quarta-feira, setembro 05, 2007

Cansei! – o engodo burlesco de tacanhos filisteus modernos



Nos encontramos hoje numa situação de plena calamidade social. Em nenhum outro momento da história convivemos com tamanha brutalidade absurdamente gerenciada pelos poderosos:
“Problemas ambientais; aumento significativo da violência nos grandes centros urbanos; crescimento desordenado das cidades e o inchaço das favelas e moradias precárias; constante investimento em tecnologia e armamentos pesados, visando ‘segurança’; acentuação da desigualdade a níveis alarmantes; e concentração de renda cada vez mais brutal na mão de poucos e a generalização da miséria a vastos territórios do globo terrestre” (O desenvolvimento paradoxal do progresso e a hipertrofia da razão instrumental, 2006, p.76, de minha autoria: Leonardo Domingues).
Como se não bastasse essa gélida realidade, alguns pseudodemocratas se intitulam defensores do bastião da moral e da vergonha na cara. Essa cidadela da ética e do respeito mútuo traz à tona toda a bandalheira reinante no país. São pessoas de bem; são indivíduos que se importam com a vida dos outros e, de forma merecida, ganham o reconhecimento sobre seus atos. Esses cidadãos de boa índole serram fileiras na vanguarda da decência e do decoro cívico.
Em outros momentos de nossa história humana, fenômenos parecidos se manifestaram em situações de profunda tensão política, em que a sapiência dos homens tornou-se impotente e cega, perante o assalto da insensatez e da barbárie. Abaixo do solo dos tempos, adormecidos estão esses germes da soberba inquisição a toda e qualquer forma de prudência racional. Só ficam esperando o momento certo para saírem da toca. Cito dois exemplos de acirramento ideológico em torno da “defesa” da moral e da ética: Quem não se lembra da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que preconizava quase as mesmas coisas? Pouco mais de trinta anos antes desse fato, na Alemanha estava ocorrendo um movimento de renovação nacional, apoiado, principalmente, pela classe média e pela burguesia, que culminou com a ascendência de Hitler ao cargo de Chanceler da nação. Trago esse dois exemplos para analisarmos, no que diz respeito ao movimento Cansei, quais são as reais intenções que motivam essas pessoas a agirem dessa forma. Quem está cansado? Por que motivo? Cansado de que? Como está cansado?
Assim sendo, proporciono uma pequena anátema crítica, estabelecendo um diálogo com o outro lado da moeda, com aqueles que já estão cansados há muito tempo. O manifesto seria proferido não em aeroportos ou shopping centers, mas sim, nos bolsões de miséria desse vasto e rico Brasil.

Cansei de ser invisível à sociedade, que só se lembra de mim quando a minha violência diária chega a casa dela.
Cansei de ver meus filhos sem perspectiva alguma, vítimas da dor e do flagelo, lutando a cada instante pela existência desumana e miserável que nos cabe.
Cansei de ser a força produtiva de uma produção que não me pertence, e sim ao outro, que me explora diuturnamente a troco de uma ração inumana.
Cansei de esperar e esperar pela esperança de um dia ser tratado de forma mais digna e humana.
Cansei de ser cercado pelos frios mundos da desigualdade e de viver num cárcere econômico antagônico, vil, covarde e cruel.
Cansei de perceber que é dessa contradição insensata que brota a “igualdade de condições” entre os homens. De sentir, de forma intensa, o quanto que de meu padecimento é que se eleva o prazer luxuoso do outro, do dono.
Cansei de ser escorraçado, vilipendiado e atrozmente ceifado em favor da ordem pública e do bom andamento dos processos.
Cansei de viver como animal, em pocilgas fétidas de sórdidos entulhos e ver que estou em pior condição que isso, porque o animal de estimação do outro vive em melhores condições do que a maioria de nós.
Cansei de ver que somos nós que cremos em Deus, mas são eles que são abençoados.
Cansei de repetir que “rico pede paz para continuar rico, e que pobre pede paz para continuar vivo”.
Cansei! Estou cansada!


“O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão” (...) “Com a valorização do mundo das coisas, aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz apenas mercadorias; produz-se também a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria”(...)”O trabalhador põe a sua vida no objeto; porém agora ela já não lhe pertence, mas sim ao objeto. Quanto maior a sua atividade, mais o trabalhador se encontra objeto. O que se incorporou no objeto do seu trabalho já não é seu. Assim, quanto maior é o produto, mas ele fica diminuído.”(...) “O trabalhador torna-se escravo do objeto”(..) “Não constitui a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio de satisfazer outras necessidades”(..)”ele não é o seu trabalho, mas o de outro”(...)”Chega-se à conclusão de que o homem (o trabalhador) só se sente livremente ativo nas suas funções animais – comer, beber e procriar, quando muito, na habitação, no adorno etc. – enquanto nas funções humanas se vê reduzido a animal”(..)”Esta é a auto-alienação”(...)”A vida revela-se simplesmente como meio de vida”(...)”Se a sua atividade constitui para ele um martírio, tem de ser fonte de deleite e de prazer para outro”.


Este é um texto escrito por um jovem de 26 anos, herdeiro do mais profundo pensamento humanístico. Em suas palavras ecoam as idéias de toda a tradição que o precedeu. O herético, o novo, a vontade de realizar de forma plena a existência humana: esse era o lema de toda a Filosofia Clássica Alemã, assim como, também o era do Renascimento, do Humanismo e da Grécia Antiga. Seu nome? Karl Heinrich Marx. Manuscritos econômico-filosóficos.

Que castigo tenho a temer, se mal algum eu faço? Possuís muitos escravos, que como asnos, cães e mulos tratais, e que em serviços empregais vis e abjetos, sob a escusa de os haverdes comprado. Já vos disse que os pusésseis, acaso, em liberdade? que com vossas herdeiras os casásseis? por que suam sob fardos? que lhes désseis leitos iguais aos vossos? e iguarias que como ao vosso paladar soubessem? Em resposta, decerto, me diríeis: “Os escravos são nossos”.


Essa é uma das falas de Shylock, pronunciada durante o famoso julgamento em “O mercador de Veneza”, de William Shakespeare.

Cansei de um progresso que só eterniza a desigualdade do presente. Onde está o progresso humano?

Cito mais um trecho de meu breve texto supracitado:


O triunfo dos meios sobre os fins deriva de um largo processo de promoção de um desenvolvimento desigual e desumano. Os fins essencialmente humanos, autônomos e emancipatórios foram transubstanciados em formas eminentemente modernas de produção e reprodução de miséria e de sofrimento. A tão conclamada globalização, panacéia dos novos tempos, escamoteia em seu comércio ilimitado de mercadorias quais são as verdadeiras faces desse progresso antagônico. Pelo uso instrumental de formas racionalizadas de produção e escoamento de produtos não existem mais barreiras de qualquer tipo para findar a expansão pela busca de novos mercados. Ao mesmo tempo em que as mercadorias têm trânsito livre por todos os cantos, o mesmo não acontece com a riqueza, nem com a ciência, nem com o conhecimento. Estes ficam monopolizados nos grandes centros industriais, nas universidades tecnológicas e nas grandes empresas. A liberdade que a mercadoria desfruta se converte em confinamento para o indivíduo. Se aos produtos comercializáveis tudo é permitido, para os seres humanos somam-se as segregações étnicas, religiosas, econômicas, culturais, políticas, para a sua conciliação com os outros.
Num capitalismo cada vez mais tecnológico, racionalizado, administrado e expansivo, a racionalidade instrumental é imanente aos processos de valorização de capital. Contra barreiras de dominação sofisticada, o homem padece diante de uma, cada vez mais intransponível e inexorável, “gaiola de ferro”. Se nos pressupostos weberianos tais constatações já estavam muito avançadas, na teorização frankfurtiana esse fenômeno é repensado de acordo com os novos desenvolvimentos do capitalismo tardio. Num mundo instrumentalizado, onde somente são válidas as ações que sirvam para atingir algum fim prático e útil, todas as atuações dos indivíduos tendem a se submeter a uma só lógica: seus desejos, suas vontades, seus sentimentos, sua consciência, tudo se torna um mero instrumento.

O pensamento crítico luta por conceituar o caráter irracional da racionalidade estabelecida e por definir as tendências que fazem com que essa racionalidade gere sua própria transformação. Apesar da constatação desesperançada e concreta sobre a atual complexidade da realidade, a Teoria Crítica não perdeu a esperança em torno da razão humana. “Não alimentamos dúvida nenhuma de que a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento esclarecedor” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.13). Horkheimer, em sua última frase de Eclipse da Razão, nos lembra que, “se por evolução científica e progresso intelectual queremos significar a libertação do homem [...] então a denúncia daquilo que atualmente se chama razão é o maior serviço que a razão pode prestar” (HORKHEIMER, 2003, p.187). Portanto, enquanto possibilidades efetivas de transformação objetiva e subjetiva não estão no horizonte, o espírito crítico e contestatório será o norte para a produção de um mundo mais justo e sensato.

O desenvolvimento paradoxal do progresso e a hipertrofia da razão instrumental - 2006, p.80

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