momento histórico, dando a eles uma nova configuração.
Certamente diferenças existem, mas não acho útil aqui tentar tomar partido de um ou de outro. Não há nada intrínseco ao cinema que o torne politicamente impotente. Pelo contrário, o cinema é fonte de técnicas de justaposição e tradução, cuja importância acabamos de mencionar. Como você discute o papel da fantasia utópica em seu mais recente livro, Dreamworld and Catastrophe? Uma das coisas que tentei mostrar em Dreamworld and Catastrophe foi que os sonhos utópicos dos EUA e da URSS eram bastante similares. De fato, surpreendentemente similares e ao mesmo tempo distantes de nossa própria maneira de pensar deste fim de século. Vejam o caso de amor com a indústria pesada, por exemplo, que deveria trazer fartura material para as massas. Ele era baseado na real ignorância das catástrofes ecológicas daí resultantes, mas ao menos havia uma preocupação com as massas, ou pelo menos se falava em cuidar delas. Vocês sabiam que o mesmo escritório de arquitetura, o de Albert Khan, que construiu para a Ford a fábrica de motores River Rouge nos EUA, foi comissionado por Stálin para construir fábricas automotivas soviéticas como parte do primeiro plano qüinqüenal? Portanto, não é apenas uma questão de sonhos similares – eles tinham um mesmo sonho. O sonho coletivo de um futuro emancipado que se traduzia, na realidade, em uma economia fortemente baseada na indústria de guerra. O problema é essa palavra: “futuro”. O pensamento utópico deve dizer respeito à felicidade no presente – este é o lado fourierista no pensamento de Benjamin. A valorização da felicidade sensorial, da felicidade material e corpórea, é algo que os membros da Escola de Frankfurt tinham em comum.

Para encerrar, você poderia falar um pouco sobre a permanência da Dialética do esclarecimento em seu 50o aniversário?
Minha leitura da Dialética do esclarecimento difere da interpretação predominante. O livro fala claramente que o esclarecimento não é páreo para o capitalismo (o termo aparece em diversos momentos-chave do livro), e nesse sentido o livro é “marxista” de uma forma francamente não apologética. Ao mesmo tempo (e essa é a grande contribuição do ensaio de Benjamin sobre “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”), assim como a revolução capitalista dos meios de produção libera um potencial socialista que contradiz as relações capitalistas de produção, o mesmo é verdade para a produção de objetos culturais (o potencial democrático do cinema, por exemplo). Portanto, se o esclarecimento não vai nunca, por si só, acabar com o capitalismo, ele pode ao menos nos chamar a atenção para as relações no interior do capitalismo que impedem seu próprio potencial utópico. Um exemplo perfeito é a tentativa vã de manter direitos sobre a “propriedade” cultural na época das máquinas de xerox e das cópias em vídeo ou cassete. A máquina xerox é um emblema de socialismo plantado em todo escritório de corporação. O ciberespaço é outro exemplo. Ao surgir, ele não é ainda um espaço de relações capitalistas – é preciso transformá-lo em tal. Cabe a nós, enquanto produtores de cultura, tentar resistir a essas tentativas. Talvez nossa própria “conversa virtual” possa ser parte desse processo. É agradável pensar assim.
A entrevista foi concedida on line em outubro de 97 via Internet (com o apoio técnico de Fábio Tagnin, do Universo Online) e revista posteriormente pela entrevistada.
Tradução: Fernanda Pitta e Marcio Sattin.
Publicado em Cadernos de Filosofia Alemã 3, PP. 61-68, 1997 62
Retirado do site Antivalor.

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